Mostrar mensagens com a etiqueta Poesia. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Poesia. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 9 de março de 2011

Pequena luz


Sou uma pequena luz numa terra tão obscura, sinto o branco na tua face, os meus lábios nos teus lábios, louvo olhos onde não existem sequer sombras, és dona duma estrada longa e larga, acaricias o gato e olha-lo de ternura como se tivesses acabado de sair da discoteca e não é que sim, do outro lado da rua fica a discoteca e eu, uma pequena luz do lado de cá do vidro fosco, fico de pé, indefinidamente, placidamente, sorrateiramente, olhando em frente, olhando-te. Porquê? Ainda perguntas… depois do mundo, após a noite e todo o vento, nesta terra tão obscura, amo os teus lábios e louvo-te os olhos quando me olham como se eu não fosse mais que um poeta. Por isso. E porque, por vezes, ao alçares o olhar, não me encontras a mim mas sim à noite que encarno. Nada mais existe nem dentro nem fora de ti e no entanto, tudo o que tu és. Tudo o que tu és… eu? Eu sou apenas uma luz escandinava! Uma pintura verde no céu estrelado. Todo eu sou fome e todo eu sou horrores…

Nuno Monteiro

domingo, 28 de novembro de 2010

"O Balouço", de Fragonard

Como balouça pelos ares no espaço
entre arvoredo que tremula e saias
que lânguidas esvoaçam indiscretas!
Que pernas se entrevêem, e que mais
não se vê o que indiscreto se reclina
no gozo de escondido se mostrar!
Que olhar e que sapato pelos ares,
na luz difusa como névoa ardente
do palpitar de entranhas na folhagem!
Como um jardim se emprenha de volúpia,
torcendo-se nos ramos e nos gestos,
nos dedos que se afilam, e nas sombras!
Que roupas se demoram e constrangem
o sexo e os seios que avolumam presos,
e adivinhados na malícia tensa!
Que estátuas e que muros se balouçam
nessa vertigem de que as cordas são
tão córnea a graça de um feliz marido!
Como balouça, como adeja, como
é galanteio o gesto com que, obsceno,
o amante se deleita olhando apenas!
Como ele a despe e como ela resiste
no olhar que pousa enviesado e arguto
sabendo quantas rendas a rasgar!
Como do mundo nada importa mais!

Jorge de Sena, in "Antologia Poética" guimarães, 2010


retirado de: http://ocafedosloucos.blogspot.com/

domingo, 21 de novembro de 2010

O Ano da morte de José Saramago

Amadeu Baptista
&etc, Setembro de 2010


(...)
A desagregação está a marcar-nos como povo, Nuno,
o povo acabará por resistir,
mas o povo faz coisas iníquas,
pode queimar-nos a casa num espavento de ódios,
pode escolher a sarjeta contra todas as expectativas,
pode acorrentar-se ao jugo da insipiência
e deixar por isso que se fechem escolas às centenas
e que se não trate de dirimir a injustiça de sempre
no campo,
nas cidades,
na pátria,
no planeta,
enquanto a feira dos capões está viva e se recomenda
e os Impérios aproveitam o sono dos vulcões que tanto tardam
a explodir

Pombos, pombas, alcachofras, acelgas, nabos, tomates – de tudo há na feira
de antiguidades,
o mal é esse, não se ter dado baixa nos armazéns dos legumes
de tudo quanto está podre,
continuando o baile a primazia da música alienante,
alienígena,
aqui,
onde todos ralham e todos têm razão
e a morte continua a matar,
por mais que se emocione,
como o Saramago quis,
por mais que deixe de nos escrever cartas de cor violeta,
por mais que escute connosco sonatas para violoncelo
e primavera
por mais que se lancem passarolas no espaço para que a pátria se veja
num arremedo de esperança
– está morto Bartolomeu Lourenço de Gusmão,
está morto o nosso menino de oiro, sumido com o seu balão
no desconforme horizonte do Cabedelo,
está morta a Micas Bombas com os seus prodígios capilares,
está o José Saramago morto,
estamos todos mortos neste infame globo,
quanto mais mortos estivermos melhor nos escravizam

