quinta-feira, 29 de julho de 2010

Uma sombra agridoce


Uhhh… era a velha quem falava lá do catre…ouviste? Eu não! O quê? Ora, como o quê! O que tu não queres é ouvir… era com o senhor Jeremiado que se falava. Jeremias. Um homem alto, robusto, um vozeirão. Comia uma arroba de batatas à semana e de inverno passava fome pois o campo de batatas nunca lhe chegava. Era só. Nem mulher nem filho conhecido. Nunca casara. Quando saía de casa era para se meter a caminho da taberna, o andar arrastado, o olho vagaroso, entrado na dita, grosso - alto Mulher! Quero um copo de vinho… e era assim quase todas as tardes e quase todas as noites. Fechava a taberna quando ele fechava. Era ele quem guardava a chave de fechar. Agora, o diálogo era à porta da casita do escritor e era meia da tarde, quando os cães vadios grafonavam, talvez em tom de saudade… não quero é ouvir! Pois fica a saber que cá o jeremiado não tem medo de nada e muito menos de bruxas. Pois sim, quando o vento ventava, o jeremias era todo encolhimento, de dentro da casa! Era quase tanto tamanho quanto farroncas… acabou por dizer-lhe, mais ou menos em tom confidente… ora, pobre coitada, ela não é nem velha nem bruxa. É apenas mulher. E nem se pode dizer que seja feia! O frio e o vento e a fome e os filhos… deixa ficar no ar todo o restante novelo… ó escritor, deixa lá os papéis e vamos afogar as mágoas com uma pinga. Na taberna assentou na mesa do meio e pediu um garrafão. Estava na altura de confidenciar. Susana, vozeirou, vinho e dois copos e uma faca e salpicão. Vou contar uma história ao escritor para ele escrever… enquanto isso de dentro dele sai um sorrisinho que o torna bem disposto. Susana serve-os e abandona a sala. Ficam eles mais as moscas, que moscardam por aqui e por acolá, como loucas perfeitas. Começa ele… é de loucura que te quero falar. dizem por aí que eu não tenho filhos! Pois bem, isso não é assim tão verdade. A velha que mora na cordilheira, mostra o ventre inchado duma filha minha que está para ser parida vai para vinte anos. O raio da rapariga. Nunca se viu caso assim. É ela quem me leva as batatas todas… que queres, um homem derreia-se todo por uma mulher e uma filha… o escritor pensando para ele, sim senhor, ora aqui está se não temos padre, então não é que se fazem milagres que duram vinte anos e nem um altar, nem uma pedra! E Jeremias, foda lá os milagres mais as pedras, eu quero é a rapariga de lá para fora. Já está grande e ocupa lá muito espaço… eu com a idade dela já misturava os ninhos com a terra e as batatas… o escritor só sabe dizer, não vem cá um médico! Sim, por cá aparece com o padeiro ou com os do circo, mas não há força que chegue, ela não sai, diz sempre o mesmo, a minha varanda é melhor que a tua, e eu penso cá para mim, mas quem me terá feito assim tão casmurro, ao mesmo tempo amocho. E à semana, levam-me, mãe e filha, a arroba de batatas que há pouco pensavas que as comia eu… já o garrafão se sumia a meio e ele, com uma tapona, esborrachando uma moscarda, já que sabes escrever, mete aí no papel que precisamos aqui um padre, sempre se arranjaria um falinhas mansas que a tirasse da cama…por detrás do padre e da cama, finda a noite lá eu me aperceberia que o que urdia o homem era que a velha, a louca, não podia cumprir duas funções ao mesmo tempo, ou lhe sobrava espaço para a filha, ou lhe sobrava espaço para o Jeremias. E este, nem mulher nem filho conhecido. O que queria dizer, que, mesmo com mulher, era como se não tivesse mulher… desbastava todo o seu esperma para cima da terra, numa fonte agridoce, sem passado nem futuro…

Nuno Monteiro

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António Lobo Antunes

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