domingo, 28 de novembro de 2010

"O Balouço", de Fragonard

Como balouça pelos ares no espaço
entre arvoredo que tremula e saias
que lânguidas esvoaçam indiscretas!
Que pernas se entrevêem, e que mais
não se vê o que indiscreto se reclina
no gozo de escondido se mostrar!
Que olhar e que sapato pelos ares,
na luz difusa como névoa ardente
do palpitar de entranhas na folhagem!
Como um jardim se emprenha de volúpia,
torcendo-se nos ramos e nos gestos,
nos dedos que se afilam, e nas sombras!
Que roupas se demoram e constrangem
o sexo e os seios que avolumam presos,
e adivinhados na malícia tensa!
Que estátuas e que muros se balouçam
nessa vertigem de que as cordas são
tão córnea a graça de um feliz marido!
Como balouça, como adeja, como
é galanteio o gesto com que, obsceno,
o amante se deleita olhando apenas!
Como ele a despe e como ela resiste
no olhar que pousa enviesado e arguto
sabendo quantas rendas a rasgar!
Como do mundo nada importa mais!

Jorge de Sena, in "Antologia Poética" guimarães, 2010


retirado de: http://ocafedosloucos.blogspot.com/

domingo, 21 de novembro de 2010

O Ano da morte de José Saramago

Amadeu Baptista
&etc, Setembro de 2010


(...)
A desagregação está a marcar-nos como povo, Nuno,
o povo acabará por resistir,
mas o povo faz coisas iníquas,
pode queimar-nos a casa num espavento de ódios,
pode escolher a sarjeta contra todas as expectativas,
pode acorrentar-se ao jugo da insipiência
e deixar por isso que se fechem escolas às centenas
e que se não trate de dirimir a injustiça de sempre
no campo,
nas cidades,
na pátria,
no planeta,
enquanto a feira dos capões está viva e se recomenda
e os Impérios aproveitam o sono dos vulcões que tanto tardam
a explodir

Pombos, pombas, alcachofras, acelgas, nabos, tomates – de tudo há na feira
de antiguidades,
o mal é esse, não se ter dado baixa nos armazéns dos legumes
de tudo quanto está podre,
continuando o baile a primazia da música alienante,
alienígena,
aqui,
onde todos ralham e todos têm razão
e a morte continua a matar,
por mais que se emocione,
como o Saramago quis,
por mais que deixe de nos escrever cartas de cor violeta,
por mais que escute connosco sonatas para violoncelo
e primavera
por mais que se lancem passarolas no espaço para que a pátria se veja
num arremedo de esperança
– está morto Bartolomeu Lourenço de Gusmão,
está morto o nosso menino de oiro, sumido com o seu balão
no desconforme horizonte do Cabedelo,
está morta a Micas Bombas com os seus prodígios capilares,
está o José Saramago morto,
estamos todos mortos neste infame globo,
quanto mais mortos estivermos melhor nos escravizam

Ah, dancemos, dancemos, ainda, irrevogavelmente,
soltemos uma gargalhada visceral sobre tudo isto,
registemos a infância como padrão do dia em que começamos a esperar,
porque quem espera, desespera,
e em todas as vielas há um anjo que espera

Eu era menino
e o do que melhor me lembro é da viela do Anjo,
onde o mundo é intacto,
se mundo é o que por lá se vê,
os anjos são a única metafísica em que acredito,
comam ou não comam pequenos chocolates,
ajudem, ou não, Caim na heresia benéfica,
tratem, ou não, de contrapor à espada de fogo o fogo dos vaticínios
– os anjos somos nós no espavento de sermos,
isto sei eu que não sou um vencedor,
mas qualquer insignificância é valiosa,
qualquer migalha,
e se alguma transcendência há que seja essa,
a que dos anjos vem,
incorrigíveis
(...)