Ah, dancemos, dancemos, ainda, irrevogavelmente,
soltemos uma gargalhada visceral sobre tudo isto,
registemos a infância como padrão do dia em que começamos a esperar,
porque quem espera, desespera,
e em todas as vielas há um anjo que espera

Eu era menino
e o do que melhor me lembro é da viela do Anjo,
onde o mundo é intacto,
se mundo é o que por lá se vê,
os anjos são a única metafísica em que acredito,
comam ou não comam pequenos chocolates,
ajudem, ou não, Caim na heresia benéfica,
tratem, ou não, de contrapor à espada de fogo o fogo dos vaticínios
– os anjos somos nós no espavento de sermos,
isto sei eu que não sou um vencedor,
mas qualquer insignificância é valiosa,
qualquer migalha,
e se alguma transcendência há que seja essa,
a que dos anjos vem,
incorrigíveis
(...)

Lido em: http://porosidade-eterea.blogspot.com/

domingo, 17 de outubro de 2010

O Tango do Mundo

Nos olhos a saudade:

adoro as tuas pernas de Buenos Aires e os sapatos pretos que te encantam bailando,
o triângulo de cetim que se dobra sobre ti como se fosse traição,
o sangue que te inunda a face e te cora de vergonha ou a mudez que te leva dançando
adoro as tuas mãos que tocam gentis e esse teu passo arrastado, quase cansado

Um tango que te leva:

Tuas as mãos quiseram as pétalas que te escondem os mamilos
Enquanto
água suada te cai pelo rosto e tu ris por fim
o cabelo apanhado em espuma vermelha
e uma figura de linho que pousa no chão um pé oblíquo
e estendendo o braço pede um abraço.

A viagem transcontinental:

suga-a em Paris, apalpa-a e obriga-a a uma dança
um trago de emoção
mistura-lhe o coração
trá-la ausente do traço
fá-la descrente
no mesmo braço, presente e ausente, com os olhos fitos num laço


À noite:

Envolve-a num carro sobre a escuridão
Parqueia em frente à mansão
Atravessa Versailles, franco e confidente
Envolta-a num pano preto e
Condu-la às cegas…
Quando do mundo suficientemente retirados
Morre-a na madeira do chão.

Nuno Monteiro

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Argentina

Vestias as tuas pernas
Envolvias os teus pequeninos seios
E dançavas um tango arrastado
Que não era mais que a vida
Subias ao palco enlouquecida

De súbito chegou quem te bateu
E tu fechaste os olhos e enlaçaste os braços protegendo a face…
Deitaste as roupas à mala
E viajaste
Na noite
Por este mundo
Crua
Imóvel
Vertendo por aqui e por acolá
Um pequeno sorriso acanhado
Mas bonito

Rocamadour

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Coisas que nunca - 1

Há coisas que nunca
tivemos em crianças e perdem
o valor para sempre. Aquele sempre
dos primeiros dez anos, onde o tempo,
as pessoas, as coisas
parecem enormes e indestrutíveis.

Disfarçar-se de relâmpago
ou de outras coisas impossíveis, comer
todos os chocolates, ter uma bicicleta igual
à do estúpido do vizinho, fazer
as coisas que os adultos escondem
atrás da porta dos quartos, retribuir
a bofetada aos nossos
legítimos superiores, querer
morder com justa causa
tanta gente no mundo e
só poder no escuro
morder uma almofada.

Inês Lourenço, in “Coisas que nunca” & etc, 2010

Lido em: http://www.ocafedosloucos.blogspot.com/

Todos os anos em setembro, Quando as escolas abrem

Todos os anos em setembro, quando as escolas abrem
As mulheres dos subúrbios vão às papelarias
Comprar os livros e os cadernos para os filhos.
Desesperadas pescam os últimos patacos
das saquinhas coçadas, lamentando-se
De o saber ficar tão caro. E ainda elas não sabem
Que mau é o saber que está
Destinado aos seus filhos

Bertold Brecht, Poemas (Versão Portuguesa de Paulo Quintela)

Lido aqui:
http://abnoxio.weblog.com.pt/arquivo/poesia_de_outros_autores/index0

domingo, 15 de agosto de 2010

Ontem eras criança

Serei o teu melhor amigo, isso te afianço
Serei eu em meio das nuvens em meio de ti
Serei quem te alcançará
Serei quem te adoçará…

Seremos de toda a porcelana
Queremos nada com a vida que se vive
Queremos frutos de arte, temos fome dos teus olhos cândidos
Somos pranto em tela rubra, incenso…

Serei eu que revisitarei teu castelo
Eu, a espada que te assolará o coração
E que te porá a pensar se és possível
Eu,
A nuvem de saudade de um futuro que não és ainda.

