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sexta-feira, 22 de abril de 2011

Monte Sinai

Não há dar sem receber e recebe-se pelo próprio facto de dar; são a noite e o dia juntos numa jornada: se assim não fosse não haveria dar nem receber verdadeiros, mas só mero simulacro. E justamente quando as nossas forças decaem e o fazer-se se torna menos possível – quer dizer, quando o para quê viver quase não tem resposta prática – resplandesce mais a transcedência do para quem viver: para aqueles para quem somos desejados, embora vencidos e caducos, porque, mesmo assim, somos seus indispensáveis colaboradores no seu fazer-se, no seu próprio viver para nós. Ter aqueles que nos querem, e ainda mais no nosso desfalecimento e ocaso, é o culminar de quem somos; é a segurança, até ao fim, de fazermo-nos, recebendo, tal como nos fizemos dando.

Monte Sinai, José Luis Sampedro, Tradução de Carlos da Veiga Ferreira, Teorema, Gabinete de Curiosidades

quinta-feira, 3 de março de 2011

Asas quebradas


Existem olhos pequenos e olhos grandes, olhos brancos e olhos escuros, existem olhos que veem e olhos que veem doutras formas. Existem olhos que olham outros olhos. Há olhos de cristal que são sorrisos e há olhos vazios que estão perdidos.
Eu, ao pé do Guadiana, tendo atrás de mim a belíssima cidade caiada de branco, enquanto sentava , calhei de a ver olhando bem dentro dos olhos dela. Pois bem. O que será feito do antigo sol e da alegria que dantes eles continham? Para onde terá ido todo esse mar? Calhei de a ver olhando bem dentro dos olhos e eis quando me assustei já que em vez de olhos azuis celestes, eu vi um país de areia imensa e nem um abraço. Espaço, espaço infindo e um buraco do qual só se sai pelo fundo. Calhei de a ver e de lhe mirar os olhos mas ela não, passou sobre mim e não me olhou, creio até que terá afastado o olhar. Antes assim. Eu teria chorado.
Alguns olhos vagueiam perdidos por esta nossa imensa noite, como se viajassem perpetuamemente num metro ou num autocarro ou num rio como este Guadiana.

Nuno Monteiro

quarta-feira, 2 de março de 2011

Peter

Sempre que lhe pergntavam, ele abria os lábios num sorriso puro e dizia! Peter e logo no instante seguinte, quando já se havia esquecido de quem era, chegava a vida montada num corcel cinza e esbofeteava-o. Ele fechava os olhos e cirrava os dedos por dentro dos ossos das mãos. Esse não seria o momento de ouvir cantiga alguma e contudo ouvia-a já que gostava de dizer teimoso… Subia a estrada, chutando pedras do caminho e apanhava chumaços de gramínias com os quais enfeitava a pele das mãos e quando via ao longe algum estranho ficava parado como olha aquele que não ignora. Pedia esmola e se o exaltavam ele escarrava e voltava a face. Todos os sonhos lhe fugiam. Havia apenas um. Chegado à aldeia procurava o bar e abria as portadas com os pés, entrando de rompante. Pagava rodadas e rodadas a todos e já bêbado, sacava de alguma guitarra que ali vivesse e no fim, agradecendo, dizia, como se falasse por intermédio de alguma criança, estranhos, eu sou Peter, da terra de pan. E acreditava mesmo naquilo e ouvia-os a rir e a vocejar mas era assim que ele se mantinha cativo. Peter, da terra de pan. Algures lá longe havia um hospício com uma cama vazia. Eu sempre pensei que não. Este mundo precisa mesmo que ele seja quem diz ser. Ao som da cantiga, na manhã seguinte, nem ele compreendesse, deitava os pés ao caminho e inflava os pulmões ao mar de vento. Peregrinava e quanto mais andasse mais as multidões lhe sumiriam vazias. Haveria, ao cabo do mundo, Rocamadour e essa morada, tão bem o sabia, trar-lhe-ia paz.

