Ouvi dizer que lá no alto, onde quase nasce o riacho, há uma gruta e que lá mora um militar. É verdade? Pois sim, dezasseis almas cá em baixo e já estou a contar com a louca e com a filha, mais esse militar de carreira que ao que dizem, aí está escondido. Ele julga que não há quem o saiba lá acima, acantonado, pobre louco. Chegou cá numa altura em que a cordilheira vomitava sangue… veio na calada da noite e lá se enfronhou nessa gruta… E de que vive? Oh isso não sei eu, mas pelos vistos, de muito pouco pode viver o homem. De muito pouco, pois essa é a verdade. Em especial o militar que, ao que se diz, foi um enforcado de guerra. Um quê? Um enforcado de guerra… chegou cá depois de o enforcarem, dos crimes, de ter matado e ter mandado matar gente por demais… a gruta onde vive, e o espaço envolvente, até às primeiras árvores, debaixo do arvoredo rasteiro onde ele anda, esse lugar, esse espaço é o purgatório! Não sabias, cada um de nós possui um pequenito espaço dentro do qual se pode mexer e que é o nosso jardim, um purgatório, enfim. Não te preocupes muito com a fome que ele possa ter, desconfio que não sente fome há pelo menos dez anos, que é o tempo em que sabemos que ele se move por lá. Então e essa guerra foi há dez anos? Foi. Como, então eu ainda estava do lado de lá da cordilheira… pois sim mas então tinhas quê vinte anos! Não se travam guerras com vinte anos… com essa idade só se é maroto e valdevinos… as guerras mudaram, agora só és exército se tiveres fome e se os teus te pedirem pão. E essas guerras só acontecem aos homens de trinta e de quarenta e de cinquenta… eu vi-o na noite em que chegou… vinha transformado num esqueleto. Diz-se que cortou carne dele para dar de comer aos filhos… aquilo foi uma carnificina. É como te conto, nessa guerra, a cordilheira deixou passar sangue para o lado de cá. Depois choveu longamente e as águas lavaram tudo. Só ficaram os fantasmas para contar a história.
Sou eu quem to diz, eu, Francisco Mortágua, se a água tudo apaga, as almas dos mortos aí estão para não deixar morrer a história. E tu, escritor, de que esperas… vai colando retratos no teu livrinho de cordel… não percas é tempo indo lá dentro da gruta, a escuridão é tão escura que chupa até a luz…
Nuno Monteiro
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