E depois do amanhecer, depois da melodia, depois da flor
E depois
Depois há outros livros
Há outros sonhos
Há mais desafios e tu não queres parar, tu não queres ser a boneca que se enfeitiça e fica confortável adulando as próprias pestanas.

Por isso plana ave doida
Imprime teus ideólogos e canta
Sobe ao estrelato e não tenhas receio
Só o partido te pode dar a garrafa de vinho que julgavas indecente
E perde as estribeiras para construíres o futuro.

A criança cresceu e singra sonhando…

Nuno Monteiro

Ana Paula, óleo sobre tela

É de noite quando as ruas gemem
Meditam
Algures, barcos esquecem da altivez do tempo
Telas informes
De nenúfares e prazeres
Em tom de castanho, envolvida em cacau, numa toada morna, salgada
(Os barcos)
Mudam o nome
E rezam:
Ana Paula
Pouco falta!
Bebe do copo a última gota
Um pé fora da chinela
E um sorriso tonto
Pinta-me um céu de meteoros…
Lânguida,
Do mescal
Deitar-se-á na areia
Envolverá o seio, com uma mão esquírola, vermelha, algaça
E quedar-se-á
Retirem a luz do mundo…
Quero sentir-me repleta!
E da tela
Pinga um óleo, que como chocolate
Lhe tisna o rosto
Sobra o pé, balançando, infinito, longo e largo, indecente…
Num avanço sobre o espelho…
um lampião de alma, atiçado em brasa.

Nuno Monteiro

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

A corda que escrevinha na areia

À quebra luz,
por cima dum lajedo,
rodeado por lobos…
havia um homem do lado de cá do mar
e outro no outro canto
um cinto invisível
de loucura, a brancura do cordão umbilical que os mantinha unidos…
O vento soprava louco por entre as estepes
miúdos passavam, sobravam, rolavam
eram pedras que tremelicavam de frio
por dentro deles sangrava um cume que a custo se distanciava…
Sentado na berma do mar, um dos homens chorava
Zombando, no outro canto, o outro homem segurava um polvo
maldito, escarninho que lhe tomava o braço todo…
Enchia o mar uma onda imensa de pânico, livros bafientos
um dos homens lia lendo e ensurdecia enlouquecia declamava!
o polvo sugava-lhe os dedos e em breve lhe roubaria o braço.
Pois bem! Deixá-lo ir!
As águas frias nunca mais veriam a sua amada…
À visão clara límpida sobranceira
Dum charco de luz,
saltava de dentro de um pote, um baú, uma ilha, uma melodia, uma guitarra, A mulher
que mantinha o louco louco e o sorriso sorrindo…

Nuno Monteiro

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Pelo sonho é que vamos

Somos assim aos dezassete.
Sabemos lá que a vida é ruim!
A tudo amamos, tudo cremos.
Aos dezassete eu fui assim.

Depois, Acilda, os livros dizem,
Dizem os velhos, dizem todos:
“A vida é triste! A vida leva,
A um e um, todos os sonhos.”

Deixá-los lá falar os velhos,
Deixá-los lá… A vida é ruim?
Aos vinte e seis eu amo, eu creio.
Aos vinte e seis eu sou assim.