Nuno Monteiro

domingo, 27 de fevereiro de 2011

O amador das rochas

Há apenas um dia no ano com luminosidade grande para se fazer uma excepcional foto ao Marão. Hoje foi esse dia e eu não premi o gatilho. Não quis matar a tua sede de protagonismo. Fizeste-o tu, foste tu quem se banqueteou enquanto eu, eu apenas o olhei, ao majestoso, ainda com farripas de neve, mas já agora que estamos em maré, olha as angiospérmicas e vê como rebentam os pequenos ázimos, olha a primavera que aí vem. Serás capaz de fotografar a primeira andorinha? Dizem que não, mas eu sei que uma andorinha é toda a primavera. Engulo ar e ele sabe a quente sansaborão. As aldeias de xisto ainda aí estão. Eu tenho paredes caiadas de branco, prontinhas e a pedir que lhe plantemos uma colmeia de fotos a preto e branco. Tenho aqui comigo um cão pequeno que não pára de latir. É também aqui uma tipográfica. Este seria um óptimo momento para chorarmos um livro. Setenta páginas. Como morrem os caminhos, já que morrem os caminhos, acabei agora de ler “A peregrina”, fiquei com uma vontade imensa de abraçar a vida, sair por aí fora e matraquear as pedras, olhá-las de perto e bafejá-las. O dia de hoje não tem pinta de evaporação; consigo olhar tão longe. Vejo e sinto a serra da estrela aqui tão perto, ali tão longe. Como se estivesse ali uma calçada de gigante e me faltasse Rocamadour, onde estás Rocamadour?, porque demoras? Deixei que o dia morresse e eu não me movi que o capturasse. Assim, quem me levará a sério? É domingo e desabrocham as flores. Este é o vale de Josafat. O oeste leva o sol, amarelo, mágico. Eu cá fico, imenso em sede. Ainda não vi nem ouvi clique algum. Não há ninguém pelo caminho. Que mania esta minha pelos caminhos. Quem me dera uma calçada romana e uma actriz consensual, de pernas musculadas e grandes mãos calejadas. Assim, saltaria de monte em monte e na calada da noite, dormiria ao colo fraterno da santa madre agonia, a dos olhos pretos, a das insalubres delícias. Cai um pano de vento que me sacode montanha abaixo. A custo me sustenho. Ouço o ribombo do meu corpo que carcaça câmbrico abaixo, câmbrico abaixo, câmbrico abaixo, como que ascendendo a uma sede perfeita… Porra! Devias ter disparado o gatilho. Pintarias a parede de cinza…

Nuno Monteiro

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

A peregrina

“(...) Também a vida é uma viagem absurda. Tudo é absurdo – disse o bobo. – Quanto à viagem, cada um terá as suas razões, penso eu, e suspeito que não vamos dizê-las. Quiçá nem as saibamos, mas existem. Às vezes já tenho pensado que, se estou aqui, é apenas para manter a esperança dessa menina, e porque, enquanto ela tiver esperança, eu também a terei. Senão, já não me bastaria estar louco: teria de acabar comigo com as minhas próprias mãos.
À moça não lhe perguntaram nada. Tampouco teria respondido. Ou teria dito que a vida a tinha posto ali, naquele lugar, e que ali continuaria até que a vida a pusesse noutro. (...)"

Basílio Losada, A peregrina, Teorema

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Certas noites com luar

Era o tempo das noites tenras e eu estava muito na moda; havia ainda ruas inocentes e os edifícios, em lisboa, andavam a passo num vago lúgubre. Estivessemos próximos do sol e eu não escolhia, tergiversava mesmo sem querer e sugava dessas noites quentes e salitres. Era também próprio da idade e aos cafés, fumávamos todos da mesma mão. Já ninguém escreve assim. Tudo mudou tanto. Rasparam o salitre das ruas estreitas e foi a eito, meteram-lhes uma merda duma cor que acinzenta tudo, enterraram a fotografia antiga e drenaram o tejo. Acomodaram-no dentro de um espartilho que tudo cobre, que tudo esconde. Se o tecido tem cores e quanto essas cores não falam, se o espartilho tem textura e palpação, o tejo solto, a auréola do mamilo e a confluência com a anca deixaram de estar ao alcance da mão. As fachadas não têm marcas, não esmolam, ainda caem as folhas mas já não permitem esse Outono bravo e ventoso, já não temos pintores e muito menos homens mágicos. A cor com que pintaram o mundo e a luz branca com que o apertam são espartilhos que deformam o colo e o metem muito a direito como se me proibissem de fumar. Acontece que então eu ia pela rua com um inebrio quente e suave, uma existência que pendurava da balaustrada do céu e chegava ao bar, à minha casa e encontrava-os lá todos, a esses extraordinários belzebus e perguntava Quem já escreveu hoje e logo ali defronte de mim, enrolavam um cigarro e espiralavam fumo pelas páginas e matraqueavam as palavras pelo ar corrido desse tempo espesso. Leve, tão leve quanto o sentido da liberdade… e quanto mais tabaco corria, mais noite se abatia e lá de cima, da balaustrada, chegavam roncos de trovão; deveriam ser seis da manhã e eu ia a pé pela linha costeira e era rara a noite em que a não encontrava, à minha ninfa de berma de bar. E eu então dizia-lhe, vá, já cumpriste a tua noite, desatralaça lá o espartilho e logo de imediato, deitando abaixo as cores, botando lá a mão, semeava carne pelo meio da carne. Houve um tempo em que eu passeava pelas ruas muito magro, muito tísico, nada do mundo se assemelhava comigo e eu não queria nada com a pessoa inteira, cheirava-lhe o verniz das unhas ou olhava-lhe fixamente para os olhos sem nada pigarrear, baliam dentro de mim as saudades das Acácias em flor, havia dentro de mim um ronco irmão que me impedia de subir ao palco. Talvez tenha sido por isso que, numa noite em que não encontrando a carteira, tendo perdido a minha biblioteca e tendo encontrado o corpo da minha ninfa profanado eu, saltando da janela, ainda calhei de procurar em volta mas já não saltimbanco algum. Esse cúmulo terá sido a minha única experiência. Depois alguém me apagou.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Mulher sentada ao piano

