domingo, 19 de dezembro de 2010

Os cardos do Baragan

Com a chegada de Setembro, as vastas planícies incultas da Valáquia danubiana decidem viver durante um mês a sua existência milenária.
Isto começa precisamente no dia de São Pantelimão. Nesse dia, o vento da Rússia, entre nós chamado muscal ou crivatz, varre com o seu hálito de gelo as extensões imensas, mas porque a terra ainda queima como um forno, o muscal perde ali alguns dentes. Não importa: desde há dias sonhadora, a cegonha assesta o olho vermelho no que lhe faz carícias ao arrepio das penas, e porque detesta o moscovita parte para regiões mais clementes.

Os Cardos do Baragan, Panait Istrati, Assírio e Alvim, tradução de Aníbal Fernandes

domingo, 12 de dezembro de 2010

Gare de Santa Apolónia, 1984

Eu? Eu quem sou? Um gajo de meia idade com umas olheiras fundas, suspeito até que doente, um mau estar que me acompanha e me impede o riso. Quase um mau hálito intenso ou uma espécie de lepra. Um navio em quarentena. Olhai atentos para quem sou… Pois dareis comigo, eu, o literato de barbas longas e nenhum sorriso. Prestes a desempregar, como, de resto, tantos outros, de facto, tão igual que nem me reconheço no meio da debandada, nem me encontrarão, imerso em livros, mesmo que me procurem. Sim, molhado em livros, moinhos que quase me afogam, outras vezes, quase me desatralaçam dos dias, enfim, um bibliotecário em fim de estação, sentado à chuva, ao cabo da gare, vai para quinze anos, vendo o comboio que vagaroso, parte. Quando se me acabar o dinheiro não sei o que vai ser de mim. O que comerei? Como pagarei o quartinho?
Que parte tantas vezes, este comboio. Sei que parte porque os afortunados que nele tomaram lugar, brandem sorrisos e deixam sobre os carris lágrimas duma convulsão que é como o mundo, umas vezes vulcão, outras cinismo, um gelo que vai apertando na garganta e que pesa como o raio. Talvez por isso tenha uma especial predilecção por estações, carruagens, carris, e essas coisas de cheiro vivo e aspecto sujo…
Não vivo sozinho. Tenho mulher e filhos. Entre o tempo que perco na biblioteca e o tempo que ganho, aqui na gare, assistindo às partidas, desfaço-me de mais de quinze horas diárias. O resto. Ora bem, quinze minutos para cada filho, dá à justa para um beijo, são quatro, uma hora, e vão dezasseis, dormirei, caso o consiga, quê, três, quatro horas, ao todo, chegamos já às vinte, o resto é para lavar os dentes, lavo tanto os dentes, cinco horas por dia a escovar os dentes, à bruta, exausto, sempre às escuras. Por norma não mudo de roupa. De mês a mês, havendo uns dez minutitos disponíveis, sento-me a escrever. Na mesa da cozinha. Quando há silêncio por toda a casa e quando, porque não estou enjoado, a minha cabeça vira e rebrilha como um fogo de artifício que quima palavras. Uma vez mais, na minha mente locomotivas diesel e algumas ainda a carvão que, quando arrancam, me deixam entregue às trevas. Tal qual os meus amigos, que já todos arrancaram e como o fizeram, com que espavento, vrrrummmmmmm; quando arrancaram, foram trevas que a mim se colaram. Mas voltemos aos dez minutos de escrita. Creio que me não enganarei nem mentirei se reconhecer que estes dez minutos serão tudo o que nesta vida eu faço de útil. O mais, o mais é de deitar fora. Ó Kafka nunca quererei queimar os meus escritos, antes queimasse as minhas mãos… Vem um pensamento da minha meninice e arranca-me um sorriso, coisa rara. Já vos disse que também lia. Aqui e acolá. Ainda bem que lês, meu filho, a literatura levar-te-á longe, era o meu mestre escola quem dizia. Pobre bastardo. Ainda hoje eu não sei se essas seriam bem intencionadas… provavelmente sim, seriam, isso sim, ainda que bem intencionadas, pura ignorância, era um pobre homem do campo, num país de pedras. Fornava escritores e só se lhe ouvia, “Tanta gente, Mariana”; “A República dos Corvos”, andam “Sinais de fogo” pelo ar, é assim este meu Portugal, sou eu assim, este pequenito mulato…
Eis o que me proponho fazer: vou seleccionar dez partidas de dez comboios diferentes que chegarão, findas as suas viagens, a dez destinos diferentes. Dez destinos que poderiam ter sido os meus, mas que, por inércia minha, nunca o serão. É isso que me fascina nas estações de comboio, a partida, estridente, dolorosa, a viagem, e essa já é do reino do sonho, e a chegada, que é romântica. Engraçado que, ao cabo de cada viagem eu sinta um copo de jazz latindo dentro de mim, como se fizesse parte do meu desajeitado coração e como se, antecipando a vida, eu fugisse do improviso e da glória.
Então, apresentemos a estação. Gare de Santa Apolónia, 1984. Uma locomotiva redonda, azul, ruidosa e suja, cheia de pequenos focos de tensão, dez carruagens, desconjuntadas, da cor e da traça do país. Destino, Paris. A gare ainda sozinha, eu olho o chão e noto o encerado do uso, os bilhetes que são carimbados com alarido, no átrio de recepção, a chuva de chumbo que mascara as vidas, as primeiras pessoas que chegam, beijos que procuram outras faces, carícias de vinte anos, eu que saio do meu tombadilho de literatura e me acerco do maquinista, boa tarde, o senhor é que é um maquinista? E o homem diz que sim com a cabeça, olá, só o quero avisar que terá um último passageiro especial. Dentro em breve chegará Tolstoi, o gigante russo, quererá chegar são e salvo a Paris, último destino. E em surdina, cuidado com os solavancos e as buzinadelas. Tolstoi é um velhinho de saúde periclitante e em perda razoável das suas faculdades. Temo que morra pelo caminho. E com isto me afastei, maldito chumbo que cobre este céu… abri bem os olhos, conseguia ver, donde estava, a locomotiva, por deus, Tolstoi que não olhe e se aperceba do monstro que ali está, como é feia, e a última carruagem, onde eu sabia, entraria Tosltoi. Finalmente chegou, arrastava consigo, por cima de um carrinho desses de rodinhas, uma carroça de livros. Seriam os seus. Mas que pergunta. Enterrá-lo-iam? E é então que eu berro para a gare plena de gente, Tosltoi embarca a caminho do paraíso. Que velho bizarro. E aquela gente toda, sem sequer mover a cabeça, olha-me pelo canto do olho. Confesso que soube logo o que fazer. Juro que me apeteceu gritar ainda mais o seguinte, alegrai-vos, cabritos do senhor, nem eu mordo nem eu minto, tudo o que digo é da minha verdade. Tolstoi vem aí. Mas não, só me consegui calar. Os cabritos do senhor demasiado combalidos. Pois que esta vida é uma puta rachada ao meio. Enquanto ouço o maquinista, arreda as pedras que quero arrancar.
E este tanto chega para hoje. Amanhã, Tolstoi, apesar de combalido, conversará com Óscar Málaga Gallegos. Sobre quem? Ora, sobre a trapezista, quem mais. Há sempre uma companhia de circo na algibeira de qualquer grande escritor. São seres extraordinários. Cronópios! Libelinhas às cores que comem o chumbo dos dias.

Nuno Monteiro

domingo, 5 de dezembro de 2010

N'zid

O sol escoava-se inteirinho entre o tempo assim assim, parado. A cidade era amarela e tu vestias uma saia verde e vinhas descalça, sorrias, trazias rímel pelos olhos e dir-se-ia que para trás encosta abaixo soltava-se de ti um rubro sonho. Vinhas para próximo de mim e eu, enquanto, ouvia um dedilhar longínquo de guitarra e sentia toda a terra dentro de mim, piscava os olhos e os meros compreendiam-me, a cordilheira que para sempre lá estará sorria enquanto os folhos da tua saia verde faziam floc floc floc. Tocavas ao de leve no chão com os teus pés graciosos. Primeiros? Eu esticava a mão e degustava um vinho tinto inebriante. Quente, do vulcão, ao fundo o dedilhar constante dum choro e tu movias para perto de mim e eu ficava olhando o teu sorriso imperturbáve, era engraçado, por dentro de mim a terra inteira ufanava e sentia-se o marulhar calmo e manso do mediterrâneo. Quando te conseguisse olhar por detrás do verde dos olhos renasceria e então seria uma noite perpétua que me não entristeceria. Nunca! porque por detrás dos teus olhos verdes e depois do floc floc da saia tu pararias o tempo e eu renasceria. E seria de sol e de areia e de inteira argúcia. Tal como tu, mulher da cidade amarela…

Nuno Monteiro

Porque vivemos demasiado o nosso castelo

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Faminto poema


Vejo-a e está tão sã a ponte entre a neblina. Passam os rios indecifráveis e levam-na os homens do mar quando a choram ou ainda as gaivotas quando a voam. Abate-se súbito o sol e clareia, limpa o ar e cessam os ventos alíseos. Tu cessas e deixas de chegar. Movem-se lá ao fundo os meros como se os habitasse a saudade. Sim, amigo, a saudade habita-os já. Nem sob a neblina nem no fundo. Não há Paris alguma e muito menos noite. Ó noite mais as badaladas ímpias da minha mocidade. Ferida, quiseste ir morrer longe. Paris está prenhe de novo. Nem um latido incomoda a minha noite. Eu, cessante, não durmo. Tenho fome. Tenho cada vez mais fome. É Paris quem me acaricia ronronando. Tu com fome? Veste umas asas e vai falar com as estátuas. Elas serão a tua salvação. E te não esqueças da máquina fotográfica que te mantém cativo. Na noite, por debaixo da ponte metálica, procuro o sol que tu foste, procuro a minha viagem, o meu comboio, limpo-me da minha Sibéria. Sei, ao cabo de quase quarenta anos que não há fama nem fortuna em lugar algum… nada que preste nem nada que resista. Mas há tentativas tantas quantas manhãs. E que algumas renascem esperanças…

Nuno Monteiro

domingo, 28 de novembro de 2010

"O Balouço", de Fragonard

Como balouça pelos ares no espaço
entre arvoredo que tremula e saias
que lânguidas esvoaçam indiscretas!
Que pernas se entrevêem, e que mais
não se vê o que indiscreto se reclina
no gozo de escondido se mostrar!
Que olhar e que sapato pelos ares,
na luz difusa como névoa ardente
do palpitar de entranhas na folhagem!
Como um jardim se emprenha de volúpia,
torcendo-se nos ramos e nos gestos,
nos dedos que se afilam, e nas sombras!
Que roupas se demoram e constrangem
o sexo e os seios que avolumam presos,
e adivinhados na malícia tensa!
Que estátuas e que muros se balouçam
nessa vertigem de que as cordas são
tão córnea a graça de um feliz marido!
Como balouça, como adeja, como
é galanteio o gesto com que, obsceno,
o amante se deleita olhando apenas!
Como ele a despe e como ela resiste
no olhar que pousa enviesado e arguto
sabendo quantas rendas a rasgar!
Como do mundo nada importa mais!

Jorge de Sena, in "Antologia Poética" guimarães, 2010


retirado de: http://ocafedosloucos.blogspot.com/

domingo, 21 de novembro de 2010

O Ano da morte de José Saramago

Amadeu Baptista
&etc, Setembro de 2010


(...)
A desagregação está a marcar-nos como povo, Nuno,
o povo acabará por resistir,
mas o povo faz coisas iníquas,
pode queimar-nos a casa num espavento de ódios,
pode escolher a sarjeta contra todas as expectativas,
pode acorrentar-se ao jugo da insipiência
e deixar por isso que se fechem escolas às centenas
e que se não trate de dirimir a injustiça de sempre
no campo,
nas cidades,
na pátria,
no planeta,
enquanto a feira dos capões está viva e se recomenda
e os Impérios aproveitam o sono dos vulcões que tanto tardam
a explodir

Pombos, pombas, alcachofras, acelgas, nabos, tomates – de tudo há na feira
de antiguidades,
o mal é esse, não se ter dado baixa nos armazéns dos legumes
de tudo quanto está podre,
continuando o baile a primazia da música alienante,
alienígena,
aqui,
onde todos ralham e todos têm razão
e a morte continua a matar,
por mais que se emocione,
como o Saramago quis,
por mais que deixe de nos escrever cartas de cor violeta,
por mais que escute connosco sonatas para violoncelo
e primavera
por mais que se lancem passarolas no espaço para que a pátria se veja
num arremedo de esperança
– está morto Bartolomeu Lourenço de Gusmão,
está morto o nosso menino de oiro, sumido com o seu balão
no desconforme horizonte do Cabedelo,
está morta a Micas Bombas com os seus prodígios capilares,
está o José Saramago morto,
estamos todos mortos neste infame globo,
quanto mais mortos estivermos melhor nos escravizam

Ah, dancemos, dancemos, ainda, irrevogavelmente,
soltemos uma gargalhada visceral sobre tudo isto,
registemos a infância como padrão do dia em que começamos a esperar,
porque quem espera, desespera,
e em todas as vielas há um anjo que espera

Eu era menino
e o do que melhor me lembro é da viela do Anjo,
onde o mundo é intacto,
se mundo é o que por lá se vê,
os anjos são a única metafísica em que acredito,
comam ou não comam pequenos chocolates,
ajudem, ou não, Caim na heresia benéfica,
tratem, ou não, de contrapor à espada de fogo o fogo dos vaticínios
– os anjos somos nós no espavento de sermos,
isto sei eu que não sou um vencedor,
mas qualquer insignificância é valiosa,
qualquer migalha,
e se alguma transcendência há que seja essa,
a que dos anjos vem,
incorrigíveis
(...)