Sebastião da gama, in Pelo sonho é que vamos (1953),

domingo, 18 de julho de 2010

A borboleta que arranca a vida

Enquanto ela fervilha e alcança
A acácia negra habita os céus e estranha a doença
Ela não foge nem alcança – ((a vida é só um imenso salpicar de areia saltando da cachoeira))
Essa negra erva que galga esse delírio;
Esse colírio;
Esse pequenino pardal;
Asas puídas de um papel às cores (das minhas barbas ouço que se me rasgam as saias)

Como será possível deitar-se perdidas umas flores tão belas?
Onde foste buscar esse sorriso ?
E as tuas negras saias de folhos…
(Auroras verdes azuis culminando o vazio saltitando ao frio)
Por enquanto bordadas a linho!
Adiante, na berma do carreiro
Ao fim da noite
Um pedaço de calor te tocará
O ventre! (meu inteiro! como eu quero esse ventre quente esse suave ausente…)

Serás um chorrilho de água e um moinho de pedra molar
(habitarás insana uma pedra inculta! Uma muito longa noite…)
Olvidarás uma framboesa selvagem
Erguendo o vazio
Desses olhos de águia…

Despencará às loucas pelo céu acima
O azul celeste da borboleta que arranca a vida…

Rocamadour

retirado de: http://feminino-singular.blogspot.com/

quinta-feira, 15 de julho de 2010

a doida quer morrer-me

Insónia roxa. A luz a virgular-se em medo,
Luz morta de luar, mais Alma do que a lua…
Ela dança, ela range. A carne, álcool de nua,
Alastra-se pra mim num espasmo de segredo…
Tudo é capricho ao seu redor, em sombras fátuas…
O aroma endoideceu, upou-se em cor, quebrou…
Tenho frio… Alabastro!… A minha Alma parou…
E o seu corpo resvala a projectar estátuas…
Ela chama-me em Íris. Nimba-se a perder-me,
Golfa-me os seios nus, ecoa-me em quebranto…
Timbres, elmos, punhais… A doida quer morrer-me:
Mordoura-se a chorar - há sexos no seu pranto…
Ergo-me em som, oscilo, e parto, e vou arder-me
Na boca imperial que humanizou um Santo…

Mário de Sá-Carneiro

retirado de: http://cortenaaldeia.blogspot.com/2010_05_01_archive.html

quarta-feira, 14 de julho de 2010

DESERTO

Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua


Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.



Sophia de Mello Breyner Andresen

retirado de: http://ruadaspretas.blogspot.com/2010/07/sophia-de-mello-breyner-andresen.html

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Edgar

Silêncio
Um não contundente ao fim da vista
Uma folha que esvoaça por cima da lufada de ar
Uma pistola
Uma agonia
Terebentina, a cadela, não pára de latir (talvez assustada)
Ele que a não ouve, não a poderá nunca ouvir
Face rubicunda, um musgo verde cinzento brotando da humidade do dia
Dentes serrilhados, há muito mortos
Um fogacho de luz anuncia o inverno
Outra vez a pistola
Como é que ele descobriu o momento
Do som do trovão?
Terebentina cai ao chão
A língua encostada à terra

Ele
Silêncio
O mundo jaz a seus pés, iracundo, nunca lhe dando nada.

Baldes e baldes de chuva enchem os carreiros de pedras e lama…


Nuno Monteiro

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Poema do gato

Quem há-de abrir a porta ao gato
quando eu morrer?

Sempre que pode
foge prá rua
cheira o passeio
e volta para trás,
mas ao defrontar-se com a porta fechada
(pobre do gato!)
mia com raiva
desesperada.

Deixo-o sofrer
que o sofrimento tem sua paga,
e ele bem sabe.

Quando abro a porta corre para mim
como acorre a mulher aos braços do amante.
Pego-lhe ao colo e acaricio-o
num gesto lento,
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele olha-me e sorri, com os bigodes eróticos,
olhos semi-cerrados, em êxtase,
ronronando.

Repito a festa,
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele aperta as maxilas,
cerra os olhos,
abre as narinas,
e rosna,
rosna, deliquescente,
abraça-me
e adormece.

Eu não tenho gato, mas se o tivesse
quem lhe abriria a porta quando eu morresse?


António Gedeão

sábado, 26 de junho de 2010

Sensação

No azul das tardes de verão, irei pelos caminhos
Tracejado pelos trigos, pisar a erva tenra:
Sonhante, sentirei a meus pés sua frescura.
Deixarei o vento banhar-me a cabeça nua.