Esguia e de pés grandes, calças coçadas cinza e um pequeno palco, olha com bravura para o guitarrista que a acompanha e pede mais e mais folk e eu penso, já não vivemos de modinhas, já não há quem faça da rua a sua guarida e depois miro-a mais e melhor e assombro-me, cabelo longo, liso, cortado muito rente aos olhos, em franja. Eu sento e fico assim, olhando, vendo-a tocando ao de leve no piano acompanhada da voz rouca, funda, amarga, e enquanto assim me fico, olhando-a, uma enorme cascata retumba por fora e por dentro de mim e nesse instante nada nem ninguém me deitariam fora daquele piano, daquele olhar intemporal. Voam, acima de mim as luzes de néon com que se instala o pub e chegam até mim as vozes e os barulhos da confusão, os copos a retinir e as mãos em bátega, o suor sem cheiro, as pernas bolotas, maciças… Há mulheres com um olhar impemporal, como se não envelhecessem jamais, acontece apenas às minhas borboletas e só após muito bar e imensa gargalhada. Adoro-a. Toda a figura, imensa mulher erguida do chão envolta em roupas negras, cinzas, fumando e bebendo, toda ela e ainda um chapéu de palha com que acompanha o refrão, “he was a friend of mine” ou em palco, apontando toda a gente e rindo… como se a vida lhe não pesasse, como se não houvesse amanhã ou como se toda ela bebesse do palco, da noite, da possessão, Deus sabe que ela é não apenas a imagem do pai mas também a estrada e a vida, tudo empilhado e condensado numa figura mítica de mulher grande, castanha, rotunda… e penso, finalmente, ao som da via-láctea, que ainda há modinhas e que ainda há quem lute por ideais, por um som lá do fundo, da luta, da selva.

Nuno Monteiro

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Gentes do circo


Ofuscar-me-iam sempre pois eu estava morto. A partir da minha maioridade, houve algo que se quebrou dentro de mim e daí em diante a minha convivência sã com todos os outros irregularizou-se… Vivia vidas roubadas dos outros e refugiava-me por dentro dos livros e por detrás da escrita. Mas veio o dia em que deixei de querer escrever. E veio o dia em que deixei de querer ler. Depois foi a revoada. Não havia quem me falasse. Judas. E depois eu pensei o que poderia fazer um homem que nada sabe fazer. Pois que os outros também me não aceitavam. Deixei, tão ao de leve, de aparecer. Foi um dia, foram dois dias, ao fim três dias, ao cabo duma semana e ao cabo de duas. Ninguém estranhou. Talvez ninguém estranhe a ausência de ninguém mas eu nascera e vivera sentindo que sim. Ter-me-ei enganado. Quando finalmente deixei de conversar, e quando finalmente me habituei a viver apenas comigo, horas e horas parado dentro de mim apenas para satisfazer as minhas mais básicas necessidades, quando finalmente me consegui manter a viver do mínimo, quando larguei o sono e a patetice da fama, quando finalmente me libertei dos enjoos da inveja e da maldade e quando, acima de tudo, senti que estava tão leve que podia voar, começou a chover. Foi por altura de Macondo, chovia a cântaros e toda aquela água encanou para dentro de mim. Quis sentar na sala de estar mas todo esse espaço estava já tomado. As minhas penas ensoparam tanto que eu me tornei também não qualid«ficado para o voo… Saí para a rua e tacteava à procura da companhia de circo. Viviam num autocarro e eram as pessoas mais caritativas que eu havia conhecido. Eram todos palhaços e faziam bem a todos pois faziam todos rir. Quis ser como eles. Mas até então falhei. Contudo não me disseram que me afastasse. Nem me disseram que eu nunca viria a ser como eles. Reuniram para decidir o que iriam fazer de mim. À saída disseram olha, tu, tu que nunca te manifestas, vais ser o nosso homem morto. Aceitas? Eu nada disse. Era a revoada. E todos eles eram o universo de macondo. Eu devo ter enlouquecido. Eu quem sou? isso não importa pois o que eu sei é que tens a face pejada de olheiras. Por vezes é bom ser-se atracção do circo. Eu ficava ali parado olhando o povo que passava e de vez em quando algum pequeno puxava a mão da mãe e dizia, olha mamã aquele homem está morto. E nem uma moedita me deixavam de modo que entre os do circo, pão pão queijo queijo e só me não deitaram fora nalgum barranco porque pretendiam comigo ganhar o céu. Ofuscar-me-iam sempre com fumo de vela porque nunca poderiam saber há quanto eu estava morto. Secretamente acalentavam a esperança de que eu fosse uma espécie de santo, as gentes do circo têm destas coisas, julgam ver santos onde os outros nem cinza. Pelo sim pelo não uma avé maria. Cá vai. Em silêncio.

