terça-feira, 27 de julho de 2010

Os barulhos mudos do choro


Mesmo ao centro da aldeia havia uma placa que a pregaram lá na véspera. Quinze almas lá estavam para a inauguração, armadas de popa e circunstância e algum vinho, boa disposição e falatório. Susana recolhida, de sorriso escondido e maneiras acanhadas, era quam servia os homens ilustres, os cavaleiros que cirandavam pífios, indemnes. Ali se beberricava e ali se discutia. Alguns chegaram a aventar que o progresso estava na calha… e a inauguração era uma placa, ao forasteiro que chega, ou que chegas, num tom mais amistoso, menos coloquial, mas quê?, que forasteiro?, homem se se não fizer por eles então é que eles não mais chegarão, um pinheiro chagas, um politiqueiro, um patriota de pacotilha, era isso que ele era, o Moreno, esse visionário.
A placa lá estava, pronta para descorar ante o sol do pino do verão, que não chegara ainda pois para esses momentos de forte estio ainda se contavam trinta dias, e pronta igualmente para se desfazer em mil e um pedaços, quando viessem as gélidas friezas de janeiro. Ainda houve, o jeremias, o calmeirão, nisto tendo pensado ainda julgou por bem imaginar que se construísse uma capelinha para proteger a placa… forte contestação, lá roncou o chagas, mas tu estás louco ó homem então e o forasteiro quando chegasse, havia de ser belo, quando fosse para espreitar o interior da capela em vez do santo, olharia de frente para uma placa … e dali se vai o jeremias bem bem, sua excelência é que sabe, houve inclusivé um discurso, após a festa, já ao cair do dia, cheio de condecorações, benesses, mordomias e quermesses. Foram todos agraciados, ai lá isso, raios o partissem se não sabia ler, com uma voz possante e aflautelada, ao fim todos adormecidos, cambaleantes, para casa…
A vila a recobrar das fortes emoções, a noite caída já e pelas ruas, escurecidas, apenas os mortos, e já agora tambem se escreva que nem estes prestaram interesse algum à inauguração. Sem tempo e sem espaço, nem se deram ao trabalho de saber o que estava escrito na placa.
Manhã seguinte. O galo que canta e o Moreno mete os pés para fora da cama… ergue-se dum só estouro e chega-lhe uma dor de cabeça que o quase atira contra a parede. Empurra-se para a cozinha e senta-se à espera que chegue a mulher mais o pão e o queijo… grita, mulher, esta que ainda dormia, abre os olhos dum espanto e
Sabes!... raios, ontem, fizemos mal, só agora me lembrei, ninguém foi visitar o castanheiro! Maldito vinho, que povo este, quiseram deitar-se, mungir o sono e não pensaram sequer em mais nada, vai daí pumba, sobra sempre tudo cá para o mouro, ora esta, torna a vestir a farroupa, mulher dá cá os sapatos, vamos chamar esta gente toda, eram então cinco e quarenta da manhã, os olhares esbugalhados, o quê, apanhaste-lhe o jeito, outro discurso… ainda estás borracho, feita a contagem, faltava um, faltava o anão, só ali estavam cotorze almas, fora a louca e o militar, que esses não se encontravam recenseados… procurai o maldito anão, não pode estar longe, tem que se reunir a gente toda, então não é que nos esquecemos de visitar o castanheiro, e depressa, não vá um raio cair-nos… dois ou três olham o céu da manhã, limpo e já azul, dum dia quente, um quase estio.
Não se sabe como chega à praça um cão a guinchar. Que terá o bicho, assim aos guinchos logo pela manhã, aquele não é o cão do anão?, e olhe sua excelência que se engana o cão não guincha, ele chora. Estarrecidos, que noite havia sido aquela… o cão veio do caminho do castanheiro, topam a coisa toda… metem-se a andar até ao castanheiro, Jeremias foi o primeiro, em lá chegando, tapa os olhos. Vão tapando os olhos todos, até ficarem mudos e desaparecidos.
Desta feita ninguém abalara, nem o anão tivera a coragem de se escapulir pela cordilheira fora… de qualquer das formas, menos um, Susana! já podes arrumar o banco pequenino, aquele onde o anão se sentava. Quase todos choravam, duma forma ou doutra. Mas o que mais alto penava era o cão. Esse metia dó, o Jeremias, matem esse cão, e o moreno, madeireiro nas horas vagas, pega dum machado, ergue-o ao ar e quando o dobra, contra o vento, dá-lhe no pescoço e logo fica o silêncio, entrecortado pelo choramingar mudo das comadres…

Nuno Monteiro

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