sexta-feira, 30 de julho de 2010

Dizem por aí que o António Feio morreu...

… “Sabes o que gostava de ser? – disse eu. – Sabes o que gostava de ser? Quer dizer, se tivesse a merda de uma escolha?”
- O que era? E pára de dizer palavrões.
- Conheces aquela canção “Se alguém apanha alguém que atravessa o centeio”? O que eu gostava…
- É “Se alguém encontra alguém que atravessa o centeio!” – disse a miúda Phoebe. É uma poesia. Do Robert Burns.
- Bem sei que é uma poesia do Robert Burns.
Mas ela tinha razão. É mesmo “Se alguém encontra alguém que atravessa o centeio!” Mas naquele momento eu não o sabia.
- Pensei que era “Se alguém apanha alguém” – disse eu. – Mas enfim, ponho-me a imaginar uma data de miuditos a brincar a um jogo qualquer num grande campo de centeio e tal. Milhares de miuditos, e ninguém por perto, ninguém crescido, quero eu dizer, a não ser eu. E eu fico ali na borda de um abismo lixado. E o que eu tenho de fazer é ficar à espera no centeio e apanhar todos os que desatarem a correr para o abismo… Quer dizer, se vão a correr e não vêem para onde vão, eu tenho de saltar de um lado qualquer e de os apanhar. Era só isso que fazia o dia inteiro. Só estar ali à espera, a apanhar os miúdos no centeio e tal. Eu sei que é uma coisa maluca, mas é a única coisa que eu gostava de ser. Bem sei que é uma coisa maluca.

J. D. Salinger, The Catcher in the Rye, Tradução de José Lima

Há alturas em que a literatura é realmente assombrosa, acabava de ler o excerto anterior quando, na sic, noticiavam a morte do António Feio. E fiquei a pensar se o António não teria lido este mesmo excerto, vezes sem conta, e não tivesse encarnado o Caulfield…

Nuno Monteiro

Sem comentários:

“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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