Nuno Monteiro

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Mourad

... Este Mourad não é o teu Mourad. Mourad vendeu a alma às pedras, ao fogo, ao carvão, a este homem sentado diante de ti, com o seu hálito de carvoeiro, este homem que te diz:
- Mourad é o nosso melhor trabalhador. Na próxima semana vamos enviá-lo para um curso de alfabetização. Vai aprender a ler e a escrever. Um dia terá uma posição. Escolhemo-lo para representar os mineiros, por ser um jovem inteligente, trabalhador e revolucionário...

Atiq Rahimi, Terra e Cinzas, Editorial Teorema

sábado, 8 de janeiro de 2011

Os contos de fada


Caía a noite quando, à ilha, ela chegou. Eterna e exuberante, trouxe-a a lua. Inteira, bojuda e invejada, querida barriga que verte filhos e aleluias a esta terra. Eu comia dela. Era um sabor intenso e propenso. Havia um oceano de tornados entre as minhas ideias e as dela. Havia uma carga de silêncios mal fadados entre o branco do vestido dela e esta minha destemperança. Acima de tudo, julgo eu, havia uma espécie de amor. Um jovem e intenso amor.
Chegou num enorme galeão, filha de príncipes e de reis, entada e sobrinha de capitães, cheia de passadeiras vermelhas e eu, pobre aldeão, vira-a e foram a tez branca e os olhos azuis quem para mim falaram. E era assim o poço que entre mim se estabelecera. E deixei de estar em lugar algum, deixei que querer comer, deixei de ouvir o paladar das carícias e de sentir o cheiro dos mimos de minha pobre mãe. Vegetava. Vogava só e exausto sobre um mar de insónias. Vivia e sofria como numa noite perpétua que julgava que ali não pertencia.
Foi só quando minha mãe desatinada chamou o padre que eu dei acordo de mim e apenas porque o cónego, um homem generoso acima de tudo, sabedor de psicologias como poucos me disse ao ouvido, do teu estado, do teu estado eu sei apenas que são males de amores e esses males só se deixam combater olho no olho com ela. Fá-lo o quanto antes, se não queres passar o resto da tua vida olhando por cima do ombro e sabendo a fel e a inveja.
Então fui por esses montes e corri, corri, corri imensas léguas. E devo ter encanecido porque estaria tão longe quando minha mãe me acordou estremunhado. Ai mal da minha vida. E pronto. Vigilante, fui de noite e bati TOCTOCTOCTOC atendeu-me um criado que me miraria de alto a baixo e que me apontou um corredor estreito de mais para mim. ao fundo estaria a lua lado a lado com a minha amada. Um pouco mais de azul e eu conseguiria encarrilar por aquele caminho. Pode ir meu senhor, ela está há muito à sua espera. E logo uma inconfidência a ilha é pequena de mais, leve-a daqui. Ainda as pancadas na porta reverberavam dentro de mim. Paulatinamente deixava de ser noite e uma luz tímida e íntima crescia por mim acima.

Nuno Monteiro

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

a paganização do vulcão

Ao tempo era apenas eu e o vulcão! Era um chapéu rubro, as minhas mãos nuas e uma caixa negra, um pequenito obturador, pequenita, feita ali ao sopé, dos restos duma caixa de chá darjeeling. Ao tempo, ouvia-te ainda. Dizias, e eu não mais me esqueço, esquece o mundo, enviúva-te e eu ficava pensando no que dizias, procurava uma pedra de basalto, pousava a lata e enfiava-lhe um papel químico de revelação. E ficava à espera. Imagens difusas, um empedrado de minúsculos cristais e aquilo era tudo, um céu cinza e o topo. A crista ali tão perto. E eu pensava que com pés nus lhe poderia um dia chegar. E tu despias os teus cabelos e parecias uma gazela espadaúda e ferida que se engalanava por entre as pedras. Ao fim do dia recolhias à casinha de madeira e eu seguia-te. Cozíamos batatas de montanha, pequeninas e retortas, tu sorrias e deixavas que eu te penteasse. A cabeleira negra ondeava livre… Mascávamos tabaco para combater o mal das alturas. Adormecias para lá das duas e eu admirando o silêncio dos teus seios redondos.
Ao tempo era apenas o vulcão! Na manhã frenética eu via quando o sol surgia e o cume ali tão perto, imponente sem que dessemos por inverno ou outono. A cabana estava acima do mais comum dos mortais. Lembro que coleccionei mais de duzentas fotografias, todas do mesmo cume, todas às mesmas pedras. Isto durou muito tempo, imenso tempo, e tu vivias lá comigo e não havia frio nem fome, não havia feridas nem ressentimentos. A pouco e pouco o cume ia ficando nítido dentro de mim, havia uma baba mirífica que me sustinha.
Chegou um dia em que fatalmente me disseste quero descer, tenho saudades; tens saudades de quê? Saudades do dia seguinte e eu imediatamente percebi que te cansaras de ser imortal. Foi quando deixei de te ouvir. Acusaste-me a mim de voltar as costas ao mundo e eu de imediato te retorqui, já tu descias, foste tu quem abandonou o vulcão e então não percebi porque estavas voltando as costas ao teu deus pagão…