Lido em: http://porosidade-eterea.blogspot.com/

Porque vivemos demasiado o nosso castelo

Vila Cova, Campeã, Portugal

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Os pequenos instantes


Esboçava, depois de dois anos, o seu primeiro ténue sorriso. Tépido e cauteloso como a vida. Saía de manhã para um emprego e por lá se deixava ficar horas e horas sufocadas… haverá Humanidade menos valorosa? A questão paira no ar… e Humanidade menos merecedora? Se Anita seria Corajosa? Coragem é uma espécie de vida de frio, eremita cumprido de sonhos, terra ou porão de navio… Anita diria merda para a coragem e o restante da frase segurá-la-ia pois do fundo do coração não queria ofender ninguém…
Sorria pouco e a medo e mal dava conta do sorriso impedia os lábios e afogava-o. Cruel seria Anita com ela própria. Cumprira finalmente a última etapa. Pontapearia a sorte e pagaria para ver. A custo se erguia pela parede íngreme da cordilheira, dobraria as tormentas e olharia o mundo lá por fora, por cima das nuvens, por detrás dos oceanos, leria Neruda e Skármeta, ouviria zumbir a miríade de insectos coloridos que vagueiam pela noite e tomaria banho, nua ou envergando um vestido negro de gala, nas águas borbulhentas da praia da Ericeira. Alguns diriam, dedo em riste e olhar acusador, Louca! Restelo e os seus velhos, velhacos empobrecidos e pútridos. Outros, mais bondosos, encovar-se-iam e chorariam sós, no interior sulfuroso de alguma casa de banho. O vento atiçar-lhe-ia os cabelos vermelhos entrelaçados como algas e Anita nadaria para os fundos lentos e assintomáticos onde vivem os meros.
A pouco e pouco compreenderia que a cordilheira é a própria vida. E que os poucos e pequenos instantes de sensatez são aqueles em que, no calor da batalha, se olha em volta e se olham os outros, os outros diferentes que lutam como nós.
Mas não os outros que, parcimoniosos e fartos de falinhas mansas, recorrentemente atiram areia aos olhos quando dizem, merda para esta vida, puta que a pariu. Apogeu de Judas! E será nesse instante que Anita, imbuída dum transe poético pensará, agora que finalmente sorri, não vou trair–me mais, onde fica o terminal de autocarros? E gentilmente se despedirá olhando já um adeus… o doido do circo, saído da tasca dir-lhe-á, adeus à terra imbuída de noite! Verás um amanhecer esplendoroso que não durará mais que instantes teus.

Nuno Monteiro

sábado, 13 de novembro de 2010

Ericeira, algures num recorte de papel


Se o queres salvar toma-o e lê, em teus lábios encontrei um mundo abensonhado, uma leira de terra e nela ergui a minha cabana, era ali mesmo ao cabo da terra, para lá dela, para ocidente, afundava-se a água e viviam os meros.
Recordo o teu colo nu. Sorrias, tinhas um sabor a morango e saltitavas louca das pernas esguias e dos olhos mudos, esquecidos. Da pequenita casa de madeira donde olhavas, logo pela manhã, o céu e o mar, lembravas uma escuna galopante, ávida. Recordo como me dizias, vem comigo para a praia e deveriam ser seis ou passariam trinta das seis. Era Verão então e tu vestias calções e cobrias os seios com um pedaço de pano branco. Davas um laço simples ou então ias-te de casa como se te não preocupasses… Passavas por mim a voar e eu ficava sentindo o teu cheiro doce. Quando te ia para tocar já o sol zombava alto, já um tépido calor subia pela areia e já teus pés, envoltos em pequeníssimos cristais de quartzo diziam en garde mundo, eu vim para te salvar e dito isto submergias na espuma das ondas e eu retinha o instante em que a tua cabeleira farta se ocultava contigo. Era ao fundo do mar, na companhia dos meros, que finalmente nos tocávamos. Recordo uma vez mais o teu colo nu. Apenas um colo em curva e uma pele tisnada, ardente. Lembro que sempre que engravidaste me ofereceste uma borboleta rosa. E era sempre ao fundo, onde a calma era completa, onde o mundo, alheio a tudo, nos vivia palpitando.
Sabes, adoraria que algum dia me vertesses rindo, nas páginas dum livro! Um dia obrigar-me-ás a escrever um. Será singela a oferta. Mas então não haverá mais tempo. E o mundo sucumbirá.

Nuno Monteiro

terça-feira, 9 de novembro de 2010

O lado cinzento das nuvens


Chove. Amainou o vento e ela agora cai, direitinha do céu. Toca o chão e transborda para dentro de mim. Eu, invariavelmente irradio e verto escorreito para este papel electrónico. É isso! Arrastei minhas raízes até esta terra amaldiçoada e agora verto estas que foram as minhas últimas lágrimas. Não temais mais! Não tenho quem me agrade e nem há quem me aceite. A água arrasta os rios para o fundo dos mares. Cheta? Nem vê-la. Resta Paris. Paris deambulada durante a noite. É de borla. Uma página por dia deverá render-me uma refeição diária…
Chove abundantemente. Os ratos correm à procura de abrigo. Vão todos para debaixo das pontes. Insuportável eu lá ficar. Qual é a lembrança mais pequena que tens?… levanta-se um vento caótico… Quisera que tudo não passasse de um aguaceiro, aceita estas que são as minhas últimas lágrimas. Sr. redactor fotografei o Outono. Um Euro por cor? O meu avô, nas escadas, contando histórias… não te lembras dele pois não, pois não, mais terno ainda, imagino-o.

Nuno Monteiro

sábado, 6 de novembro de 2010

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

"Scout"

Scout era uma pequenita descalça que chegava sempre atrasada à escola. O estilo olhos aventureiros corpo franzino e cabelo desalinhado contados que estavam doze anitos. Havia a escola e havia a matemática, havia o recreio e o caminho de terra que percorria só, ou acompanhada de Pedro… Porque Scout ainda não o sabia mas crescesse desataria com críticas de adulto do género, meu deus, mas será que esta escola me interessa se me cortam a criatividade e se me obrigam a calçar sapatos duros e tensos… ou ainda em criança, Pedro, vamos tomar aquele atalho e o barco nunca mais acabava, Olha Pedro, conheces a árvore da bruxa, vamos lá ter com ela e a conversa não mais terminava, caída a noite, lá vinha Atticus, um pai gigante, Scout, direitinha para casa, e se lhe dizia palavras duras os olhos diziam brandura e confiança, como quem soletra Tu és tudo o que eu sou, aprenderás o mundo e farás uma cabana na árvore. Deixar-te-ei lá dormir a primeira noite. Scout adormecia feliz. Não sem antes lhe perguntar Pai, julgas que esta escola me fará bem, quem deverá valer mais, os olhos e o ímpeto que eu sou ou o número que jaz por detrás de mim. Atticus calado. dEUS meu, que esta rapariga se imponha perante a vida…

Ainda e durante tanto tempo a propósito da Harper Lee!

Nuno Monteiro

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Por favor, não matem a cotovia

Três dias sem tirar uma única fotografia e que tempo esteve para tal. Quanta nuvem e que chuvada, que saudades da chuva que me não molhou, ou do vento que me não empurrou, que chuvada se esbarra contra as minhas vidraças e cá dentro, cá dentro só estou eu e o livro, eu e a minha biblioteca, não estive com meias medidas, com os meus pulmões doentes, não retirei um pé da cama e enquanto isso, bem, todo esse tempo estive entretido com um livro que achei delicioso, "To kill a mockingbird", um daqueles que nos faz reviver a infância, um daqueles que nos faz repensar a idade adulta, narrado por uma miúda duns oito anos, mas dotada duma inteligência e duma acutilância, dei por mim a desejar ser o Atticus, o pai dela, numa qualquer barra de tribunal...
Aconteceu, aconteceu que à medida que o lia eu ia melhorando, mas não apenas dos pulmões, eu fui melhorando e doravante, bem, de hoje em diante pintarei uma cotovia na minha T-shirt e chorarei enquanto me não convencer da Humanidade. Escreverei um texto breve ao qual chamarei "Scout". Em honra dela, da cotovia...

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Os olhos de adão e os pés de eva

O grande e majestoso deus, com as suas mãos de camélia, veio ao chão grande buscar um pouco de barro e amassando-o, tendo-se entretido mais que a conta, deve ter fartado pois atirou-o borda fora…
À data, o grande deus viajava de barco e havia uma quantidade enorme de pequeninas gentes que o remavam!
O bocadito de barro, intrépido e volteante, acabou de ganhar forma pelos ares e quando caiu, aterrou nas areias de uma praia lindíssima. Dois pés de mulher, o grande deus fizera, quase sem querer e o vento depois moldara, dois belíssimos pés de mulher. Ainda não havia a mulher, ainda não havia a face, ainda não havia o colo, as pernas e muito menos os cabelos ou os olhos. Mas já lá salteavam, praia fora, os pés, o esquerdo e o direito, frondosos, saltitando por entre a preia mar, evitando os recifes.
E durante muito tempo, o deus, tendo-se enfastiado, não quis mais moldar e quase abandonaria a arte não fosse um ou dois traços de teimosia. E durante todo esse tempo os pés zombariam indecisos e nús pela praia.
Contudo, o deus, magnífico, tempos depois, criaria dois olhos e arremessá-los-ia para a mesmíssima praia. Teria havido intenção? Tenho quase a certeza que não. Finalmente os olhos de imediato olhariam os pés e de repente se apaixonariam…
Então, o grande deus, embora já se enfastiasse ainda não se tinha tornado mau e daí vai que, tendo-se apercebido do que se passava na praia pegaria numa paleta de barro e desenharia uma macieira e nela colocaria uma enorme e suculenta maçã. Acabando adão entregar-lhe-ia os olhos que antes deitara para a praia e acabando eva entregar-lhe-ia os pés, belíssimos que havia tempo se encontravam na praia. Assim, adão entreter-se-ia com os pés de eva e nem olharia para a maçã. O paraíso seria para sempre paraíso e a maçã, acabaria por cair do quadro para o chão e madura, comê-la-iam os vermes, esses glutões.
Deus, admirando adão e eva no paraíso pediria aos seus súbditos que dali o remassem para fora e pegando num novo bocado de argila, teria desta feita mais cuidado e em vez de pés de mulher, durante um sono de adão, pensaria na história mais que badalada da costela.

nuno monteiro

terça-feira, 26 de outubro de 2010

No canto da Escrevedeira


Houve uma princesa moura que cá viveu… as escrevedeiras são pássaros pequeninos que vivem muitos anos e são tão coscuvilheiras que conhecem todas estas histórias de princesas. Era assim que começava a composição da Lua. Uma princesa moura que cá viveu! E essa princesa era bonita? Ora se era, alguma vez ouviste falar dalguma princesa que não fosse bonita de morrer… bem, mas o facto é que por detrás de todos os lindos vestidos a princesa chorava. Oh! Então não era feliz! Mas, ó escrevedeira, como saberás tu que a princesa não era feliz… ora essa, defronte do quarto dela havia então uma nogueira tão grande onde eu pousava e ouvia-a, era um choro que quase se diria uma eterna declamação, ou um lamento baixinho, um sussurro como se falasses para o vento te levar as palavras. Isso, o vento era o carteiro da princesa, levava e trazia novas do namorado, mas, ó escrevedeira o que ouvias tu, que dizia essa princesa? Sempre que o vento soprava para sul, para as terras onde estaria o príncipe de quem ela gostaria, ela entreabia um pouco a janela e cantava

Belo príncipe por quem eu me apaixonei
E que eu não vejo por vontade de meu pai

Quando o vento soprava mais furioso e a nogueira rugia eu não conseguia ouvir a melodia, tinha( isso sim) que me agarrar melhor aos pequenitos galhos que pareciam terramotos…

Pudesse eu ter um cavalo destemido
Ou fossem meus os caminhos que trilhei

Porém houve logo quem perguntasse, ó escrevedeira, mas se essa moça era árabe, declamava em árabe e então tu, um simples pássaro, como a percebias? Ora essa, pois que no final de cada ventania e mesmo quando o sopro estava no auge, se ela deitava pela janela um cabelo preto longo que logo voava para perto do namorado, que crês tu que ela declamasse?
O Professor: Lua, parabéns, a tua composição está muito bonita!
A Lua: sim professor…
O Professor, outra vez: Como surgiu essa história?
Contou-ma a escrevedeira, ontem, à noitinha, depois do jantar, empoleirada no galho da Nogueira…

Nuno Monteiro

domingo, 24 de outubro de 2010

domingo, 17 de outubro de 2010

O Tango do Mundo

Nos olhos a saudade:

adoro as tuas pernas de Buenos Aires e os sapatos pretos que te encantam bailando,
o triângulo de cetim que se dobra sobre ti como se fosse traição,
o sangue que te inunda a face e te cora de vergonha ou a mudez que te leva dançando
adoro as tuas mãos que tocam gentis e esse teu passo arrastado, quase cansado

Um tango que te leva:

Tuas as mãos quiseram as pétalas que te escondem os mamilos
Enquanto
água suada te cai pelo rosto e tu ris por fim
o cabelo apanhado em espuma vermelha
e uma figura de linho que pousa no chão um pé oblíquo
e estendendo o braço pede um abraço.

A viagem transcontinental:

suga-a em Paris, apalpa-a e obriga-a a uma dança
um trago de emoção
mistura-lhe o coração
trá-la ausente do traço
fá-la descrente
no mesmo braço, presente e ausente, com os olhos fitos num laço


À noite:

Envolve-a num carro sobre a escuridão
Parqueia em frente à mansão
Atravessa Versailles, franco e confidente
Envolta-a num pano preto e
Condu-la às cegas…
Quando do mundo suficientemente retirados
Morre-a na madeira do chão.

