quarta-feira, 9 de março de 2011

Pequena luz


Sou uma pequena luz numa terra tão obscura, sinto o branco na tua face, os meus lábios nos teus lábios, louvo olhos onde não existem sequer sombras, és dona duma estrada longa e larga, acaricias o gato e olha-lo de ternura como se tivesses acabado de sair da discoteca e não é que sim, do outro lado da rua fica a discoteca e eu, uma pequena luz do lado de cá do vidro fosco, fico de pé, indefinidamente, placidamente, sorrateiramente, olhando em frente, olhando-te. Porquê? Ainda perguntas… depois do mundo, após a noite e todo o vento, nesta terra tão obscura, amo os teus lábios e louvo-te os olhos quando me olham como se eu não fosse mais que um poeta. Por isso. E porque, por vezes, ao alçares o olhar, não me encontras a mim mas sim à noite que encarno. Nada mais existe nem dentro nem fora de ti e no entanto, tudo o que tu és. Tudo o que tu és… eu? Eu sou apenas uma luz escandinava! Uma pintura verde no céu estrelado. Todo eu sou fome e todo eu sou horrores…

Nuno Monteiro

quinta-feira, 3 de março de 2011

Asas quebradas


Existem olhos pequenos e olhos grandes, olhos brancos e olhos escuros, existem olhos que veem e olhos que veem doutras formas. Existem olhos que olham outros olhos. Há olhos de cristal que são sorrisos e há olhos vazios que estão perdidos.
Eu, ao pé do Guadiana, tendo atrás de mim a belíssima cidade caiada de branco, enquanto sentava , calhei de a ver olhando bem dentro dos olhos dela. Pois bem. O que será feito do antigo sol e da alegria que dantes eles continham? Para onde terá ido todo esse mar? Calhei de a ver olhando bem dentro dos olhos e eis quando me assustei já que em vez de olhos azuis celestes, eu vi um país de areia imensa e nem um abraço. Espaço, espaço infindo e um buraco do qual só se sai pelo fundo. Calhei de a ver e de lhe mirar os olhos mas ela não, passou sobre mim e não me olhou, creio até que terá afastado o olhar. Antes assim. Eu teria chorado.
Alguns olhos vagueiam perdidos por esta nossa imensa noite, como se viajassem perpetuamemente num metro ou num autocarro ou num rio como este Guadiana.

Nuno Monteiro

quarta-feira, 2 de março de 2011

Peter

Sempre que lhe pergntavam, ele abria os lábios num sorriso puro e dizia! Peter e logo no instante seguinte, quando já se havia esquecido de quem era, chegava a vida montada num corcel cinza e esbofeteava-o. Ele fechava os olhos e cirrava os dedos por dentro dos ossos das mãos. Esse não seria o momento de ouvir cantiga alguma e contudo ouvia-a já que gostava de dizer teimoso… Subia a estrada, chutando pedras do caminho e apanhava chumaços de gramínias com os quais enfeitava a pele das mãos e quando via ao longe algum estranho ficava parado como olha aquele que não ignora. Pedia esmola e se o exaltavam ele escarrava e voltava a face. Todos os sonhos lhe fugiam. Havia apenas um. Chegado à aldeia procurava o bar e abria as portadas com os pés, entrando de rompante. Pagava rodadas e rodadas a todos e já bêbado, sacava de alguma guitarra que ali vivesse e no fim, agradecendo, dizia, como se falasse por intermédio de alguma criança, estranhos, eu sou Peter, da terra de pan. E acreditava mesmo naquilo e ouvia-os a rir e a vocejar mas era assim que ele se mantinha cativo. Peter, da terra de pan. Algures lá longe havia um hospício com uma cama vazia. Eu sempre pensei que não. Este mundo precisa mesmo que ele seja quem diz ser. Ao som da cantiga, na manhã seguinte, nem ele compreendesse, deitava os pés ao caminho e inflava os pulmões ao mar de vento. Peregrinava e quanto mais andasse mais as multidões lhe sumiriam vazias. Haveria, ao cabo do mundo, Rocamadour e essa morada, tão bem o sabia, trar-lhe-ia paz.

Nuno Monteiro
“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

Prémio Histórico - Filosóficas