Nuno Monteiro

domingo, 12 de dezembro de 2010

Gare de Santa Apolónia, 1984

Eu? Eu quem sou? Um gajo de meia idade com umas olheiras fundas, suspeito até que doente, um mau estar que me acompanha e me impede o riso. Quase um mau hálito intenso ou uma espécie de lepra. Um navio em quarentena. Olhai atentos para quem sou… Pois dareis comigo, eu, o literato de barbas longas e nenhum sorriso. Prestes a desempregar, como, de resto, tantos outros, de facto, tão igual que nem me reconheço no meio da debandada, nem me encontrarão, imerso em livros, mesmo que me procurem. Sim, molhado em livros, moinhos que quase me afogam, outras vezes, quase me desatralaçam dos dias, enfim, um bibliotecário em fim de estação, sentado à chuva, ao cabo da gare, vai para quinze anos, vendo o comboio que vagaroso, parte. Quando se me acabar o dinheiro não sei o que vai ser de mim. O que comerei? Como pagarei o quartinho?
Que parte tantas vezes, este comboio. Sei que parte porque os afortunados que nele tomaram lugar, brandem sorrisos e deixam sobre os carris lágrimas duma convulsão que é como o mundo, umas vezes vulcão, outras cinismo, um gelo que vai apertando na garganta e que pesa como o raio. Talvez por isso tenha uma especial predilecção por estações, carruagens, carris, e essas coisas de cheiro vivo e aspecto sujo…
Não vivo sozinho. Tenho mulher e filhos. Entre o tempo que perco na biblioteca e o tempo que ganho, aqui na gare, assistindo às partidas, desfaço-me de mais de quinze horas diárias. O resto. Ora bem, quinze minutos para cada filho, dá à justa para um beijo, são quatro, uma hora, e vão dezasseis, dormirei, caso o consiga, quê, três, quatro horas, ao todo, chegamos já às vinte, o resto é para lavar os dentes, lavo tanto os dentes, cinco horas por dia a escovar os dentes, à bruta, exausto, sempre às escuras. Por norma não mudo de roupa. De mês a mês, havendo uns dez minutitos disponíveis, sento-me a escrever. Na mesa da cozinha. Quando há silêncio por toda a casa e quando, porque não estou enjoado, a minha cabeça vira e rebrilha como um fogo de artifício que quima palavras. Uma vez mais, na minha mente locomotivas diesel e algumas ainda a carvão que, quando arrancam, me deixam entregue às trevas. Tal qual os meus amigos, que já todos arrancaram e como o fizeram, com que espavento, vrrrummmmmmm; quando arrancaram, foram trevas que a mim se colaram. Mas voltemos aos dez minutos de escrita. Creio que me não enganarei nem mentirei se reconhecer que estes dez minutos serão tudo o que nesta vida eu faço de útil. O mais, o mais é de deitar fora. Ó Kafka nunca quererei queimar os meus escritos, antes queimasse as minhas mãos… Vem um pensamento da minha meninice e arranca-me um sorriso, coisa rara. Já vos disse que também lia. Aqui e acolá. Ainda bem que lês, meu filho, a literatura levar-te-á longe, era o meu mestre escola quem dizia. Pobre bastardo. Ainda hoje eu não sei se essas seriam bem intencionadas… provavelmente sim, seriam, isso sim, ainda que bem intencionadas, pura ignorância, era um pobre homem do campo, num país de pedras. Fornava escritores e só se lhe ouvia, “Tanta gente, Mariana”; “A República dos Corvos”, andam “Sinais de fogo” pelo ar, é assim este meu Portugal, sou eu assim, este pequenito mulato…
Eis o que me proponho fazer: vou seleccionar dez partidas de dez comboios diferentes que chegarão, findas as suas viagens, a dez destinos diferentes. Dez destinos que poderiam ter sido os meus, mas que, por inércia minha, nunca o serão. É isso que me fascina nas estações de comboio, a partida, estridente, dolorosa, a viagem, e essa já é do reino do sonho, e a chegada, que é romântica. Engraçado que, ao cabo de cada viagem eu sinta um copo de jazz latindo dentro de mim, como se fizesse parte do meu desajeitado coração e como se, antecipando a vida, eu fugisse do improviso e da glória.
Então, apresentemos a estação. Gare de Santa Apolónia, 1984. Uma locomotiva redonda, azul, ruidosa e suja, cheia de pequenos focos de tensão, dez carruagens, desconjuntadas, da cor e da traça do país. Destino, Paris. A gare ainda sozinha, eu olho o chão e noto o encerado do uso, os bilhetes que são carimbados com alarido, no átrio de recepção, a chuva de chumbo que mascara as vidas, as primeiras pessoas que chegam, beijos que procuram outras faces, carícias de vinte anos, eu que saio do meu tombadilho de literatura e me acerco do maquinista, boa tarde, o senhor é que é um maquinista? E o homem diz que sim com a cabeça, olá, só o quero avisar que terá um último passageiro especial. Dentro em breve chegará Tolstoi, o gigante russo, quererá chegar são e salvo a Paris, último destino. E em surdina, cuidado com os solavancos e as buzinadelas. Tolstoi é um velhinho de saúde periclitante e em perda razoável das suas faculdades. Temo que morra pelo caminho. E com isto me afastei, maldito chumbo que cobre este céu… abri bem os olhos, conseguia ver, donde estava, a locomotiva, por deus, Tolstoi que não olhe e se aperceba do monstro que ali está, como é feia, e a última carruagem, onde eu sabia, entraria Tosltoi. Finalmente chegou, arrastava consigo, por cima de um carrinho desses de rodinhas, uma carroça de livros. Seriam os seus. Mas que pergunta. Enterrá-lo-iam? E é então que eu berro para a gare plena de gente, Tosltoi embarca a caminho do paraíso. Que velho bizarro. E aquela gente toda, sem sequer mover a cabeça, olha-me pelo canto do olho. Confesso que soube logo o que fazer. Juro que me apeteceu gritar ainda mais o seguinte, alegrai-vos, cabritos do senhor, nem eu mordo nem eu minto, tudo o que digo é da minha verdade. Tolstoi vem aí. Mas não, só me consegui calar. Os cabritos do senhor demasiado combalidos. Pois que esta vida é uma puta rachada ao meio. Enquanto ouço o maquinista, arreda as pedras que quero arrancar.
E este tanto chega para hoje. Amanhã, Tolstoi, apesar de combalido, conversará com Óscar Málaga Gallegos. Sobre quem? Ora, sobre a trapezista, quem mais. Há sempre uma companhia de circo na algibeira de qualquer grande escritor. São seres extraordinários. Cronópios! Libelinhas às cores que comem o chumbo dos dias.