Nuno Monteiro

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Sessão pública de apresentação


Não estando no poster escrito, diremos que o Clube de literatura terá muito gosto em rever todos os antigos alunos que queiram marcar presença... e sendo esta uma sessão pública de apresentação podem e devem trazer amigos e familiares... Os interessados deverão dirigir-se, à hora marcada, às instalações do Colégio da Boavista.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Ao Chile

Puro, Chile, es tu cielo azulado,
puras brisas te cruzan también,
y tu campo de flores bordado
es la copia feliz del eden
Majestuosa es la blanca montaña
que te dio por baluarte el Señor,
y ese mar que tranquilo te baña
te promete futuro esplendor.
Refrão
Dulce Patria, recibe los votos
con que Chile en tus aras juró.
Que o la tumba serás de los libres,
o el asilo contra la opresión.

(Hino Chileno, Eusébio Lillo e Bernardo de Vera y Pintado)

Troy

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Sangue, suor e Tango


Dentro de mim sinto que não tenho nada! E finda a oração apagou a luz e dormiu. É que enquanto se diz que a vida se leva de vencida com as regras da ditadura ela sempre teve um fraquinho por Bakunine e pelos reles e utópicos anarquistas. Durante o sonho teimava em lábios pintados e pernas vestidas por mãos masculinas, pensava em fumar e vestir longos vestidos enquanto dava grandes saltos, de palco em palco na mítica Buenos Aires, por vezes cigana, mostrando os lutuosos cabelos pretos ou, espanhola, fogosa, uma litania que debulhava de dentro dela e lhe tirava a roupa e a percorria, à flor da pele, empalidecendo. E mesmo que desmaiasse nada temeria pois que ele dela se acercaria e tocando-lhe os lábios de novo a traria à vida e então, olhos nos olhos lhe diria, despe-te…
Uma anarca incipiente, ainda agora saída do ideal revolucionário do romantismo…
Dentro de mim não há nada! Apenas um crucifixo, um quarto nu, liso, húmido. São as regras da vida pura que me despem das cores e me não pintam os lábios. Adormece a olhar a televisão, mantém o bando de cabelos pretos escondidos entre a almofada. E mesmo antes de adormecer o que olha é a silhueta de um comboio andino e murmura, vai vazio de mim enquanto eu, eu cá fico vazio dele…
Feita adulta, para além dos cabelos pretos demoníacos, completavam-na dois pares de olhos escuros que fuzilavam por tudo e por nada…
Nuno Monteiro

domingo, 10 de outubro de 2010

sábado, 9 de outubro de 2010

Do que eu vou lendo...

(…) Escutei com satisfação esse ruído múltiplo, de sonoridades secas e perfeitamente adequadas à melancolia das memórias antigas; e em breve o sol voltou a brilhar, restituindo-me a mim próprio, com esta imensa bênção do universo que todos experimentamos num momento qualquer das nossas vidas, a fragrância mais delicada que existe no globo, simultaneamente a mais jovem e a mais imemorial, a mais tenebrosa e a mais inocente, a mais próxima do início do mundo e a mais nova, aquela que agita no coração humano a maior tristeza e a maior alegria: o perfume da terra molhada.

Julien Green, Paris, tradução de Carlos Vaz Marques, Tinta da China

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Do amor duma estátua


Morava uma estátua num quarteirão em Paris, numa praça dum quarteirão em Paris, ao fim duma rua dum quarteirão de Paris. Talvez em Paris não empreguem o termo quarteirão. Defronte dela, da estátua, morava uma outra estátua, com longos cabelos pretos ondulados e seios não tão pequenitos assim, que aleitavam.
Num dia de ventania, escuro como breu e julgando ver Satanás ela gritou um silvo horrível e vergou-se de joelhos. A estátua tinha partido os ossos de ambas as pernas. Foi quando a outra estátua, eu, arranquei os meus pés do chão e caminhei como sobre betão e ferros retorcidos até chegar junto dela. E junto dela, após exterminar os fantasmas e os abutres que a profanavam com gestos e gritos orientais, peguei-lhe ao colo e aluguei, numa pensão barata um pequenito quarto. Foi quando finalmente descobri por que “Paris nunca se acaba”. “Entalei-lhe” as pernas durante quase dois meses para que, cicatrizada a ferida, se não notassem cortes nem cicatrizes. Há que ter estes cuidados quando tratamos com a aparência das estátuas mulheres... Lavei-lhe o corpo uma vez por dia ao longo desses dois meses, e vim a perceber, paulatinamente que a estátua de cabelos longos ficou perdidamente ardida de amores por mim…

Nuno Monteiro

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Argentina

Vestias as tuas pernas
Envolvias os teus pequeninos seios
E dançavas um tango arrastado
Que não era mais que a vida
Subias ao palco enlouquecida

De súbito chegou quem te bateu
E tu fechaste os olhos e enlaçaste os braços protegendo a face…
Deitaste as roupas à mala
E viajaste
Na noite
Por este mundo
Crua
Imóvel
Vertendo por aqui e por acolá
Um pequeno sorriso acanhado
Mas bonito

Rocamadour

domingo, 3 de outubro de 2010

Um nome para a criança


Quietude na casa da floresta. Caído parte do telhado, o velho, o dono, quedava sentado na poltrona olhando a pequenita eira de terra que havia defronte, antes das grandes árvores. A minha casa está em ruínas, e quando o dizia, repetidamente, fazia um esforço para segurar na caixa de ferramentas e por instantes, julgava ser um jovem todo poderoso. E contudo sabia ser velho e doente. A caixa de ferramentas permanecia imóvel. A poltrona onde ele se sentava e a casa, por detrás do alpendre, um pouco mais caída. Como um enorme tempo puído.
Caída a noite. O velho movia devagar para a cama, após uma frugal refeição. A vela apagada. Um luar inundava-lhe o quarto pois que lhe entrava pela janela. Zorro, o cão, velho como ele, deveriam ser duas da manhã, quis latir. Rouco, mal inundou a noite com três ou quatro ladrares. O velho que espreita para a pequenita eira de terra defronte. O luar que inundava e dava para ver uma mãe vestida de farrapos e um menino de colo. Parados. Bem no meio da eira.
Quem está lá! Então a muher aproxima-se e em dando com as escadas do alpendre, ajoelha bem no primeiro lanço de casa. E diz. Por favor! Albergue a mim e ao meu filho já que não há nada mais para nós no mundo. Mas o velho! Albergo! Pois albergo! Mas que a minha casa está em ruínas. É das minhas pernas e dos meus braços e desta maldita velhice. Já não sou ninguém… não se aflija que eu posso bem com qualquer trabalho de homem. E dito isto, Zorro, sossegando, deitou-se outra vez a dormir.
Como se chama o seu filho? Este não é meu filho, é apenas um bebé que eu tirei do rio, alguém passara na ponte e o atirara borda fora, digo eu, que não vi, mas o menino, o menino ali estava, encarquilhadinho e vermelho de raiva…

Nuno Monteiro

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Colo enfeitado com medronhos

Em certas madrugadas, encontro dias que se suicidam quando, de rompante, eles se deixam sufragar em mágoa cinzenta de chuva leve. Ao escuro da noite, lá no ponto cardeal, desponta uma luzita que és tu e então digo Bom dia pequenita mulher, como estás! E a madrugada é só arrebatamento, uma irrequieta passarita que pavoneia. Corre o tempo, devagar, tão depressa. Eu? Estou bem muito obrigado e logo ruboriza, um rubor escarlate como cabelos de poesia, como uma madrugada com seis horas, olhos atentos, bulidores, ainda vencedores. Fica muito espantada, a pequena sereia quando eu lhe digo que também eu, não sou como os outros. Eu sei que dentro dela há muitas vidas, há enormes vagões que se lambuzam vagareiros por essas estradas de montanha. Sei também que a madrugada, ao crescer, cedo a avisará que se deverá decidir por um caminho… Súbito crescem as nuvens e o fio de cabelos esconde. É o prenúncio. Uma breve luta e a moça agora sente medo. Não tenhas medo, sê tu própria, mas a moça qual quê, o medo cresce e abunda-a, ignora-a enquanto a torna prenha. A madrugada está perdida. Tem apenas lugar uma mecha de tempo, durante o qual a mão, pequena, redonda, raspa por um medronheiro e tira cinco ou seis desses frutos. Em vez da ciganita que poderia ter sido, sufraga pelas areias do deserto. A madrugada despontará dia, cinza chumbo e haverá uma moça, de tantas que poderia ter sido, uma quedar-se-á, cabelo escondido, apanhado em caracol, E se essa escolha ocupar lugar, uma mais como tantas, dentro dos olhos dela, morrerão esses mirones verdes sonho com que um dia, cedo na madrugada, se quis insinuar…

Nuno Monteiro

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Vidros derretidos


Haverá um dia, seja um dia de chuva, uma espécie de Outono miúdo, e então acontecerá, a ventania cravejar-se-á contra a tua porta como punhal e tu cavarás um poço de medo, bem no centro de ti,
(por toda a vida corre uma tinta de desgaste um fiozinho de lágrima)
rodeia-te a escuridão e o desassossego apesar das cores e das pétalas, tragar-te-á, esse poço e tu ditarás gritos mudos para uma espécie de papiro antigo, um livro inútil, uma espécie de literatura falhada que te iludirá, que te comandará, que te ditará uma única lei. Foge. Vive uma vida de fuga, de deambulação, de tristeza melancólica, fecha os olhos, senta com ela, a estátua dos teus sonhos, olha-a nos olhos e cinzela-a com tuas mãos nuas, prenhas. Enquanto foges. Sê breve, curto, surreal. Sai pelas ruas, em agonia, cumprindo etapas, apanhando do chão as cores vermelhas da morte.
( a humana urbe um local vazio, pendente, ofegante)
E então serás um descrente, uma luz intensa que desapareceu no breviário da noite. Do poço, bem do lodo do fundo gritarão em turbilhão todas as maldades do homem e todas te atingirão, como freios, vermelhos de dor, nessas manhãs invernais donde sairás jamais.
(Já me não lembro do último comboio…)

Nuno Monteiro

domingo, 26 de setembro de 2010

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Os homens que teimam em não acordar às quatro da manhã


Quatro horas, dentro em pouco acordaria, levantar-se-ia, estaria sozinho em casa, um lúgubre casebre e sabia que nada haveria para comer e nada haveria que escrever, sabia incessantemente que ninguém haveria para conhecer, sabia, fora de tempo, que nunca apertaria a mão a estátua alguma, não conversaria em castelhano com poeta algum, não visitaria pintor esquálido ou qualquer artista de circo.
Quatro horas, acordasse?, ligaria a luz, não!, não a ligaria, não adiantaria pois ela não acenderia, não pagara a conta da luz, há quanto tempo deixara de ter dinheiro?, por dentro dele, a solidão e a fome e o frio. A santíssima trindade… Não serão as três a mesma página? Em meio deste Outono, não consigo vender um único texto, não consigo vender palavras então por quê escrevê-las, talvez por casmurrice, ou talvez por sorriso, infortúnio, desprezo.
Quatro horas, que mania de escrever o que nada alguma vez haveria para escrever. Talvez por isso, talvez por se ver inclusive despojado de princesas e de momentos de alegria, talvez por se ver cercado de frio e fumo, talvez, ou talvez não.
Cinco para as quatro horas, é o filho de Pedro Páramo quem com ele priva, és tu que insistes em viajar até Paris? És tu quem insiste em mendigar em Paris? És tu quem insiste em fugir com uma ciganita de longos olhos com cor de caramelo? És quem se faz passar por Homem mais Forte do Mundo? És quem quer matar meu pai, o ignominoso Pedro Páramo?
Não para todas as questões, sim para todas as questões, um minuto para as quatro da manhã e os telhados da minha amada cidade estão imóveis, aguenta-os uma neblina maldita que não é mais que o sustento da sagrada família. Em que mundo julgas que vives? Não saberás que há muito aconteceu a minha morte? Olha, esgotou-se o teu minuto. Afinal não és eterno. Todo o pasto dos homens está em chamas. Há apenas um carreiro e esse está ocupado a ferro e fogo pelos arcabuzes em ferrugem, fugidos dos céus azuis, pintalgado como um balão remendado por lendas de folclore e teatro de rua.
Não, por favor, não te vás ainda, ainda te não disse meu nome

Nuno Monteiro

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A filha de Jesus Cristo verterá filhos e lodo para esta terra


Enquanto lá fora, nas ruas, os ventos outonais arrancaram as primeiras folhas, surgiam os tons vermelhos e acastanhados, numa espécie de absolvição da vida ou confronto com a terra, ei-la, à consagração e ao altar; foguetório em surdina , nessa noite descerraria a estatuária e se manteria, alargada e bruta zombando dos olhos.
( em alguma casa modesta alguém afirmará tão tarde na noite, há um escultor que suplantará todos os outros)
Os pés vazios mantinham-se numa angústia por detrás das vidraças da casa, suados, esquálidos olhavam a cidade envolta nesse outono, detinham-se no cabelo encharcado e no vulto dos castanheiros que se inclinava incerto. E nessas alturas, por que não poderiam as mãos destrancar as portadas e abandonar o éden? Sim, quantas e quantas vezes, a filha de Cristo, a dona desses pés esquálidos quisera atirar essa batina ao chão e, abraçando o anti-cristo, viver alagada, cruzando os tons vermelhos de sangue e do Outono, até carregar no ventre, até à saciedade.
( o anticristo virá fecundar a terra com milagres, alguém o dirá numa casa modesta )
Nesses dias, cruzados de chuva e vento, nas noites em que, zombeteira, se vestia com uma batina preta, deixando os pés vazios, vagueava pelas ruas monumentais tacteando as cores e as texturas das pedras, nesses dias, dorida, ergueria uma babel de livros… Por vezes, de noite, cruzando com olhos de outras etnias, algum castanheiro a interpelava ao caminho e a beladona, com um esgar de mão o afastaria, logo depois mudasse de passeio. Outras vezes, estacada, era capaz de fechar os olhos e sorver o ar, carregado como estaria desse primórdio dos tempos; a pouco e pouco embruteceria, da terra no ar, desse sabor de nudez.
(os lobos do fim da rua enovelam-se numa algazarra do cio)
Acordada do sonho e lambendo ainda a seiva da terra molhada ouviria ao longe os alvores do circo, havia uma batina preta que a encerrava e esquecidos e tombados, ao fundo das pernas esguias, os pés esquálidos que lhe traçavam o caminho.
O “meu reino é apenas deste mundo” dirá o anti-cristo, se alguma vez a abraçar. Este é o mundo que toca e foge, a verter humores, sempre a verter humores, nas breves risadas e telas vazias…

