terça-feira, 6 de julho de 2010

A rua

A rua

Era Clara, ao final do dia, fugindo da praia, entrando magra pelas ruelas das vidraças partidas, vermelhas e verdes e negras, choradas. Levava na mão, folhas escritas, retratos incompletos, pedaços de vozes, pinturas e partituras, doenças, suores. Ao cabo da rua esperava-a uma tela cinzenta onde Clara se diluiria. Por enquanto sentia sede. Uma franqueza subia a calçada e Clara, moça ainda, envergando uma camisa de marinheiro, azul às riscas brancas, sorria às caldeiradas que cheiravam das janelas. Dali a exactamente dez minutos, caminhando, chegaria ao pé duma cadela. Debruçar-se-ia apenas para descobrir que a cadela estaria morta com um tiro no crânio. Chora, acto contínuo. E borrata a camisa que depressa encapela, abandonando os modos do Pacífico…
Clara não saberia nunca mas chorava sempre que via, na rua, algum animal abandonado. Que monstro é capaz de matar uma cadela com um tiro?

Nuno Monteiro

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“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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