Nuno Monteiro

domingo, 5 de dezembro de 2010

N'zid

O sol escoava-se inteirinho entre o tempo assim assim, parado. A cidade era amarela e tu vestias uma saia verde e vinhas descalça, sorrias, trazias rímel pelos olhos e dir-se-ia que para trás encosta abaixo soltava-se de ti um rubro sonho. Vinhas para próximo de mim e eu, enquanto, ouvia um dedilhar longínquo de guitarra e sentia toda a terra dentro de mim, piscava os olhos e os meros compreendiam-me, a cordilheira que para sempre lá estará sorria enquanto os folhos da tua saia verde faziam floc floc floc. Tocavas ao de leve no chão com os teus pés graciosos. Primeiros? Eu esticava a mão e degustava um vinho tinto inebriante. Quente, do vulcão, ao fundo o dedilhar constante dum choro e tu movias para perto de mim e eu ficava olhando o teu sorriso imperturbáve, era engraçado, por dentro de mim a terra inteira ufanava e sentia-se o marulhar calmo e manso do mediterrâneo. Quando te conseguisse olhar por detrás do verde dos olhos renasceria e então seria uma noite perpétua que me não entristeceria. Nunca! porque por detrás dos teus olhos verdes e depois do floc floc da saia tu pararias o tempo e eu renasceria. E seria de sol e de areia e de inteira argúcia. Tal como tu, mulher da cidade amarela…

Nuno Monteiro

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Faminto poema


Vejo-a e está tão sã a ponte entre a neblina. Passam os rios indecifráveis e levam-na os homens do mar quando a choram ou ainda as gaivotas quando a voam. Abate-se súbito o sol e clareia, limpa o ar e cessam os ventos alíseos. Tu cessas e deixas de chegar. Movem-se lá ao fundo os meros como se os habitasse a saudade. Sim, amigo, a saudade habita-os já. Nem sob a neblina nem no fundo. Não há Paris alguma e muito menos noite. Ó noite mais as badaladas ímpias da minha mocidade. Ferida, quiseste ir morrer longe. Paris está prenhe de novo. Nem um latido incomoda a minha noite. Eu, cessante, não durmo. Tenho fome. Tenho cada vez mais fome. É Paris quem me acaricia ronronando. Tu com fome? Veste umas asas e vai falar com as estátuas. Elas serão a tua salvação. E te não esqueças da máquina fotográfica que te mantém cativo. Na noite, por debaixo da ponte metálica, procuro o sol que tu foste, procuro a minha viagem, o meu comboio, limpo-me da minha Sibéria. Sei, ao cabo de quase quarenta anos que não há fama nem fortuna em lugar algum… nada que preste nem nada que resista. Mas há tentativas tantas quantas manhãs. E que algumas renascem esperanças…