Nuno Monteiro

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A Óscar Málaga Gallegos


Vive nas asas de glória de uma tenda tuaregue. E porque é eterna a infância, houve um sorriso e um beijo, um abraço trocado; crescido, as asas e um vento dali o levaram, hoje, um grande senhor, um homem garboso, esta é uma noite, estrelada, ao deserto, ele revive enquanto chora. Tem rugas no rosto embora por dentro ainda seja criança, o vento empurrou-o para uma mágoa de ter crescido…
No dia seguinte partirá, afrontará a distância e levará as saudades para um qualquer outro local, enriqueceu; que interesse para mim tem todo este ouro?, ainda que tivesse mãos de artesão e com elas pudesse trabalhar o rosto da minha princesa, ainda que assim fosse, não seria o rosto da minha princesa, porque o ouro, do brilho intenso, não sorriria incerto como o rosto dela. Bebia dum trago e num sufoco decide; batendo as mãos, madrugada, de imediato vinham até ele dois lacaios, lacaios! Ouvi bem, mandai homens com cavalos, na direcção dos pontos cardeais, procurai a minha amada, mandai ditar prosas pelo chão, dizei avisos, eu esperarei eternamente, a minha tenda, preta de dor, viverá à deriva, nas areias salgadas e ardentes…
Pois que a encontrem, então, por esse mundo fora. E que se não deixem abater, os valorosos cavaleiros do senhor, já que a tenda, a casa, vive de saudade, vive de cantigas, vai constantemente ao encontro de outras paragens, deambulando como louco, vazio e arenoso, calado ausente.
Os olhos pousam nos outros olhos e sempre que esses outros olhos apagam, Pedro, que é Rulfo da parte do pai, crê-se a ele próprio vivo pois que as asas que o impelem, cegas, não têm lugar num mundo como este… sobrevive escondido por detrás das túnicas pretas do deserto, num desassossego de tragafogo.
(Há tantas pequeninas histórias de saudade), olhai, lá parte o comboio, mas, embrulhada num livro, eu bem a vi, o que é que a mim me escapa, eu bem vi, Maria Romaninoff, a pequena princesa russa, embarcando, dona de um vestidinho de lantejoulas brancas, a via láctea pontilhada, carregada ao colo como só ela entrega de mamar ao filho.

Nuno Monteiro

sábado, 18 de setembro de 2010

Do que eu vou lendo...

(…) E o Homem Mais Forte do Mundo, docilmente, seguiu Dom José, que regressava à sua caravana.
- E qual é o seu milagre, Dom José?
- Saber falar, saber dizer as coisas no momento adequado, é esse o milagre mais importante do mundo, Homem Mais Forte do Mundo, aprende.
- Mas desculpe, Dom José, nisso das indulgências, do milagre, creio que o senhor mentiu.
- Dom José olhou seriamente para o Homem Mais Forte do Mundo, pôs-lhe a mão direita no ombro, sorriu.
- Recorda toda a tua vidinha, a verdade é apenas um problema técnico.

O Segredo da Trapezista, Óscar Málaga Gallegos, tradução de Jorge Fallorca

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

O alforge do Senhor


António, leva lá o vale à senhora e diz-lhe que é para mim, ela consegue ver-me lá do longe, mas se não, diz-lhe, diz-lhe que é para mim, e então diz o meu nome, repete aqui como terás de fazer lá, e ele dizia o nome, diz-lhe também que eu sou a tua mãe e que tu és o meu filho, e que tens que mostrar este cartão, não te esqueces, este cartão, este de plástico, e com isso calou-se, a senhora, enquanto olhava o filho que lá ia, rezava tanto quanto sempre havia feito, ele há-de ser capaz, ele terá que o conseguir um dia, e lá por dentro, preocupada, Jesus como eu estou velha, como será quando estas minhas pernas de velha não me deixarem vir aqui sozinha, como será a vida deste meu filho que não consegue sequer dizer o meu nome, que não sabe sequer que eu sou a mãe dele; quem a olhasse havia de ver a lágrima que não pôde reprimir, quem olhasse deveria ver a dor. Mas não, os que olhavam, viam apenas sujo, o borratão negro e amolgado.
Ao balcão, o menino, muito a custo, vinha levantar este dinheiro para a minha mãe… eu sou o António e aquela senhora acolá é a minha mãe, é velha e não pode mais dos joelhos, por isso venho aqui eu, por isso estou aqui eu, quer ver, olhe, este é o meu cartão, foi a minha mãe quem mo deu… um sorriso na face da senhora, não preciso, vejo daqui a tua mãe, olha arruma bem o dinheiro e dá um beijinho na tua mãe por mim e diz-lhe que tudo vai correr bem… o menino metia o dinheiro na algibeira mas logo de seguida, desgraçadamente, esquecia tudo, esquecia a mãe e o dinheiro e sem dar acordo de si, descia a rua em vez de a subir para onde estava a mãe; outro pingo de lágrima no olho, a pobre senhora, uma vez mais, gritava e corria e corria e gritava, o meu António, o meu António… e os que olhavam, que viam apenas sujo, um borratão negro, mais amolgado, afastavam-se para dar licença. Segredavam entre eles, coitada da senhora. Porque a casa não era a deles. Deus me livre e guarde. Era o que diziam todos…

Nuno Monteiro

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

A mexicana maior


Precisava de mais alguns centímetros! Deus não lhos concedera. A altura e mais uns quantos atributos. Dera-lhe a graça e a destemperança. Emprestara-a ao diabo e por lá a esquecera. A moça, recostada numa mesa de black jack, olhava a mesa e pelo canto do olho mirava-o. O seio arfava, desinquieto, por dentro do espartilho… pesava nas noites anteriores sem sono, cansada, habitava nela um truculento azedume, uma faca rútila, um leve rubor e um fervoroso clamor quando
(Arrancando os pés, empurrava as pernas, esticava-as, media-as, dependurada da cruz, julgando saber… oh deus que me empurraste para a tumba onde mora o diabo… a mão e os anéis, as unhas pintadas de voz, uma garrafa de mescal, uma cinta apertada e na coxa, folhas vermelhas dum Outono irreal )
Tenho medo quando me descubro ao espelho, deve ser afronta quando corro descalça e os cactos me bicam, Espelho meu, espelho meu, haverá alguma mais… há algum tempo se não sentia… interrogativa, nada sentia quando as mãos próprias a tocavam… e o seio mais ainda arfava, comprimido e suprimido ante uma inesperada agudeza do real, num golpe de dor, sombreava os olhos e bebericava os lábios, mordiscando-se piscava-o, surda, ofendida, enforcada. E agora,depois de tantos anos, quando para sempre lhe faltavam uns centímetros, ali na mesa, senhora dum fado viúvo, fortuito, ilharga dura e bamba, que lhe importava se perdesse, se o moço que ela trazia em vista lhas mirasse e as revolvesse, com mãos ambas, de prestidigitador.
Ao diabo o que é do diabo e eu, quadro meu, sei bem o que sou.

Nuno Monteiro

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

As estátuas famintas nas ruas de Paris



Numa das nossas inúmeras deambulações… numa das nossas divagações… (é muito difícil situar o espaço da acção – uma vez que tanto poderíamos estar por esse mundo fora como embevecidos em casa esperando os louvores de um copo de embriaguez) seja como for, em uma das nossas preambulações deparámos com um banco de madeira puída e bastante mal tratada que se erguia só e abandonado em meio de praça. Nisto há um sujeito pequenino barba burlesca e roupas puídas que dele se acerca… a humanidade tem sopros de genialidade… da mesma forma que a literatura a humanidade não tem preço nem lisonja. A humanidade perde a noção de tempo – e nós… bem nós estacámos e observámos: o que dali saiu. O que dali saiu foi a alma inteira do pequenino raquítico – foram os humores do homem que se espraiaram num discurso pessimista anarca. Ouçamo-lo então:
“Sabes o que é um rei?! Para além dos mantos púrpuras e dos pratos de faisão… para muito depois dos decretos e dos ditames… num reino cercado de arames… Deixe que explique… a natureza é de um virtuoso bêbado… as palavras são mera verborreia – atiçadas ao vento como se fossem da noção da antimatéria… diarreia – um travo de bílis que tosse enquanto solfeja ao ar… sabes agora quem é o rei! Pois sei que sim… sei que sabes… então voltando à carga – qual é a questão seguinte? Como se comporta o homem perante o rei?! A figura da autoridade, a noção de disciplina, a fonte do mal, o poço do diabo, os olhos enternecedores de um pobre diabo dono de uma personalidade insofismável mas em concreto um imbecil, um estúpido, um falhado…há dois tipos de homens… há os felizes pobres! Alvíssaras escravizados imbuídos de um espírito de religiosidade que os calca quantas vezes necessárias… esses arrastam as mãos em concha gaguejando por pequenas migalhas!... aqui e acolá dão os seus tristes e zombeteiros pequenos ou grandes golpes “que bom enganei-o!” sem sequer saber que ele sabe que ele o enganou! Até disso vive o rei… esses são os miudinhos da vida. Os eternos patetinhas… podem atirar aqui e acolá uma sarça mas que não será nunca perene. Falam muito alto. Gesticulam muito e as palavras saltam como enormes pedregulhos sem atingir ninguém. Comem muito. Vivem de barrigas fartas e morrem ao fim de pouco tempo com um acidente de váscula – ups! o azar e o fado, que terra de diamentes!... Destes nada falar. Sabemos como se comportam estes perante o rei. São espezinhados sem que nada de importante volteie em meio… são a alma de deus e dos anjos. O retrato daguerreótipado de minúsculos pontos nitrato de prata! E beras! Encarniçam-se e deitam pequeninas bolhas de sal pelo canto dos lábios! Ou então berram - eu mato-o! Se esse ladrão entrar em minha casa eu mato-o! Eu mato-o! Eu mato-o! Eu mato-o! Ou pelo menos concretizam a ilusão de felicidade do classicismo católico -romano. A beatitude da porta da igreja e da sede do púlpito. A bonança da transmutação das palavras do “pater”, Vivem num “continuum” espácio-temporal animado e benfazejo… vivem num fedor de casco… infelizes os que comungam… O outro tipo de homem é adaga. Punhal. Cala-te e observa. Sente o pulsar da vida. Basta um aguaceiro golpe de espada! Deves ter reparado que agora estou a falar para ti. Sabes se é o rei quem comanda?! Raro. Tem a ilusão de que o faz. Cala-te e observa. E ilumina o teu caminho. Através do caminho do poder – esse poderoso estimulante. Desenreda-te. És actriz. Sê actriz. O teu desejo de palco está a chegar… atrás dos tempos estão tempos. Das derrotas e das quase mortes! E das ressurreições. É para isso que vive entre nós o diabo. É para te conceder essa graça. Tens que decidir do medo que esse Lúcifer te poderá instilar. E esse medo é de eternidade!... a eternidade é a salvação que a figueira te saberá ofertar. Sabes o que é um rei. É um espantalho que serve para meter as hordas em ordem. Sopra medos e mortes mas deixa que o arrebanhem porque é, por si só, um pequenino imbecil. Arregimenta as tropas em parada. Mas é o espírito do pedreiro livre que trabalha nos bastidores. São as luzes da genialidade que lhe dão cor e vigor! Vivem do fogo pálido que irradia. Não. O jogo do poder não se mostra sob a forma de luz, Jaz soturno sob a forma de escuridão no poço da montanha. Revolta. Pára e lê à tua volta. Só tens que viver. Deixa que a adrenalina te sulque as veias. Muito sincero! Sempre que o navio sangra ouve-se um salvo que é o do capitão. Se esse silvo te atormenta então só o sossego te salvará. Se convives com o desassossego então… de nada te salvará fumar faboradas e faboradas de um mufo estéril… São os ditadores que afastam os abutres. Quando espreitam procurando… e o fazem a medo… sugam do medo o momento da morte que infalivelmente os espera. Ninguém precisa dos generais e dos marechais pois esses são os fantoches ao serviço da governação. Ao serviço dos arautos. O rei da nação vai só e os alicerces estão corroídos e podres. Vem vento e borrasca. Em última aragem vingarão os espíritos com aura de espectro. Os alvos a abater. Que acumularam sumo e seiva. Então as asas não lhes escaparão. Os olhos de pássaro intimidam e arregimentam… e tu?, como te comportarás! Como te disporás ante a viragem, Haverá quem te empalideça em governo e voragem? Questão que será a última. Vai ao espelho! Olha para ti. Encontra se faz favor o espectro demoníaco que é a tua aura de espírito. Não vejas a mulher. Procura além do medo para lá dos sons guturais de Maldoror… só então almejarás encontrar. Só então almejarás encontrar…”
Estas e todas as outras estradas foram dali feitas grito e som. Da pequena grande madeira de bancada puída naquele canto naquele minúsculo naquele sortilégio… dali saímos envoltos em “mist” e se por fora praguejávamos por dentro irados e pensativos. Por dentro ruminávamos. Por dentro elefantes ou bois ou algo do género.