Lido em: http://porosidade-eterea.blogspot.com/

Porque vivemos demasiado o nosso castelo

Vila Cova, Campeã, Portugal

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Os pequenos instantes


Esboçava, depois de dois anos, o seu primeiro ténue sorriso. Tépido e cauteloso como a vida. Saía de manhã para um emprego e por lá se deixava ficar horas e horas sufocadas… haverá Humanidade menos valorosa? A questão paira no ar… e Humanidade menos merecedora? Se Anita seria Corajosa? Coragem é uma espécie de vida de frio, eremita cumprido de sonhos, terra ou porão de navio… Anita diria merda para a coragem e o restante da frase segurá-la-ia pois do fundo do coração não queria ofender ninguém…
Sorria pouco e a medo e mal dava conta do sorriso impedia os lábios e afogava-o. Cruel seria Anita com ela própria. Cumprira finalmente a última etapa. Pontapearia a sorte e pagaria para ver. A custo se erguia pela parede íngreme da cordilheira, dobraria as tormentas e olharia o mundo lá por fora, por cima das nuvens, por detrás dos oceanos, leria Neruda e Skármeta, ouviria zumbir a miríade de insectos coloridos que vagueiam pela noite e tomaria banho, nua ou envergando um vestido negro de gala, nas águas borbulhentas da praia da Ericeira. Alguns diriam, dedo em riste e olhar acusador, Louca! Restelo e os seus velhos, velhacos empobrecidos e pútridos. Outros, mais bondosos, encovar-se-iam e chorariam sós, no interior sulfuroso de alguma casa de banho. O vento atiçar-lhe-ia os cabelos vermelhos entrelaçados como algas e Anita nadaria para os fundos lentos e assintomáticos onde vivem os meros.
A pouco e pouco compreenderia que a cordilheira é a própria vida. E que os poucos e pequenos instantes de sensatez são aqueles em que, no calor da batalha, se olha em volta e se olham os outros, os outros diferentes que lutam como nós.
Mas não os outros que, parcimoniosos e fartos de falinhas mansas, recorrentemente atiram areia aos olhos quando dizem, merda para esta vida, puta que a pariu. Apogeu de Judas! E será nesse instante que Anita, imbuída dum transe poético pensará, agora que finalmente sorri, não vou trair–me mais, onde fica o terminal de autocarros? E gentilmente se despedirá olhando já um adeus… o doido do circo, saído da tasca dir-lhe-á, adeus à terra imbuída de noite! Verás um amanhecer esplendoroso que não durará mais que instantes teus.

Nuno Monteiro

sábado, 13 de novembro de 2010

Ericeira, algures num recorte de papel


Se o queres salvar toma-o e lê, em teus lábios encontrei um mundo abensonhado, uma leira de terra e nela ergui a minha cabana, era ali mesmo ao cabo da terra, para lá dela, para ocidente, afundava-se a água e viviam os meros.
Recordo o teu colo nu. Sorrias, tinhas um sabor a morango e saltitavas louca das pernas esguias e dos olhos mudos, esquecidos. Da pequenita casa de madeira donde olhavas, logo pela manhã, o céu e o mar, lembravas uma escuna galopante, ávida. Recordo como me dizias, vem comigo para a praia e deveriam ser seis ou passariam trinta das seis. Era Verão então e tu vestias calções e cobrias os seios com um pedaço de pano branco. Davas um laço simples ou então ias-te de casa como se te não preocupasses… Passavas por mim a voar e eu ficava sentindo o teu cheiro doce. Quando te ia para tocar já o sol zombava alto, já um tépido calor subia pela areia e já teus pés, envoltos em pequeníssimos cristais de quartzo diziam en garde mundo, eu vim para te salvar e dito isto submergias na espuma das ondas e eu retinha o instante em que a tua cabeleira farta se ocultava contigo. Era ao fundo do mar, na companhia dos meros, que finalmente nos tocávamos. Recordo uma vez mais o teu colo nu. Apenas um colo em curva e uma pele tisnada, ardente. Lembro que sempre que engravidaste me ofereceste uma borboleta rosa. E era sempre ao fundo, onde a calma era completa, onde o mundo, alheio a tudo, nos vivia palpitando.
Sabes, adoraria que algum dia me vertesses rindo, nas páginas dum livro! Um dia obrigar-me-ás a escrever um. Será singela a oferta. Mas então não haverá mais tempo. E o mundo sucumbirá.