Nuno Monteiro

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Os pequenos instantes


Esboçava, depois de dois anos, o seu primeiro ténue sorriso. Tépido e cauteloso como a vida. Saía de manhã para um emprego e por lá se deixava ficar horas e horas sufocadas… haverá Humanidade menos valorosa? A questão paira no ar… e Humanidade menos merecedora? Se Anita seria Corajosa? Coragem é uma espécie de vida de frio, eremita cumprido de sonhos, terra ou porão de navio… Anita diria merda para a coragem e o restante da frase segurá-la-ia pois do fundo do coração não queria ofender ninguém…
Sorria pouco e a medo e mal dava conta do sorriso impedia os lábios e afogava-o. Cruel seria Anita com ela própria. Cumprira finalmente a última etapa. Pontapearia a sorte e pagaria para ver. A custo se erguia pela parede íngreme da cordilheira, dobraria as tormentas e olharia o mundo lá por fora, por cima das nuvens, por detrás dos oceanos, leria Neruda e Skármeta, ouviria zumbir a miríade de insectos coloridos que vagueiam pela noite e tomaria banho, nua ou envergando um vestido negro de gala, nas águas borbulhentas da praia da Ericeira. Alguns diriam, dedo em riste e olhar acusador, Louca! Restelo e os seus velhos, velhacos empobrecidos e pútridos. Outros, mais bondosos, encovar-se-iam e chorariam sós, no interior sulfuroso de alguma casa de banho. O vento atiçar-lhe-ia os cabelos vermelhos entrelaçados como algas e Anita nadaria para os fundos lentos e assintomáticos onde vivem os meros.
A pouco e pouco compreenderia que a cordilheira é a própria vida. E que os poucos e pequenos instantes de sensatez são aqueles em que, no calor da batalha, se olha em volta e se olham os outros, os outros diferentes que lutam como nós.
Mas não os outros que, parcimoniosos e fartos de falinhas mansas, recorrentemente atiram areia aos olhos quando dizem, merda para esta vida, puta que a pariu. Apogeu de Judas! E será nesse instante que Anita, imbuída dum transe poético pensará, agora que finalmente sorri, não vou trair–me mais, onde fica o terminal de autocarros? E gentilmente se despedirá olhando já um adeus… o doido do circo, saído da tasca dir-lhe-á, adeus à terra imbuída de noite! Verás um amanhecer esplendoroso que não durará mais que instantes teus.

Nuno Monteiro

sábado, 13 de novembro de 2010

Ericeira, algures num recorte de papel


Se o queres salvar toma-o e lê, em teus lábios encontrei um mundo abensonhado, uma leira de terra e nela ergui a minha cabana, era ali mesmo ao cabo da terra, para lá dela, para ocidente, afundava-se a água e viviam os meros.
Recordo o teu colo nu. Sorrias, tinhas um sabor a morango e saltitavas louca das pernas esguias e dos olhos mudos, esquecidos. Da pequenita casa de madeira donde olhavas, logo pela manhã, o céu e o mar, lembravas uma escuna galopante, ávida. Recordo como me dizias, vem comigo para a praia e deveriam ser seis ou passariam trinta das seis. Era Verão então e tu vestias calções e cobrias os seios com um pedaço de pano branco. Davas um laço simples ou então ias-te de casa como se te não preocupasses… Passavas por mim a voar e eu ficava sentindo o teu cheiro doce. Quando te ia para tocar já o sol zombava alto, já um tépido calor subia pela areia e já teus pés, envoltos em pequeníssimos cristais de quartzo diziam en garde mundo, eu vim para te salvar e dito isto submergias na espuma das ondas e eu retinha o instante em que a tua cabeleira farta se ocultava contigo. Era ao fundo do mar, na companhia dos meros, que finalmente nos tocávamos. Recordo uma vez mais o teu colo nu. Apenas um colo em curva e uma pele tisnada, ardente. Lembro que sempre que engravidaste me ofereceste uma borboleta rosa. E era sempre ao fundo, onde a calma era completa, onde o mundo, alheio a tudo, nos vivia palpitando.
Sabes, adoraria que algum dia me vertesses rindo, nas páginas dum livro! Um dia obrigar-me-ás a escrever um. Será singela a oferta. Mas então não haverá mais tempo. E o mundo sucumbirá.

Nuno Monteiro

terça-feira, 9 de novembro de 2010

O lado cinzento das nuvens


Chove. Amainou o vento e ela agora cai, direitinha do céu. Toca o chão e transborda para dentro de mim. Eu, invariavelmente irradio e verto escorreito para este papel electrónico. É isso! Arrastei minhas raízes até esta terra amaldiçoada e agora verto estas que foram as minhas últimas lágrimas. Não temais mais! Não tenho quem me agrade e nem há quem me aceite. A água arrasta os rios para o fundo dos mares. Cheta? Nem vê-la. Resta Paris. Paris deambulada durante a noite. É de borla. Uma página por dia deverá render-me uma refeição diária…
Chove abundantemente. Os ratos correm à procura de abrigo. Vão todos para debaixo das pontes. Insuportável eu lá ficar. Qual é a lembrança mais pequena que tens?… levanta-se um vento caótico… Quisera que tudo não passasse de um aguaceiro, aceita estas que são as minhas últimas lágrimas. Sr. redactor fotografei o Outono. Um Euro por cor? O meu avô, nas escadas, contando histórias… não te lembras dele pois não, pois não, mais terno ainda, imagino-o.