Não falarei - pensarei em nada:
Mas um amor infinito subir-me-á na alma, e eu
Irei longe, bem longe, como um cigano, feliz
Pela Natureza -, na companhia da mulher sonhada.


Arthur Rimbaud in. "O Rapaz Raro" relógio d'água


retirado de: http://ocafedosloucos.blogspot.com/2006_05_01_archive.html

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Carícia

Uma perna esguia ao fundo da qual
Um pé
Espreitava
E duas mãos
Que o acariciavam
E gentilmente concediam
Ao pé
E à perna
Um travo
Fastio
Convulsão
Feitio
Uma perna funda ao esguio da qual
Uma língua
Tacteava
Enrubescia
Encandeada
Acobreada
Essa serpente
Emplumada…
Que cortava a onda ao de leve
E se entregava
Subtil
Ao jogo
Do amor

Nuno Monteiro

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Escrever


Antes que seja tarde, devo dizer que considero o acto de escrever pouco saudável.
E gostaria que o tom fosse considerado como um desabafo, e não confessional.
Decorrido meio século de existência, aprendi a coabitar comigo mesmo.
Quer essa relação se assuma como um comovido flash back, ou um severo ajuste de contas.
Felizmente, sobra-me mais tempo para esquecer do que para emendar.
Decorrido meio século de existência, li e escrevi o suficiente para considerar a escrita – como qualquer outro acto criador – antropófaga até à vileza.
Ninguém se surpreenderá se afirmar que a minha geração superou esse objectivo.
Excedendo-se no show off, ou no striptease onanista, onde um predisposto auditório se reconhece e excita.
A leitura das gerações que me precedem, em nada tem contribuído para perturbar, ou abalar, este assumido preconceito.
Os Pessoa, Kerouac, Ginsberg, Hemingway, Michaux, Aquilino, Cardoso Pires, o exaltante Saint-John Perse, ou o inevitável Herberto, todos me recusaram uma escrita límpida e saudável.
Até mesmo em O Sorriso aos Pés da Escada, o único Miller que conservo, a beleza é perversa e sublinhada por um fio de pus.
Todos eles me envenenaram uma predisposição que começou por ser saudada na escola, e onde a família se conformou em depositar esperança de que continuasse a ser bonita.
E, sobretudo, que tivesse futuro.
Antes que seja tarde, devo esclarecer que ainda hoje tenho relutância em considerar o futuro, e que me reservo o maior desprezo pelo presente.
Sem pretender a honestidade que, dificilmente, reconheço nos outros, arrisco que a escrita – como qualquer outro acto criador – precisa de vítimas.
E alimenta vítimas.

Jorge Fallorca, frenesi, 2004

quarta-feira, 16 de junho de 2010

O Vitral


Clara é capaz de despertar a flor
Quando, contigo ela se mostra num mar de azáleas
E, sem pudor, te pede…
Mel (logo o sol se esconde por detrás de um rubor de infância)
E tu, alienado
Sussurras
ao fim da montanha…

Pois Clara é também capaz de odiar a noite
Quando, contigo, ela se some num moinho de mentes
E, sem temor, abana a cauda
E grita!
Sorriso…
Ao largo um tempo verde, ternurento, move o capim do campo numa pista de dança…

Clara, como uma raposa
De orelhas muito moucas, observa o deserto
E ausculta além da moita
O Pequenino Escorpião
Que a beija e adormece, na canção que esbanja a cor de rosa…

Clara, enfrenta, enfim, sem temor, o caminho que é o dela
Sem conhecer o cardo, a vindima ou a levada
Clara é todo o mundo (o instante em que o cinza se torce de pequenino)
Sabe, doravante
Que das tuas abas de fogo se soldam céu e terra,
Certeza, porém, incendiária
Que nela é funesta, é essa
Linha de água (olhai além das janelas e vede o azul que polvilha o céu)
Onde a amizade se banha dum luar esganado, envidraçado, dissolvido em amarelo escarlate

Nuno Monteiro

imagem - Salvador Dali - muchacha en la ventana
“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

Prémio Histórico - Filosóficas