Nuno Monteiro

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Do valor das palavras...

"Aos paramilitares que estavam a cometer crimes e a matar pessoas, o meu pai sempre opôs as palavras. As que dizia nos seus discursos e as que escrevia no jornal. Eu também não posso vingar-me de uma maneira física, tomar as armas e ser como eles. Só me resta o que me ensinaram a viver em casa: o valor das palavras. É a única vingança admissível.»
Héctor Abad Faciolince, em entrevista ao Jornal de Letras (Abril 2009)

A casa inquieta, a José Donoso


Quando acordou, ainda mais cansada, logo estranhou a ausência de ruído. Esteve um esgar de tempo com o olho esquerdo aberto e a orelhita à escuta, após o qual, já amedrontada, ergueu a cabeça. E o gato, por onde estaria? Destapa-se e cobre o corpo com o robe, este silêncio, querem ver que o mundo comeu todo o ruído? Da janela que abria dava para ver lá ao fundo a estrada que, àquela hora já corria ufana na chusma de automóveis. Pois bem! Não é que nem um. Atravessou-a um momento de medo intenso, agonia, sentar-se-ia e restabelecer-se-ia. Cinco minutos, cinco dias, quem haveria de saber dizer quanto tempo!… chega à porta da rua e na rua, as árvores, frondosas, floridas, um cheiro que inundava o espaço, barulho das abelhas, nada, barulhos vários, népias, apreensão. A mão dá para pegar no telefone e, quando o descobre mudinho da silva, vê, na rua, Wenceslao, o crítico perigoso, derrubar com um tiro certeiro o ardina. Estranha que não ouça o silvo dos carros da polícia. Estranha não ter ouvido a bala, estranha que a tenha visto, estriada, a caminho. Então lembra “o legado de ruínas de Don Adriano”. Fechou a porta da rua à chave, correu a correr as persianas e no escuro calmo da selva, estranhou; chegou o reino das trevas. Permanece atenta, sob ameaça, deixa que o tempo passe, envelhecida, esfomeada, ouve Tomás, lambendo-lhe a mão, aninhado, os olhos arregalados, a cauda quieta.

Nuno Monteiro

terça-feira, 7 de setembro de 2010

En garde


Anita é bonita de olhar, especialmente à noite, enquanto as estrelas zunem e ela se desatralaçava e esticava as mãos para o céu, como se as tocasse. Tocava-as, oh se as tocava porque ficava envolta numa claridade de alegria, era embarcar em Anita e era mágica a noite que, com Anita, olhávamos o céu. Então dizíamos sobre o mundo e sobre a idade adulta, então era tudo belo, sem frio ou pedras ou ainda poços, era tudo fácil e reluzente, como farei quando esquecer, já velho e só, as noites e os fins de tarde, na praia, com Anita. O modo como ela sorria e apartava areia entre os deditos, o modo como esticava as pernas até se quedar imóvel, entre a imensidão.
Certo dia, fim da tarde, chegou-se com a seguinte… che, porque não acreditas nos vivos! Eu fiquei embasbacado olhando-a… isso é mesmo teu Alice! Olha, estás a ver estas ondas de mar que te enrolam os pés… diz-lhes que cessem! Tenta. Não posso, o mundo perderia metade do gozo, não sabes que as pequenitas borbulhas de mar me massajam… És impossível, as ondas do mar por uma massagem aos pés? Uma massagem até eu ta fazia… não, o que eu queria dizer, é que a preia mar e a maré vaza, existem, tal como o caminho dos homens… então mas que tem isso a ver com os vivos? Pois, que mais queres que te diga, como acreditarei em vivos que se comportam como se a vida não fosse responsabilidade deles… Então Alice mete-se de pé à minha frente, flecte um pouco as pernas e hasteia o braço direito, como se empunhasse uma espada ou um florim… en garde! Não sou eu quem te desafia, é a minha espécie, profundamente zangada com a tua… depois rebolou na areia e por toda ela, ficaram coladas milhares de areias de quartzo que reluziam ao sol. Viajou até mim, mirabolante, a imagem de uma terra de mil e um pirilampos, uma auréola perfeita, doce algodão doce, os cabelos ruivos da pipi anunciando tanta coragem… não Che! Não acredites, eu não sou assim tão coragem. Mas ainda assim, vamos rasgar caminho e cheguemos a nado, ao farol. O mar é meu amigo e nada receies pois a uma palavra minha, não só faço parar a maré como a vazo até lá longe, à luz onde só bule, rodopiando, essa luz Alexandria, que se lê folha a folha…

Nuno Monteiro

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Escutar, reflectir, (agir)



Ouvido e retirado daqui: http://wwwmeditacaonapastelaria.blogspot.com/

Por enquanto mama, o filho de Cristo


De dentro da caleche, sumptuosa, olhava-se de uma maneira indigente os campos de trigo. Há já uma hora, corriam, à velocidade, os caminhos dos campos, infindos, monótonos, do trigo. Tudo pertença da propriedade. E diz a matriarca
(falando para se fazer ouvir, talvez incomodada com a ausência)
um dia, herdarás tudo isto… e logo um silêncio, prolongado, tomava conta do espaço. Lá por fora, o cocheiro, aprumado, impecavelmente vestido de limos e gomos, arribatava os cavalos Os donos estão com pressa… E diziam os cavalos ora! O que eles querem é passar os campos, onde mora tanta abastança e onde as mulheres vão parir às traseiras, de pé, sem largar da mão as panelas e a esfregona… medo! Já que dos campos amiúde se levantam almas mortas, como insurreições, impossível contê-las.
Lá dentro, de novo na caleche, o patriarca, saturnino, escondia uma pequenita pistola e pretenderia fazer-lhe colar a vida, muito embora roubasse tantas, tão desgraçadas… olhava o filho, com uma mistura de ares que iam desde o snob, das roupas cuidadas, ao imbecil, que lhe advinha do lábio caído e do olhar apagado. Explodia! E pensava para ele que não teria a quem deixar administrar tanta terra, o pequeno nem as letras aprenderia… a matrona, sentada do lado dele, completava o pensamento… mas que vergonha, que dirão dele as outras famílias!
(Oh pai, pois compreendo que te amedrontes! Não se matam as almas mortas)
E contudo, os cavalos, alados, puxavam a caleche ao fundo do vento… suados, protegiam-se, na primeira malaposta manda a mensagem, o trigo está já maduro! O filho de Madalena já nasceu. É um latagão bonito, saudável que já caminha pelo seu pé. E não sente medo das trovoadas.
Aparentemente afastado de tudo isto, o cocheiro, esse condutor, olhava os cavalos e sabia que eles conversavam, pois sabia, mas escondia e em silêncio sorria…
A tarde, desse amendoado odor, recolhia, da mesma forma que o caminho, a estrada púrpura, sedosa, ameaçava parar, cessar, cortar, para dar voz ao poder… essa espécie de poesia do trabalho, que convida, sem convidar.

Nuno Monteiro

sábado, 4 de setembro de 2010

Eu hei-de amar uma pedra, poemários


Nas tuas mãos duas um coração. Poucomaisqueanelembasalto. E as praias que borbulham segredos ao fim da tarde, as vidas que enlaçam como círculos, num nunca mais parar de costa… É do mar que vem um enorme espelho? É do mar que chega um sonoro sopro? Um bafo de escadas ao fim das quais a língua de areia que te espreita as pernas. Uma praia escrita poema. Tal como a luz. E por força dos olhos, a foto. Um pungente abraço. A água fria que cristalina a epopeia e torna escuro o chapinhar vermelho, de tuas algas, de teus cabelos. Esse coração de xisto, preso entre teus dedos deambulara, perdido, antes e depois do tempo. Guardaste-o? Gosto. Gosto do coração que segura as mãos. A foto que fecha a foto é isso mesmo, uma moldura de basalto com forma de Marão. Milhões de anos antes…

Nuno Monteiro

Casa de campo - José Donoso

(…) Vais para o torreão?
- Vem comigo.
- Não.
- Porquê?
- Porque a tua voz treme.
- Parece-me que tenho motivos de sobra.
- Por causa daquilo a que as pessoas chamam esperança?
- Sem dúvida.
- Não creio que gostasse de sentir esperança, se isso me tornasse tão vulnerável como te torna a ti.
- Se uma pessoa não sente esperança, Arabela, fica fria e só durante toda a vida e quando chega a idade de se entregar a alguém ou a alguma causa, não consegue fazê-lo.
- Eu entreguei-me à causa de os afastar daqui e no entanto desconheço a emoção que te embarga.
- Pergunto-me se um rancor como o teu, móbil em si respeitável porque bem fundado, pode ser cimento da esperança.
Arabela não precisou de pensar para responder:
- Não, mas ao impulsioná-los, por rancor, a empreenderem esta excursão e a perderem-se nesta miragem, junto-me à tua esperança sem partilhar o teu projecto. (…)

Casa de Campo, José Donoso, Cavalo de Ferro, tradução de Sofia Castro Rodrigues e Virgílio Tenreiro Viseu

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Ouma (personagem pedida emprestada a J.M.G Le Clézio)


Ouma nasceu indígena da ilha grande das Maurícias… fez-se mulher morena, de longos cabelos lisos, que lhe escondiam a face e que floresciam ao vento. Nunca aprendera a escrever nem a ler! Nunca aprendera a falar (o dialecto do homem branco, convém que nos entendamos!) Vivia, quando não ventava perigosamente do mar, sob a falésia, alta, olhando-o, tacteando-o que chegavam e partiam vapores, foi e é assim desde sempre…
Porém, Ouma, única, pois era só ela que conduzia o rebanho para a falésia. Algo a queria ali. Algo a não tolerava ali. Garatujava num linguajar muito parecido com o vento e os murmúrios da ilha, houve um dia, um dia em que o mar estaria excepcionalmente calmo, houve um dia em que Ouma se atirou da falésia. Morresse, as cabras dariam selvagens pois já pouco lhes faltaria. Salvasse, e nadasse, teria algum barco que a recolher e teria algum homem que lhe dar de comer. Aprenderia a falar (esse dialecto banco!).
Muito tempo se passou e Ouma não morreu e Ouma encontrou o tal barco e Ouma cabelos vagos de porcelana, navegasse…
Vento
Noite
Vento e noite…
Vinte anos mais tarde, bem vestida e bem instalada, já dona de uma caligrafia de princesa e de uma casa ilustrada, Ouma recordaria o dia em que mergulhara nas águas do oceano. E então, tendo já passado pela vida, estaria arrependida, sentindo saudades… se pudesse uma vez mais ouvir relatos da falésia, nas Maurícias, e pergutasse às cabras, por certo, nos dias tempestuosos, quando por dentro do ar há uma redoma de calma, ficando a culpa e a maldade postas de parte, haveria de olhar e ver, não as rugas e a pele quebrada mas os cabelos soltos e os pés de aluvião…
Mais vento
Mais noite
Dor
Demasiado tempo se passou e Ouma, mulher morena, pálida, acabaria por perder a vida entregue a um delírio, desgosto de falta de mar e de sol. Terá sido, talvez, o diabo quem a tentou aquando do salto A água, bebere-a do poço e os candelabros, os candelabros envidraçavam os quartos e a banheira Ouma, morena, era frequentemente vista ao longe, muito alva, enlouquecida, nua do seu rebanho.

Nuno Monteiro

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Madalena no comboio de mercadorias


Caída a noite e estabelecido o silêncio, a serra acomodar-se-ia por detrás da vida e os olhos, os olhos dele voltariam ao escuro, rápido, do fundo… há madrugadas que levam olhos mais além, curtos manifestos de amizade, pequenitas lembranças e estradas secundárias, os lugares vagos, a serra sabe-o tão bem. Louros? Em meio de noite calma propicia reprodução. Pirilampos dançam para aí aos molhos anunciando as grávidas. Vagar. Dantes, por detrás do meu quintal, passavam comboios de mercadorias, comboios que, por instantes me arrastavam entristecido. Hoje esses comboios transmutaram-se em serranias pedregosas, nas madrugadas fundas e nas barrigas das grávidas. Lentamente, cresce o bulício aos lados do nascente, ao horizonte. Querubins do senhor. Lentamente ela, uma pálida personagem, afasta o mundo com a mão e conduz o bando de latidos com o cajado. Ele, ermitão, deitar-lhe-ia um beijo ao saco. E esse tanto é tudo pois que nem um céu por entre a terra nem a terra entre o céu. Até os querubins o sabem. Cristo, se vagueando entre as estradas secundárias, deveria procurar Madalena, a morena alta e cigana, a dos pés bonitos.

Nuno Monteiro

Porque vivemos demasiado o nosso castelo

Sá de Miranda

Desarrezoado amor, dentro em meu peito
Tem guerra com a razão, amor que jaz
E já de muitos dias, manda e faz
Tudo o que quer, a torto e a direito.

Não espera razões, tudo é despeito,
Tudo soberba e força, faz, desfaz,
Sem respeito nenhum, e quando em paz
Cuidais que sois, então tudo é desfeito.

Doutra parte a razão tempos espia,
Espia ocasiões de tarde em tarde,
Que ajunta o tempo: enfim vem o seu dia.

Então não tem lugar certo onde aguarde
Amor; trata traições, que não confia
Nem dos seus. Que farei quando tudo arde?