Nuno Monteiro

terça-feira, 9 de novembro de 2010

O lado cinzento das nuvens


Chove. Amainou o vento e ela agora cai, direitinha do céu. Toca o chão e transborda para dentro de mim. Eu, invariavelmente irradio e verto escorreito para este papel electrónico. É isso! Arrastei minhas raízes até esta terra amaldiçoada e agora verto estas que foram as minhas últimas lágrimas. Não temais mais! Não tenho quem me agrade e nem há quem me aceite. A água arrasta os rios para o fundo dos mares. Cheta? Nem vê-la. Resta Paris. Paris deambulada durante a noite. É de borla. Uma página por dia deverá render-me uma refeição diária…
Chove abundantemente. Os ratos correm à procura de abrigo. Vão todos para debaixo das pontes. Insuportável eu lá ficar. Qual é a lembrança mais pequena que tens?… levanta-se um vento caótico… Quisera que tudo não passasse de um aguaceiro, aceita estas que são as minhas últimas lágrimas. Sr. redactor fotografei o Outono. Um Euro por cor? O meu avô, nas escadas, contando histórias… não te lembras dele pois não, pois não, mais terno ainda, imagino-o.

Nuno Monteiro

sábado, 6 de novembro de 2010

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

"Scout"

Scout era uma pequenita descalça que chegava sempre atrasada à escola. O estilo olhos aventureiros corpo franzino e cabelo desalinhado contados que estavam doze anitos. Havia a escola e havia a matemática, havia o recreio e o caminho de terra que percorria só, ou acompanhada de Pedro… Porque Scout ainda não o sabia mas crescesse desataria com críticas de adulto do género, meu deus, mas será que esta escola me interessa se me cortam a criatividade e se me obrigam a calçar sapatos duros e tensos… ou ainda em criança, Pedro, vamos tomar aquele atalho e o barco nunca mais acabava, Olha Pedro, conheces a árvore da bruxa, vamos lá ter com ela e a conversa não mais terminava, caída a noite, lá vinha Atticus, um pai gigante, Scout, direitinha para casa, e se lhe dizia palavras duras os olhos diziam brandura e confiança, como quem soletra Tu és tudo o que eu sou, aprenderás o mundo e farás uma cabana na árvore. Deixar-te-ei lá dormir a primeira noite. Scout adormecia feliz. Não sem antes lhe perguntar Pai, julgas que esta escola me fará bem, quem deverá valer mais, os olhos e o ímpeto que eu sou ou o número que jaz por detrás de mim. Atticus calado. dEUS meu, que esta rapariga se imponha perante a vida…

Ainda e durante tanto tempo a propósito da Harper Lee!

Nuno Monteiro

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Por favor, não matem a cotovia

Três dias sem tirar uma única fotografia e que tempo esteve para tal. Quanta nuvem e que chuvada, que saudades da chuva que me não molhou, ou do vento que me não empurrou, que chuvada se esbarra contra as minhas vidraças e cá dentro, cá dentro só estou eu e o livro, eu e a minha biblioteca, não estive com meias medidas, com os meus pulmões doentes, não retirei um pé da cama e enquanto isso, bem, todo esse tempo estive entretido com um livro que achei delicioso, "To kill a mockingbird", um daqueles que nos faz reviver a infância, um daqueles que nos faz repensar a idade adulta, narrado por uma miúda duns oito anos, mas dotada duma inteligência e duma acutilância, dei por mim a desejar ser o Atticus, o pai dela, numa qualquer barra de tribunal...
Aconteceu, aconteceu que à medida que o lia eu ia melhorando, mas não apenas dos pulmões, eu fui melhorando e doravante, bem, de hoje em diante pintarei uma cotovia na minha T-shirt e chorarei enquanto me não convencer da Humanidade. Escreverei um texto breve ao qual chamarei "Scout". Em honra dela, da cotovia...
“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

Prémio Histórico - Filosóficas