quinta-feira, 22 de julho de 2010

A terna face de Clara


Quem se desse ao trabalho de por ali passear, repararia, como não?, que não havia igreja. O inverno das noites infindáveis tinha passado. A terra de volta dele parecia renascida. Por sobre os carreiros as flores e por sobre as flores, as imagens. O escritor saía cedo de casa. Visitava os carreiros, aos pontapés às pedras, sentava e descansava, amiúde dormia e escrevia coisas do género aqui, meio caminho na encosta, pelo carreiro da cordilheira, eu não ouço as vozes que pulam pela aldeia. Deixara crescer uma barba grisalha, não havia espelhos mas adivinhava-se magro. As vozes não te metem medo. Por isso adormecia a meio da manhã, ou a meio da tarde, tanto fazia. Ninguém por ali passaria.
Mais a mais sabia não haver igreja e isso confortava-o. Julgava entender os vagares e as vozes da aldeia. Não se metiam com ele. A aldeia vivia quase vazia. Muitos mortos, poucos nascidos, ou quase nem um, quantos bebés ouvira ele chorar? Muitos trabalhos. E Susana?, como saberia de Susana? Onde perguntaria?… foi recapitulando o que julgava saber, Susana parecia tomar conta da taberna sozinha. Susana usava sempre do mesmo tom, usava sempre do mesmo trato, Susana parecia não ter mais ninguém dentro dela! O escritor achava aquilo estranho. Mas havia o sorriso. O escritor mandava perguntar se seria possível que um se apaixonasse apenas por um sorriso… Com isto olhava a cordilheira. Sentia calor e por isso procurava, instintivamente, água escorredoira. Límpida e mineral.
Ficava a pensar como havia ali chegado. Só ficaram com ele as pequenitas estrelas. Em breve daria o romance por terminado! Depois pensava qual quê! Que se não dá nunca o romance por terminado. O que viera encontrar naquelas fragas de ermida? Um tempo longo, um enorme ribeiro de cristal e a taberna…
Meteu-se a descer o ribeiro. Lá ao fundo encontraria o moleiro. Engraçado! Cheguei cá para escrever uma história, um punhado de histórias. Lentamente, quase imperceptivelmente, a montanha e a primavera, a cordilheira, tornam-me a mim um dos personagens! Estás ciente disso não estás! Espero que estejas pois de outra forma, Susana jamais te quererá! Súbito ali defronte dele a revelação. Assim ela lhe quereria. Então o escritor chegaria ao moleiro e dir-lhe-ia ó moleiro, deves dizer-me o teu nome! Assim mesmo, o teu nome! Só conheço o nome de Susana. Assim ela nunca me saberá daqui. Bah! Tudo o que tu sabes não é nada. É como se visses de muito longe. Olhas, mas do topo da cordilheira, como os abutres… não vês nada ao perto. Dir-te-ei o meu nome mas nunca o aprenderás. Não és daqui. Soube do poema. Não conquistas com poemas quem nunca se despediu… Susana está presa a uma luz que tanto a maltratou.
No dia seguinte, ainda mal amanhecido, o escritor metido pelo carreiro. Buscava a cordilheira. Tentava agarrar um sonho. Prometera um pouco de céu. Trazer-lho-ia pois então. Ao colo um abutre. Mãos, as dele. Cortadas de tanto arranhar o inverno. Lá chegado soltou o pano, fez uma vela, marchava e marcharia, de dia, com vento, a vela enfunava e dela se soltava um fumo branco, de cheiro a jasmim, e de noite, de noite a vela clamava, pelos montes, o nome dela, os lábios dela, o colo dela, a terna face, a de Clara.
Lá em baixo, ao lado da mó, o moleiro via primeiro que a taberneira. Susana chamava-lhe pai. A ele isso lhe bastava. Falar-lhe-ia? Devia, pois de outra forma, como saberia do poema…
A cordilheira viveria dentro dele, nunca mais o abandonaria, seria bastião e castelo. Uma língua de lanceiros alçada à escuta.


Nuno Monteiro

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“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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