- Sá de Miranda -

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Amanhã amanhecerá cinza

Há barricadas nas estradas da minha terra, estão a matar pessoas, estão a matar crianças, e eu aqui tão longe, e eu aqui chovendo, são os pobres os que perdem primeiro o futuro, são os países pobres os mais pobres dos pobres, a minha terra em chamas, o meu chão em chamas, e eu que envelheço e eu que envergo luto e eu que falo sem que alguém me ouça, será agora noite na minha terra, será agora noite escura pintada de vermelho de balas, eu, por enquanto, encolho os braços e recolho a voz, porque, lá tão longe, as mortes, as crianças e os berros, não os ouço. Amanhã amanhecerá cinza, uma cinza de vergonha, nos olhos e nas mãos.

Que a tua mãe te fugiu

Dei-lhe cabo do canastro… E cirandou pela suja rua. Acompanhêmo-lo pois que deu um pontapé na bolita verde ali esquecida dalgum outro miúdo.
(A minha mãe…)
Seguia descendo a avenida! Pára um carro, presa fácil, do carro abrem as portas e, num instante, cá fora, o estupor que lhe batia. Edgar via. Correu a pegar numa pedra.
(A minha mãe?)
E depois uma nuvem, pousaria a pedra e choraria, encharcar-se-ia de afectos e de cigarros… a mulher jazia inanimada, corpo mole, grassado, negro em bocados redondos… Quando parou de chorar, adormeceria, vazio, uma vez mais fumando, cessando
(A minha mãe?)
A escura dor diria a tua mãe fugiu-te.

Nuno Monteiro

O túnel


Os homens estão cá todos? Todos. Todos têm com que trabalhar? Bem, então que comecem… a partir de hoje só se pára a empreitada ou quando estiver completa ou quando algum morrer e mesmo neste último caso, pára apenas durante as exéquias. Temos que reunir os homens, Homens: vamos estabelecer um horário de trabalho, Que seja com a conveniência de todos, para que seja com os braços e os pulmões e a fraternidade. Então o túnel fazer-se-ia. Operários. Donos deles próprios. Esmagados ante o peso das pedras e dos martelos… toc, toc, toc, toc… Moreno era o capataz… os homens confiavam… suportavam-no… era Jeremias o segundo comandante… os homens pediam-lhe de beber, quando estavam esquálidos de sede, pediam-lhe de comer, quando se sentiam esquartejados de fome, os homens enfarripavam as mãos uns dos outros, perdiam menos sangue, e assim foi durante mil anos, mal passavam a ombreira do túnel, ele deixava de ter tempo, lá dentro, nem os homens envelheciam, nem a pedra partia… só o sangue e as lágrimas corriam a rodos como se numa festa corresse cerveja. Mas não. Os homens não estavam numa festa. Antes Moreno, à boca do túnel, para Jeremias! Sabes como era Moisés? Lembras? Atendia a todos. E como morreu? Sozinho enfiado no catre, só deram com ele quase uma semana depois, o homem já fedia… tenho medo, embrenhamo-nos na terra e mais fundo na pedra, e se andamos lá por baixo às curvas, perdidos? Pior, e se lá embaixo, damos de caras com esse valdevinos desse belzebú? O que diria Moisés se aqui estivesse? Ora o que diria? Que cavassem fundo, ora o que diria, foi assim que ele morreu? Há sacrifício maior que a morte, eu cá não conheço. Apagaram-se os cigarros e os dois homens ficaram no escuro da noite. Ao fundo, sentiam os cães latir e milhares de vozes, excitadas, que os avisavam. Lá bem no fundo, aqueles dois homens saberiam que a abertura do túnel, mais do que a eles, iria libertar os mortos, as almas clementes que não conseguiriam nunca outro caminho para a salvação. Isso é o bastante ou não Jeremias…
Os carvalhos haviam deitado fora a folha e na penumbra, surgiam como fantasmas que rangiam… ninguém lhes tinha medo, os dois homens voltaram-lhes as costas e, já no caminho do fundo buraco, toc, toc, toc, num compasso de eternidade.

Nuno Monteiro

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Manuel Hermínio Monteiro: a entrevista ao DNA em 2001

O DNA (suplemento do Diário de Notícias) de 12-05-2001 publicou aquela que penso ter sido a última entrevista dada por Manuel Hermínio Monteiro, o editor da Assírio & Alvim, que viria a morrer em Junho desse ano. Foi uma longa entrevista, conduzida por Anabela Mota Ribeiro. Deixo-a aqui:

