domingo, 25 de julho de 2010

Onde se apresenta o burrico


Levantara-se um vento que ecoava na cordilheira e voltava como um torvelo terrível que assombrava os telhados… o escritor encontrava-se recolhido, sentado à escrivaninha e pensava enredos, olhava os passados e entretinha-se com medo, teria medo? Ouve bater à porta, pancadinhas secas atende olá burrico és tu, estás com medo do vento? este vento é mau! Quer soprar as telhas abaixo… então diz-lhe o escritor, oh disso não precisas ter receio… a minha casa não é de palha… nem mesmo de madeira… essa é que era boa, tenho visto muita casa de pedra desmoronar! Com uma noite destas e com um vento assim! Não ouves?, até os mortos se encolhem. Acomoda-te, e então o escritor foi servir o burrico de aguardente, obrigado mas não me parece que vá ajudar, deve acalmar diz-lhe o escritor, o burrico entretinha-se esbugalhado olhando os livros que cresciam do chão, empilhados pelas bermas da sala, sem ordem, sem juízo. Os livros não precisam ter juízo. Andam por aí como que aos caídos, descabelados e de sandálias e mais não fazem que inquietar… são uns marotos os livros, sabes ler não sabes burrico?… aqui na terra nunca tivemos nenhum escritor e por isso a minha relação com os livros não pode ser muito funda. As minhas raízes são daqui e da cordilheira… esse altar maldito que nos tem feito tanto mal… o escritor faz uma cara circunspecta e pergunta, mal? Pois mal, muito mal, apesar de tu por lá teres andado a conspurcá-la! mal pois é ela quem rouba daqui as gentes enquanto vivas e outra vez mal pois é ela quem impede o caminho aos mortos, por isso tu os ouves por aí pelos cantos, como almas penadas… não encontram o caminho… metem-se todos aí aos magotes, conversando pelas esquinas, não comem nem dormem nem trabalham, apenas falam, confesso que por vezes gostaria de um pouco de silêncio… ó burrico, também não estás de bem com nada, se ventania é porque ventania, se se põe sossego então chegam a ti as vozes, não te rales com elas, também a mim me apoquentavam mas agora lido bem, as vozes indicam-me caminho, orientam-me nas minhas estórias, são de muita serventia.
Enquanto silvava em torvelinho, os dois ali enfiados, beberricavam à boca pequenina e a pouco e pouco caíam numa espécie de modorra, vives numa casa tão acanhada, um burro aqui não pode esticar-se, a tua casa é lá fora, esta é a minha casa e se te recebo espero bem que te saibas comportar. É pequenita, foi assim que eu a quis! Serve, está bem, está bem, não te zangues não disse para ofender, mas quando quiseres fazer-me uma casa, que seja maior… ó burrico, não estarás tu já um pouquito borracho? Ora bem, é sabido que os burricos não foram feitos para beber aguardente e de certeza que este com quem falamos não estará habituado.
De que falam os teus livros? Um interregno de silêncio antes da resposta, deves lê-los tu. Os livros falam para cada um de nós e o que eles me possam dizer a mim, deve ser algo diferente do que te dirão a ti… o burrico franze o sobrolho e pensa lá com ele agora quem beberica aguardente a mais… o escritor completa, as palavras e as frases são as mesmas mas os ventos que tas acomodam são diferentes… desconheces a importância dos ventos burrico, os ventos não servem apenas para deitar os telhados fora…
O burrico fica imóvel e ao fim diz sabes, escritor, ao fim, esta vila tem que te agradecer pois foste o primeiro que cá chegaste. Susana esperava-te. Espera-te. Embora ela ainda não o saiba, e ao menos, que esses livros que tu aí tens te possam ajudar a furar a cordilheira que é a muralha dela… quando o fizeres, ela parirá um filho e a maldição da cordilheira perderá força e então, só então, os vivos poderão viver como vivos e os mortos, poderão viver como mortos.
Assim como está, é uma barafunda, já te apercebeste que a estória que queres escrever não é num papel, embora ela se vá também escrever num papel… o escritor, pois sim, burrico, bem mereces a casa que te vou fazer. Sete anos o tanas, tu tens bem mais que sete anos, eu sou eu mais o meu pai e o meu avô e outros antes… comungo dos olhos e dos ouvidos dos mortos, embora eles me metam medo. E tudo isto sem igreja e sem redenção.
O vento amaina e o burrico retira-se. Com votos de boas escrituras! O nosso escritor fica sentado na escrivaninha todo o restante tempo. Deita-se quando o galo anuncia a alvorada. Não escreve nem uma linha. A meio da manhã está no campo a meter as sementes à terra. A cordilheira atira sobre a encosta um manto branco de nuvens. Farripas, um manto de abandono caído em breve sobre as vidraças.

Nuno Monteiro

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“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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