Nuno Monteiro

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

"Scout"

Scout era uma pequenita descalça que chegava sempre atrasada à escola. O estilo olhos aventureiros corpo franzino e cabelo desalinhado contados que estavam doze anitos. Havia a escola e havia a matemática, havia o recreio e o caminho de terra que percorria só, ou acompanhada de Pedro… Porque Scout ainda não o sabia mas crescesse desataria com críticas de adulto do género, meu deus, mas será que esta escola me interessa se me cortam a criatividade e se me obrigam a calçar sapatos duros e tensos… ou ainda em criança, Pedro, vamos tomar aquele atalho e o barco nunca mais acabava, Olha Pedro, conheces a árvore da bruxa, vamos lá ter com ela e a conversa não mais terminava, caída a noite, lá vinha Atticus, um pai gigante, Scout, direitinha para casa, e se lhe dizia palavras duras os olhos diziam brandura e confiança, como quem soletra Tu és tudo o que eu sou, aprenderás o mundo e farás uma cabana na árvore. Deixar-te-ei lá dormir a primeira noite. Scout adormecia feliz. Não sem antes lhe perguntar Pai, julgas que esta escola me fará bem, quem deverá valer mais, os olhos e o ímpeto que eu sou ou o número que jaz por detrás de mim. Atticus calado. dEUS meu, que esta rapariga se imponha perante a vida…

Ainda e durante tanto tempo a propósito da Harper Lee!

Nuno Monteiro

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Por favor, não matem a cotovia

Três dias sem tirar uma única fotografia e que tempo esteve para tal. Quanta nuvem e que chuvada, que saudades da chuva que me não molhou, ou do vento que me não empurrou, que chuvada se esbarra contra as minhas vidraças e cá dentro, cá dentro só estou eu e o livro, eu e a minha biblioteca, não estive com meias medidas, com os meus pulmões doentes, não retirei um pé da cama e enquanto isso, bem, todo esse tempo estive entretido com um livro que achei delicioso, "To kill a mockingbird", um daqueles que nos faz reviver a infância, um daqueles que nos faz repensar a idade adulta, narrado por uma miúda duns oito anos, mas dotada duma inteligência e duma acutilância, dei por mim a desejar ser o Atticus, o pai dela, numa qualquer barra de tribunal...
Aconteceu, aconteceu que à medida que o lia eu ia melhorando, mas não apenas dos pulmões, eu fui melhorando e doravante, bem, de hoje em diante pintarei uma cotovia na minha T-shirt e chorarei enquanto me não convencer da Humanidade. Escreverei um texto breve ao qual chamarei "Scout". Em honra dela, da cotovia...

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Os olhos de adão e os pés de eva

O grande e majestoso deus, com as suas mãos de camélia, veio ao chão grande buscar um pouco de barro e amassando-o, tendo-se entretido mais que a conta, deve ter fartado pois atirou-o borda fora…
À data, o grande deus viajava de barco e havia uma quantidade enorme de pequeninas gentes que o remavam!
O bocadito de barro, intrépido e volteante, acabou de ganhar forma pelos ares e quando caiu, aterrou nas areias de uma praia lindíssima. Dois pés de mulher, o grande deus fizera, quase sem querer e o vento depois moldara, dois belíssimos pés de mulher. Ainda não havia a mulher, ainda não havia a face, ainda não havia o colo, as pernas e muito menos os cabelos ou os olhos. Mas já lá salteavam, praia fora, os pés, o esquerdo e o direito, frondosos, saltitando por entre a preia mar, evitando os recifes.
E durante muito tempo, o deus, tendo-se enfastiado, não quis mais moldar e quase abandonaria a arte não fosse um ou dois traços de teimosia. E durante todo esse tempo os pés zombariam indecisos e nús pela praia.
Contudo, o deus, magnífico, tempos depois, criaria dois olhos e arremessá-los-ia para a mesmíssima praia. Teria havido intenção? Tenho quase a certeza que não. Finalmente os olhos de imediato olhariam os pés e de repente se apaixonariam…
Então, o grande deus, embora já se enfastiasse ainda não se tinha tornado mau e daí vai que, tendo-se apercebido do que se passava na praia pegaria numa paleta de barro e desenharia uma macieira e nela colocaria uma enorme e suculenta maçã. Acabando adão entregar-lhe-ia os olhos que antes deitara para a praia e acabando eva entregar-lhe-ia os pés, belíssimos que havia tempo se encontravam na praia. Assim, adão entreter-se-ia com os pés de eva e nem olharia para a maçã. O paraíso seria para sempre paraíso e a maçã, acabaria por cair do quadro para o chão e madura, comê-la-iam os vermes, esses glutões.
Deus, admirando adão e eva no paraíso pediria aos seus súbditos que dali o remassem para fora e pegando num novo bocado de argila, teria desta feita mais cuidado e em vez de pés de mulher, durante um sono de adão, pensaria na história mais que badalada da costela.

nuno monteiro
“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

Prémio Histórico - Filosóficas