A conversa seguinte aconteceu numa destas tardes de sol. Do sol radioso que encharca de esperança os primeiros dias da Primavera. Manuel Hermínio Monteiro, o mítico editor da Assírio & Alvim, refastelou-se no sofá para desfiar o novelo da sua vida cheia. Como ele diz, logo no começo, a ponta pode ser a que nos aprouver que há-de sempre dar no mesmo.
Decidi começar por um lugar que cruzava as palavras e as memórias, umas e outras em catadupa. Um lugar que é talvez o mais belo recanto do Douro. E por isso de Portugal. E por isso do mundo. Conheço esse sítio há muito porque me fiz, também, em terras transmontanas. O que, como perceberão, tem a sua importância. A marca da terra, espessa, fez-me assim, fê-lo assim.
Esta é a vida de um transmontano, um transmontano de boa cepa. Calha de haver uma flor maligna que lhe traga a carne. Até ver. Como ele dizia, quando pela primeira vez o vi depois de saber, «Estou bem», embrutecendo o tronco, referindo-se à força, à robusteza.
A seguir, que é para isso que servem as introduções, têm a vida deste homem. E dentro dela a vida toda.
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Começamos por onde?
- Sei lá. Como a vida anda às voltas, pode ser por qualquer lado.
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A vida anda às voltas?
- Muitas. A minha é uma vida muito cheia.
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Podemos começar por S. Leonardo de Galafura, o recanto do Douro escolhido por Torga, que, presumo, conheça.
- Conheço. Dizem-me agora que na encosta contrária ainda há outro miradouro mais bonito, S. Salvador.
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O seu lado do Douro é o do Pinhão.
- A minha terra é mais para o interior, perto de Murça. Alijó. Do meu lado vejo Favaios, Sanfins, Vilar de Maçada.
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Nasceu na aldeia, em Parada do Pinhão. Viveu lá até que idade?
- Fiz lá a Primária. Vivi no século passado, posso dizê-lo. Vi chegar a electricidade, a rádio, a televisão.
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Era um outro tempo para o país, e sobretudo para o interior.
- A escola era uma mesa muito grande numa sala; em bancos corridos estavam numa pontinha os meninos da primeira classe e na outra ponta os da quarta, alguns já com 17/18 anos.
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Passavam directamente do campo para a escola?
- Andavam ali a arrastar. Uma vez um contou que a professora lhe tinha dito: «Se fizeres os deveres, vais amanhã dormir comigo». Ele chegou ao pé da mãe e disse: «Ó mãe, dá-me umas cuecas novas que amanhã vou dormir com a professora!» Ainda levou nas orelhas.
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A professora era quem? Uma moça da aldeia?
- Comecei com uma professora que levei até ao fim. Marcou-me muito e ainda hoje a recordo com muita saudade. Vive agora em Cascais, chama-se Lúcia. A minha professora deve ter sido das primeiras do Magistério; as outras tinham a quarta classe. Logo a seguir inaugurámos uma escola nova. Excelente, a escola, com entrada em arco, azulejos à volta, e tal.
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A professora Lúcia acompanhou a sua escolaridade primária. Onde eu queria chegar era à sua primeira relação com as palavras.
- Deve-se muito a ela. Uma relação de encantamento. O que é extraordinário é que andamos sempre à procura. Do Graal, às tantas. Antes de irmos para a escola estamos num estado absolutamente delirante. Eu já sabia os reflexivos, os pronomes, as preposições…
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Como é que já sabia?
- Era uma música. Ouvia os mais velhos e decorava.
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Ouvia-os do recreio?
- A escola era mesmo no meio da aldeia, ouvia cá de fora e depois perguntava aos mais velhos. Quando vamos para a escola, imaginamos que vamos aprender coisas. Uma ansiedade. Como depois temos quando vamos para o Liceu; julgamos que ali é que vai ser a sério. Depois, a Universidade é que vai ser a sério. Para chegar à conclusão que andamos permanentemente à procura de qualquer coisa que não existe. Tal e qual como a felicidade.
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A felicidade não existe?
- Com a idade vamos percebendo que a felicidade é uma aquisição muito delicada, muito trabalhosa. Esgaravatar uma mina, mexer muita terra, muita pedra, e depois, de vez em quando, lá aparece um bocadinho de minério. A felicidade também é assim. São momentos fulgurantes, extraordinários, mas não existe em estado puro. Nada existe nesta vida em estado puro.
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O que é que se pode retirar dessa lida diária?
- Mas é isso, é o trabalho diário, é a busca. E talvez sim, talvez se consiga. A consciência disso leva-nos a valorizar cada vez mais esses momentos, esses pedaços de cintilância. Isto vem a propósito?
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Da aldeia, dos parcos recursos.
- Como é que com pouquíssimos livros… raramente víamos um livro, uma imagem.
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Não tinham livros em casa?
- Não. E não tínhamos ainda televisão, éramos muito virgens em termos de imagens. A cultura era muito interessante; desde cantares, guitarras, uma forte tradição do teatro, festa feitas conjuntamente – havia laivos de comunitarismo permanentes. Ao mesmo tempo a aldeia fechava-se, como se um medo a rodeasse, «Fulano de tal ainda não chegou à terra?». Imaginavam-se coisas completamente loucas, derivadas também das casas onde o vento soprava pelas frestas, o soalho rangia, a luz da lareira era móvel, parecia que estávamos em empurrões de barcos. Isto a juntar àquela imaginação alucinante, como ainda é lá em cima, do maravilhoso celta; ou, para não sermos tão caros, a imaginação do próprio meio que fermenta coisas – uma vez que ainda não havia esta dispersão que há hoje.
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Qual era o seu ponto de observação e participação nesta vivência comunitária?
- Tinha uma experiência muito colectivizada porque a minha avó tinha um forno onde as pessoas iam fazer o pão e o meu avô tinha um grande alambique onde se juntava o pessoal todo, com a concertina, e mais não sei quê.
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O que representava a sua família na aldeia?
- Eram camponeses. O meu pai e a minha mãe casaram cedíssimo, a minha mãe com 16, o meu pai com 18, dois miúdos filhos de volframistas.
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Naquele tempo eram comum casarem tão cedo e terem filhos logo depois.
- Nasci um ano depois. Tive sempre os meus pais muito novos e uma família muito numerosa: muitas tias, muitas primas, em idade casadoira. Lembro-me bem dos vestidos delas, muito vaporosos, de se pentearem. A minha tia tinha raparigas que iam para lá aprender costura. Um gineceu fortíssimo, sempre a ser esmagado por abraços apertados.
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E gostava ou não?
- Às vezes apertavam-me demais, já fugia. Mas na verdade sentia-me um reizinho. São coisas que nunca mais se esquecem: a pressa para irem à missa, os dias de sol, a luz da Primavera.
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Num dia claro de Primavera, como é este, é isso que rememora?
- Lembro-me muito da minha infância. É uma espécie de película impressionável: o que fica ali registado, marca muito, muito mesmo. Tive a felicidade de ter uma infância completamente rural. O meu avô ia podar, levava-me com ele, deitava-me no casaco dele. Nessa altura, que é das primeiras ervinhas e flores, enquanto ele cantava aquelas canções, o Pinhão vinha com fragor por ali abaixo, e sentia os lampejos do sol nos açudes. Para um miúdo de sete anos, isto era uma coisa fabulosa. Acordar num casaco a cheirar a tabaco – o meu avô fumava onça – e ficar a olhar. Ficar com as florzinhas em primeiro plano, ver o mundo mais rasteirinho. Nunca mais esqueci. De tal maneira que ainda hoje a maior parte dos meus sonhos são: águas límpidas, rosas, pereiras floridas, o meu pai a mostrar-me sítios por onde passávamos quando íamos à feira.
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Respira, assim, um tempo que já não existe. Como é que sai da aldeia?
- Apareceu a hipótese de ir para um colégio de Salesianos, com as duas vertentes, para padre ou não. Ficava em Arouca, num antigo convento, sinistro. Fui logo a seguir à quarta classe, com dez anos. Nunca tinha saído lá de cima, nunca tinha visto o mar.
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O seu mundo era a aldeia, e os campos à volta.
- E as romarias, e as feiras: a Sra. da Pena, a Sra. da Saudade, a Sra. Da Piedade. Adorava, adorava aquilo. Conhecia outras aldeias. Mas, naquele tempo, íamos a outra aldeia sempre com o risco de levar uma pedrada. Para irmos a Justes – as terras ali mais perto eram Justes e Vilar de Maçada, que é a terra do [José] Sócrates – fazíamos uma aventura extraordinária, com um cuidado extremo.
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Onde lhe parece que radica essa incrível rivalidade?
- Talvez sejam reminiscências de castreja, não percebo de outra maneira. Agora está melhor, há mais circulação, carros vão e vêm.
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Há a televisão.
- E as comunidades dissolveram-se, com a emigração, por exemplo. Hoje, na minha aldeia, há uma geração jovem muito civilizada, educada, que estuda e circula. Organizam-se para o teatro, para o futebol, têm um grupo coral, até já gravaram um cd. Na altura, eram ódios terríveis. Isto é uma conversa de Antropologia que dava para irmos por aí fora.
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A aldeia era visitada por almocreves, ou havia uma venda onde coincidia o café, a mercearia, a farmácia, etc?
- Existia uma economia natural, de trocas directas. Nas feiras trocavam-se sacholas por feijão.
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Os seus pais trocavam o quê?
- O que tinham: milho. O meu pai tinha algum dinheiro, mas muito pouco, porque tinha explorações de resina. Está bem que o meu avô vendia aguardente e teve muito dinheiro no tempo do volfrâmio, tinha certa produção de vinhos, e o vinho sempre se vendia. Mas imperavam as trocas directas.
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A relação era muito mais desprendida com os objectos. Quer trocas eram as suas?
- Nós só jogávamos ao botão.
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A sua primeira namorada era da aldeia?
- Sim.
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Eu recordo os quilómetros que os namorados faziam para encontrar ao domingo a namorada, que vivia noutra aldeia, para, no fim, ficarem uma hora a falar na berma da estrada.
- Uma vez inventaram-me um namoro, que nem era verdade!, em Sanfins, os sacanas, já andava no colégio Almeida Garrett. Levaram-me à fonte e tive de pagar um garrafão de vinho ao pessoal! Mergulharam-me a cabeça para ser adoptado.
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Uma praxe. E nisto já estamos no Porto.
- Depois da Primária, estive dois anos nos Salesianos, em Arouca, e depois perto de três perto de Coimbra, onde completei o quinto ano.
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Quando foi para os Salesianos, era para ser padre?
- Digamos que tinha uma certa tendência. Por uma razão simples: numa aldeia, neste contexto de que lhe falo, o que produzia um fascínio, fascínio, fascínio, era a religiosidade.
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O que era tão fascinante?
- Para já, havia um delírio religioso, mesmo que não fosse ortodoxo. A presença da bruxaria, do sobrenatural, do Além. Antigamente vivia-se nesse mundo. E pessoas que não mentiam (homens de uma verticalidade, de uma palavra dada…) viam coisas.
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Também via coisas?
- Uma vez estendia a mão para tocar numa senhora que julgava que estava ao meu lado. Imagine o que eram aquelas eiras quando no Verão ficávamos a olhar para o céu, a imaginar o que era o mundo, a chegar lá apenas por intuição. Então, o mundo da igreja, os bastiadores dos altares…
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Chegou a ser acólito?
- Ajudar à missa? Montes de vezes.
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Não estou a vê-lo feito papinho de anjo…
- Nos Salesianos, onde cheguei todo sujo do carvão do comboio, nunca consegui ser dos bens comportados.
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Demorou quantas horas a chegar?
- A primeira vez que fui, ainda não tinha chegado à Régua, perguntei: «Ainda falta muito para chegar ao Porto?». Era preciso meter água, era preciso meter lenha, depois manobras à esoera do outro. Mas também eram uma animação, aqueles comboios. Concertinas, gaitas de beiços, comezainas, garrafões, tipos a contarem anedotas, tipos a venderem romances de cordel.
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Viu o «Rio do Ouro» do Paulo Rocha? É disso que está a falar?
- O ambiente era ainda mais denso. Entrava uma mulher com cerejas, ia de Godim à Régua: dava logo cerejas ao pessoal. Dava! Vender, vendiam bilhas de água, regueifas, todo um conjunto de coisas ao longo da linha. E um calor infernal.
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Como por lá se diz, «Nove meses de Inverno e três meses de Inferno». Para não perdermos o fio à meada, aterra no colégio sozinho. O normal era que os miúdos fizessem a quarta classe e ficassem por ali. Como é que se decidiu que continuaria os seus estudos?
- Conheciam um padre salesiano ali perto, o padre Álvaro, que perguntou ao meu pai, «Porque é que ele não vai?, tal tal tal..» Já estava decidido que ia estudar, tinha um jeitinho, portava-me bem nas aulas. Eu queria ir, e gostava, embora sofresse como um cão. Com saudades, chorava que era uma coisa doida.
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Cortou com o universo encantatório da infância.
- Diziam-me «Mas vai-te embora»; mas por outro lado cria-se uma relação com os amigos e há o orgulho, não se quer ir para trás. É um desafio. O meu avô dizia «Como é que o rapaz está lá naquela coisa dos padres?, sem lareira e sem vinho!» (sorriso).
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Davam-lhe sopas de vinho?
- Não, mas às escondidas o meu avô dava-me às vezes um bocadinho de aguardente, tinha a mania que já era um homenzinho.
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O que é que mais gostava no contacto com as palavras, de ler, de escrever?
- Ah, o que eu mais gostava era de contemplar. E ouvir os velhos.
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Pela sua professora, tinha uma paixão?
- Tem-se sempre. Ainda me lembro das saias dela!
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A sua memória é prodigiosa.
- Dessa coisas da infância, lembro-me bem, mais do que das coisas de agora. As saias, os gestos, o ir buscar as cartas do namorado ao correio.
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Os seus pais ajudavam-no nos trabalhos de casa?
- Sabiam ler e escrever, mas não me ajudavam. O meu pai adorava ensinar-me como cantavam os pássaros, a imitá-los a todos. Chegava a casa, saltava para cima dele com ramos de cerejas. A minha mãe é muito mais enérgica, ágil, nervosa, como as mulheres lá de cima.
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Há um momento, já em Lisboa, em que pensa voltar para casa, para os seus pais, depois de passar pela prisão de Caxias.
- Olhe que há muitas coisas para trás. Ainda nem passámos pelo Porto.
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Então vamos ao Porto.
- O Porto foi uma descoberta, o primeiro contacto com a cidade. Tinha muita malta cujos pais estavam em Hong Kong e que tinham motorista fardado, grandes carrões à porta.
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Impressionava-o de que maneira?
- Pela bizarria. Fascínio?, nenhum. Ao mesmo tempo era injusto: metia-me no Cabanelas e via aquela gente toda, pobre, a subir a Serra do Marão. Pobres mas muito alegres, diga-se de passagem. Não sei o que aconteceu ao povo português. Acho que foram os primeiros rádios, sabe? Até para trabalharem nas vinhas levam rádio, em vez de cantarem. Agora já nem usam rádio. No princípio a música era fundamental. Sempre fui sensível às injustiças. O Porto, o Porto ajudou-me a abrir. Era o período da Guerra Colonial, quase não havia homens nem rapazes. Os bailes eram só com raparigas.
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Como é que entra nessa roda dos bailes?
- Bailes que havia em qualquer associação, e também bailes privados. Arranjavam-se namoradas muito facilmente – estava tudo lá fora. Na minha aldeia, havia o sol de Inverno, os cães, um e outro sentados, não se via mais ninguém. A partir dos 18 anos, iam para a Guerra. Mas devo ao Porto ter-me desmamado em relação a uma série de coisas. Fiz também um esforço para sair de um certo maniqueísmo religioso em que tinha sido formado. Comecei a frequentar igrejas protestantes para ver como é que os outros pensavam.
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Era profundamente crente?
- Sim, sim. Já não muito de missas. Isso ajudou a libertar-me do que era o bem e o Mal. É um percurso que tem de se fazer sozinho. Os amigos estavam noutra. Provavelmente não tinham as mesmas inquietações que eu tinha. Reflectia muito sobre mim próprio, escrevia já bastante, e tentava perceber o que se estava a passar. E havia outra coisa: para aquela malta do Porto, não ir às putas era o mesmo que ser maricas. Fazia-lhes uma confusão do caraças. E era uma coisa que também não percebia: como é que com tanta rapariga lindíssima… Tinha essa estranha relação homem-mulher facilitada, apesar de ter passado por um colégio interno, pelo facto de ter tido uma infância de gineceu. A malta nova ia toda para a Rua do Bonjardim, para as Candeias.
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Frequentavam bordéis ou putas de rua?
- Casas, o Porto estava cheio disso. Bastava descer a Rua dos Caldeireiros a passear… O meu avô, no tempo do volfrâmio, às vezes até trazia os trabalhadores para os Caldeireiros.
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Escrevia para as raparigas?
- Ah sim, escrevia. Aconteciam-me coisas extraordinárias: entrava num comboio e apaixonava-me, entrava numa camioneta e apaixonava-me.
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Pela beleza, por aquilo que a pessoa emanava?
- Não sei. Uma vez estava a contar ao José Agostinho Baptista e ele dizia-me «Tens uma imaginação maluca». As coisas estavam num estado de pureza… Eu tinha uma felicidade interior, uma tal transparência, que isso contagiava a outra pessoa.
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Essa «imaginação» deixou de o acompanhar no amadurecimento dos anos?
- Com o passar do tempo as pessoas deixam de ter disponibilidade para viver em estado de paixão. A minha mola foi sempre o afecto. Nunca pensei ser rico, ter poder…; outra coisa era o amor, isso sim, movia-me para o cu do mundo. O resto? Brrr…
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Fala de uma relação de afecto que me parece tremendamente panteísta.
- Tinha sempre a casa com flores, mesmo quando estava a estudar e tinha pouquíssimo dinheiro: 18 escudos iam para as sécias, comprava meia-dúzia todas as semanas. Já trabalhava na Assírio, metia-me sozinho, com o saco a tira-colo e um caderninho para escrever, primeiro no barco, depois na camioneta: Costa da Caparica, quilómetros por ali fora, ficava a olhar para o mar. Fazia isto com uma regularidade extrema. A partir de determinada altura, o tempo não chegava para nada, nada!
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Responsabiliza sobretudo o tempo? Estava a pensar que naturalmente há uma inocência que se perde. As pessoas deixam de ser puras.
- Chega a uma altura em que nem damos conta de como tudo se passa. Ficamos absorvidos, e depois queremos mais, cada vez mais, e já não conseguimos parar, a não ser que aconteça qualquer coisa de muito…
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Esteve ainda um ano em Direito.
- Quando vim para Lisboa foi para fazer Direito, mas praticamente não fiz nada. Direito estava ocupado, era o tempo do Martinez.
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Porque é que vai para Direito? Ainda por cima já escrevia, já sabia que lhe interessavam as palavras.
- O que queria era ser poeta. Os poetas que lia mais, o Pascoaes, o António Patrício, alguns simbolistas, eram todos licenciados em Direito. Julgava que o Direito… Uma ingenuidade!, como aliás tinha muitas. O mundo era assim, não precisava que fosse mais complexo. Fica-me mal dizer o eu, mas há uma água límpida que ainda mantenho.
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É o seu lado aldeão.
- Não tenho ninguém a quem desejo mal, acredita? Posso não simpatizar, mas não consigo atirar uma pedra a ninguém. Nem aos de Justes! (riso)
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Os seus pais acompanhavam o seu projecto?
- Cresci sozinho, praticamente sobrevivi sozinho. No Porto, tinha muito pouco dinheiro, os meus pais também tinham muito pouco dinheiro. Tive a minha fase freak, como todos. Quer ver como é que eu era?
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Quero.
- [Mostra uma fotografia com a mulher, Manuela, em Marrocos]. Isto é nos anos imediatamente anteriores à Revolução. Tínhamos a sensação de que o mundo ia mudar e que estava ali, ao alcance da nossa mão. Estamos a dispersar-nos muito, não?
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Vamos recentrar em Lisboa, no primeiro ano de Direito.
- Não, Direito é de ignorar, é só matrícula e mais nada.
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Lisboa, depois do Porto, é um novo mundo. Ainda se identificava como um rapaz da aldeia? Pelo facto de ter estudado, a sua vida passou a ser completamente diferente da vida dos rapazes da terra.
- Na aldeia só estive dez anos, nesta altura já tinha outro tanto fora. Mas mantive uma relação muito forte com aquilo. Em Lisboa, numa primeira fase, toda a malta de Trás-os-Montes se encontrava. Desde cirurgiões a tipos do PC, a tipos da PIDE. Desde malta de Montalegre a malta de Vila Real. Juntava-se o pessoal todo ao pé do [café] Gelo.
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Discutindo a situação do país?
- Não. Era talvez puro instinto, pura defesa. Dos que não conheciam isto, dos que conheciam bem. E depois rapidamente se passou a uma fase, por que passei também, de repulsa por tudo o que era rural. Aquilo parecia-me uma piroseira do caraças, as músicas e tudo. Estive muito tempo sem lá ir.
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Porque se fascinou com uma Lisboa sofisticada?
- Julgo que foi um processo mais cultural, que começa nos livros e no que se aprende. Há coisas que irritam!, que, aliás, ainda hoje me irritam: um atavismo, um não querer saber, uma preguiça natural.
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Foi tudo hiperbolizado.
- Parecia-me atávico, justamente. E ridículo: os rapazes chegavam de bicicleta aos bailes, com óculos espelhados comprados na feira! Vinham juntos, mas depois, à frente das raparigas, atravessavam o baile para se cumprimentar. Hoje tudo isso me encanta, mas na altura achava hipócrita.
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Tinha algum amigo da escola primária?
- Sim. Que estudassem só uma rapariga e um rapaz; ela é hoje professora, e foi o único caso de chegar ao fim do curso como eu.
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Estava a tentar perceber se ter tido acesso a outros universos o demarcou das pessoas que conhecia.
- Não muito. Nunca julguei as pessoas pelo que sabiam. Nunca fiz qualquer discriminação pela pessoa ter o curso ou não ter, ser assim ou assado, ser pobre ou rico. Quer dizer, é uma coisa tão natural que o simples facto de falar nisso mete-me impressão. E nunca tive mitos, nem Marilyn Monroe, nem Jim Morrison; a única coisinha que talvez tenha tido foi pelo Che Guevara. As pessoas fascinam-me sempre muito mais. Na hora da sesta, enquanto os outros iam dormir, passava o tempo a ouvir os velhotes. Horas e horas e horas. E depois continuou, com o agostinho da Silva, que ia ouvir de vez em quando.
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Quando é que encontra o Agostinho da Silva?
- Anos 70, pouco depois de vir para cá. Um amigo disse-me «Tens de conhecer o Agostinho». Só não ia mais vezes visitá-lo por causa do cheiro dos gatos (com o cio, o cheiro é insuportável).
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A sua gata, Gueixa, cheira?
- Não, os machos é que é uma coisa terrível. Ele vivia no terceiro andar e sentia-se no fundo das escadas.
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Então, é um rapaz universitário que vai parar a Caxias. Conte lá a história, antes de aprofundarmos a relação com as letras e com a Assírio.
- No Porto já participava numas coisas pró-social. Com o Bispo do Porto e uma certa igreja mais prá-frentex, com um grupo de jovens. Havia uma espécie de reflexão, um centro na Rua do Rosário, com a Irmã Humberta; cantava umas baladas do Fanhais e do Zeca Afonso.
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Estavam ligadas para si essas duas componentes, a religiosa e a política?
- Por acaso nunca tive grande sentido político. Na faculdade deixei-me motivar pela luta anti-Guerra Colonial, mandei umas bocas e pronto. Mais nada. Fui parar a Caxias basicamente porque estava a ouvir o Zeca Afonso no Centro Nacional de Cultura. Deram-me enxertos de porrada inacreditável. Com a minha ingenuidade perguntava: «Por que é que me está a bater?»
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A sensação mais forte é o medo?
- É a de que se está nas mãos da mais completa arbitrariedade; podem-nos dar um tiro, podem fazer o que quiserem. Mas agora, estar a contar isto tudo…
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Custa-lhe?
- Não. Mas foi a primeira machadada na minha vida. Até essa altura tinha sido como um pássaro, à solta. Cortaram-me o cabelo todo, que era enorme, implicaram com as coisinhas que trazia no saco: um caderninho, umas almofadinhas bordadas que as minhas amigas me davam. Meteram-me numa cela sem um papel, sem um livro, nada nada. Um dia parecia uma eternidade. Sabe o que me fez cair na situação? Perceber que já não mandava em mim: «Tens a mania que andas aí como um pássaro?».
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Quanto tempo esteve?
- Para aí uma semana. Lá dentro apercebi-me que havia luta; nos pratos, no alumínio, escreviam coisas como «Coragem, estamos contigo», «Resiste»; na enfermaria havia coisas escritas com sangue; e havia gajos que cantavam, cantigas alentejanas.
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Quando sai quer voltar à terra. Formulou seriamente o desejo de voltar para a aldeia? Ainda se reconhecia nessa vida?
- Estava farto. Essa coisa da Aura Mediócritas, como dizia o Sá de Miranda, é uma coisa que existe muito dentro de nós. Às vezes vejo colegas meus lá em cima, a tranquilidade com que estão com os seus filhos. A felicidade é aquela coisa projectada nos outros, felizmente estamos já avisados, sabemos que não existe. Mas nos poetas acontece muito, o Pessoa então, «Ai se eu pudesse casar com a filha da minha mulher a dias». Sempre o outro como representação, encenação da felicidade. Essa busca de uma vida calma, contemplativa, às vezes assalta-me. Na altura era insólito, por ser muito novo e ter o mundo à minha disposição.
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Aos 22/23 anos vai para a Assírio como vendedor.
- É preciso dizer que a Assírio estava de pantanas. A Assírio foi fundada em 72, depois esteve uns anos sem publicar, mais tarde o Homero, produtor do Página Um, tinha lá um escritório e deu uma mão, mais duas pessoas que lá trabalhavam. Aquilo estava num regime de sobrevivência. Quando fui para lá, os livros editados não chegavam a dez. A Assírio vivia mais da distribuição do que da edição. É nesse contexto que entro, um pouco desinteressadamente.
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Já tinha acabado o curso?
- Já me tinha matriculado em Sociologia em Évora!, para ver as voltas da minha vida. Fui para a Assírio para a parte de vendas, mas ali todos faziam tudo. Sabe como é que se sobrevivia? Quantas vezes fazendo bancas, para sacar algum dinheiro. Estava mesmo na penúria, penúria. Fui-me mantendo por lá, acabei o curso de História.
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Vivia desse pequeno trabalho?
- Já tinha um outro numa agência que contratava artistas: os Genesis, os Procul Harum.
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Conheceu essa malta?
- Alguma, e outra que vinha para o Casino do Estoril, de românticos a stripers. Foi o meu primeiro trabalho, quem mo arranjou foi a Maria Leonor, da rádio.
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Na Assírio assume, em 78, a coordenação editorial. Imagino que tenha correspondido a um desejo de estabilidade que grassou por todo o país, passada a agitação política.
- E a tropa. Fui para a tropa depois de completar o curso. Tinha sido já refractário, devia ter ido para os Fuzileiros antes do 25 de Abril. Não fui e andei a monte.
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Em 78 assentou arraiais na Assírio. Deixou de ser o rapaz à descoberta do mundo?
- Continuei à descoberta. Ainda fui fazer vindimas a França. Andei sempre muito à solta, parecia que o mundo todo me sorria. Nestas viagens, sozinho, amadurecia muito, fermentava.
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Na base da mochila às costas?
- Era assim mesmo, sem saber onde ia ficar. Nunca fiquei na rua.
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O que é que queria da vida? Ou tratava-se de a ir descobrindo?
- Descobrindo. Mas sempre à espera, com a sensação de que a seguir é que era. A seguir, a seguir.
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Tinha desistido do sonho de ser poeta?
- Fartei-me de escrever. Tenho ali cadernos que nunca mais acabam. Depois começa-se a publicar tanta poesia tão boa… Não sei se é muito importante.
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Realmente?
- Ah, a vaidadezinha, não tenho muito essa vaidadezinha. A vaidadezinha que tenho é colectiva, por amigos. Às vezes apetece-me escrever, é uma necessidade interior, um imperativo. Na verdade, posso não escrever poesia, mas vivência poética acho que a tenho. Escrevo coisas incríveis. Só que não as escrevo. É como se as escrevesse, andam assim por dentro. Poemas feitos. Metê-los no papel? Brrr…
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O seu olhar é eminentemente poético, marcado pela vivência rural.
- E a visão desde a infância. Ver tudo, com muita atenção. Podia escrever um livro de memórias, relatando a vivência com uma gente de que pouco se sabe, das histórias que lhes ouvi.
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Portugal não tem tradição de livros de memórias. As biografias, noutros países, vendem-se como pão quente.
- Em Portugal as biografias não pegam, não sei dizer porquê. Eu gostava de fazer, sobretudo pela vivência forte que aí tive, humanamente. É quase uma dívida que queria saldar. Podia juntar a minha experiência no Alentejo. E a minha experiência enquanto editor; podia fazer um livro extraordinário sobre os poetas que conheci, não só os poetas que publiquei, mas todos os outros: o Manuel da Fonseca que ia tanta vez à Assírio, o Rui Cinati que ia diariamente à Assírio…
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As relações que a editora mantém com alguns poetas é mítica. É verdade que vão levar o almoço diariamente a casa do Cesariny?
- É. Mas não é preciso contar isso.
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O que me interessa é perceber a relação familiar que se estabelece entre si e alguns destes autores.
- Sim, são a minha família, não há nenhuma dúvida. Mas há outros, que nem sequer são da Assírio, com os quais tenho uma relação igualmente profunda. Caso do Eugénio de Andrade: falamos dia sim, dia não.
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Pensou muito neste projecto no último ano, desde que sabe da sua doença? Mesmo que trabalhe a partir de casa e vá à Assírio ocasionalmente, imagino que esteja mais recolhido em si e nas suas memórias.
- É verdade. Mas tanto penso em fazer isso, como logo a seguir penso em não fazer. Sou muito assim. Na minha vida as coisas quando têm de acontecer, acontecem. Não falo de um deixar-se reger, de um determinismo exterior à minha vontade; mas fui ganhando alguma sabedoria, percebendo que as coisas impõem-se.
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Prefere que as coisas lhe aconteçam?
- Sim. A minha vida é feita de acasos, de circunstâncias. Nunca forcei muito as coisas, nem as relações amorosas. Suponhamos que as coisas andam num caos e que tendem para uma harmonia. Se não as precipitarmos, elas tendem para uma pacificação. Tudo, tudo o que está no universo é assim. Se calhar é a lógica da vida toda.
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Poucas foram, então, as opções de vida tomadas de forma categórica.
- Sim. No trabalho, claro, é diferente.
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A propósito dessa vida que lhe acontece, como ficou, a páginas tantas, a relação com o divino?
- É uma relação harmoniosa, sempre foi. Tenho fé, tenho. Há a perplexidade que algumas coisas inevitavelmente nos suscitam; por outro lado, há ainda tanta coisa por conhecer que é uma arrogância julgar que já estamos no fim do processo. Só posso falar da experiência própria. Não posso falar a alguém do encantamento que me dá ver um melro ali à frente no ramo, ou de uma pequena flor que me enche completamente de vida. Então neste momento actual enche a sério. Como não podia, quando era mais novo, ler um poema às pessoas que me respondiam «Lá vem este com o poema, agora com esta merda».
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Harmoniosamente foi fazendo a síntese entre a sabedoria das pessoas e da terra.
- É a mais importante.
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E o saber livresco e o que deriva do contacto com outras pessoas. Foi este o seu labor.
- Aprendi muito vendo, vendo a natureza. Isto é uma escola permanente, é uma escola permanente. O grande problema é que está a morrer a nossa sensibilidade, a nossa disponibilidade. A relação com os outros está terrível. Esta coisa do novo-riquismo, esta ansiedade desenfreada que não leva absolutamente a nada. Um punhetaço, como dizem os espanhóis. Há uma coisa infernal que retira às pessoas a sua tranquilidade, a sua liberdade. E estamos a matar aquilo que, em putos, no tempo da festividade, do amor e tal, tínhamos como capital incrível, e que era o afecto.
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Na altura já sabia disso?
- «O nosso grande capital é o amor». Era a nossa grande riqueza, o que queríamos. Depois logo nos safávamos, íamos a França, enfim. Agora precisam de não sei quantos contos para ir para a estância de neve, mais não sei quê que só vai com determinadas condições. Estamos a perder a liberdade. Mais: a perdê-la sem ter consciência disso.
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Esse conforto material em que vive agora, esta sua casa tão simpática, a casa da aldeia…
- Mas eu posso viver em qualquer sítio. Se não fosse a Manuela a arranjar a casa, algum dia tinha isto? Não, não me mexe muito. Seria uma estupidez dizer que não gosto de ter um bom carro, em vez de ter um carro a abanar por todos os lados. Agora, que não signifique hipotecar a liberdade da pessoa. Se não puder ter, não há problema, até não há problema absolutamente nenhum.
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Estas coisas ficaram mais flagrantes para si porque as pessoas ficam sacudidas quando estão doentes?
- Não, absolutamente nada. Tinha consciência delas, mas andava tão alienado que me apetecia chegar aí, ligar a televisão e ver a bonecada porque me dava o sono. Neste momento sinto-me melhor fisicamente, por incrível que pareça. A minha cabeça parece que estourava, com milhões de preocupações, permanentemente tau-tau-tau. Não tinha paz. E sinto-me tranquilo.
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Sente? Não o invade uma angústia quanto ao futuro?
- Se morrer quero ir para a minha terra.
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Foi nisso que imediatamente pensou?
- Foi. Logo. E disse-o à Manuela. Às vezes, depois das quimios, vou-me um bocadinho mais abaixo, fico mais mole e psicologicamente fico mais afectado. Agora, como hoje me sinto… Fico aqui sentado a ver os melros, de que gosto muito, os pequenos rebentos das folhas.
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Porquê os melros?
- É um pássaro muito bonito, canta extraordinariamente bem. Quando tinha seis anos, havia uma japoneira ao pé da casa dos meus avós e cantava lá um melro ao amanhecer; contam que dizia: «Ó Vó, olha o que o melro está a dizer!, o que é que está a dizer?, queres comer, queres comida?». Era eu que estava com fome.
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Teve um encontro, com um livro ou poema, que tivesse sido determinante na sua relação com a literatura?
- Quando comecei a sentir a poesia a sério, assim poesia de estremeção, foi nos Simbolistas, Gomes Leal e Camilo Pessanha. Sobretudo Pessanha, a gente dizia: «O que é isto?»
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Que verso ou poema traduziria a essência de si e que escolheria para seu epitáfio?
- Ah, não sei. Tenho muitas dúvidas sobre mim, não pense que não. Muitas convulsões, muitas dúvidas. Sou um toiro. Agora estou partido. Quem é que me domava? Nem eu. Energia. Alegria. Era capaz de levar uma multidão. Era uma coisa genésica e telúrica. Ao mesmo tempo, tenho uma dose de feminilidade forte, que não enjeito. A mulher herdou uma sabedoria de muitos séculos, de velha aranha que sabe esperar, perceber o silêncio. Os homens são tipos de uma ingenuidade total, de uma generosidade inexcedível, só qualidades; e depois há qualquer coisa de bruto, de guerreiro, de incapacidade de crescimento.
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Que conversas tem com o seu pai e com a sua mãe?
- Ao meu pai gosto muito de o abraçar, estamos sempre agarrados um ao outro, «Então a poda já está feita?», «Está quase», e tal. Com a minha mãe falo das coisas da casa, das minhas irmãs, deito água na fervura. E é assim.
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As partes mais íntimas de si ficam para quem?
- São coisas que a gente digere em nós, não é? Nunca matei ninguém, não tenho nada que me atormente. (pausa) Precisávamos de ter várias vidas, não é?, para acertar com uma. Esta é muito pequena. Mesmo que a tenha vivido intensamente. Morrendo brevemente, já ganhei muita coisa. Claro que gostava de mais, de fazer isto e aquilo; mas por outro lado, mesmo 100 anos não é nada, 200 também não. Estou habituado a ver a biografia de escritores… Isso passa tudo. É uma lucidez que convém ter afinada. Sempre a tive, não é de agora. Pelo contrário, agora tenho mais ganas de viver. Mas sempre percebi o quão relativo isto era: 90 anos, 100 anos, 200 anos. Não se dá conta; julga-se que quando se for mais velho se vai saber mais e também não se sabe nada.
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Que idade tem?
- 48.
“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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