terça-feira, 20 de julho de 2010

Clara ainda não nascera


Faltava a Igreja. Passaria lá a ser a casa dele, do escritor. A única vila sem igreja , a vila sem almas. Um pouco antes da vinda ao mundo de Clara, o escritor quisera fazer-se escritor. Quisera escrever uma história longa, um romance clássico. Metera-se no carro e andara à procura, procurava-se a si, afastava-se de si, procurava a cordilheira que o traria outra vez ao mundo, vagueava pelo mundo quando foi dar com a aldeia mais isolada, a casa perfeita.
Era começo de inverno. Ameaça de frio e vento. Viu um enorme castanheiro e ao lado do castanheiro, uma pequenita casa de dois pisos, uma casa tão pequenina que parecia saída de um conto de fadas. Ao lado, um terreno. Óptimo. Na primavera aqui deitarei à terra as batatas e os tomates e as vagens e as beterrabas. Terreno murado, um muro degradado, comido pelos líquenes, o escritor pega na máquina fotográfica e vai a toda a volta, tirando fotografias, roubando pedacinhos. Olha para a casa. Ergue-se ao lado do enorme castanheiro. Mais baixa que este. Rústica, rés do chão e um primeiro andar, pequenita, não tem janelas.
Foi bater às portas perguntando de quem é a casa do castanheiro, de quem é a casa do castanheiro, até que um velho a casa e o terreno são meus quanto quer por ela e pelo terreno e assim se fez negócio. O escritor esfregava as mãos de contente…
Faltava a igreja mas ele que se não importava. Ouviu dizer. Despache-se a botar telhado e janelas ou morrerá de frio aí vem o inverno e com ele, a neve. O escritor meteu um telhado e uma placa e meteu ainda uma lareira. Correu a deitar abaixo dois pinheiros e com a melhor madeira ergueu uma escrivaninha. Os sobejos iam para lume, eram lenha. Dormia no chão, num catre. Ora bolas. Também lá faltavam as almas?, de que se ralaria se faltasse igreja? Pão. Precisaria de pão. Comprou um alqueire de milho moído, ao moinho, ao fundo da estrada, ao ribeiro.
Novembro. Papel tinha ele. Tudo pronto, pensava. Caía a noite. E com ela vinha o frio e o vento e a neve e então lembra-se de se ter lembrado irra falta-me a guarnição de aguardente. E vai daí ainda sai para trazer. Compra-a na taberna, foi assim que descobriu a taberna, quase por acaso, não fosse movido por uma imensa necessidade, quando sai da taberna leva na retina um sorriso muito escondido e uns olhos pretos, grandes, numa cara redonda que o olhava. Leva dez garrafas. Faz as contas ao de leve. Toca-lhe na mão. Dedos finos. Lembra-se de ter pensado que a beleza se esconde por detrás dos gestos. Guarda-a nos baixos, ao lado donde viveriam as ovelhas, quando as tivesse, paciência !,não se pode ter tudo. Tudo a seu tempo, Roma e Pavia…
Dezembro. A história vai avançada. Ele pensa. Estou mais magro. A história escreve-se à custa do meu pesar. Muito bem. Um romance clássico, nem mais. Por fora da porta a casa do escritor tinha um pequenito alpendre donde se olhava o enorme castanheiro, à direita e a casa grande, à esquerda. Em frente, lá ao longe, a floresta de carvalho que dominava a serra, a estradita serpenteando por entre os gnomos e os casulos de borboleta, o riacho, atravessado por duas pontes, uma ao lado da outra, estás enganado, há muitas mais… Dia 25. Lembra-se de que é natal. Resolve meter na história. Um beijinho à minha vida. E depois só para ele. Espero que ela compreenda esta minha loucura.
Janeiro. Nevada atrás de nevada. Cubro-me de camurça e enquanto escrevo, movo-me constantemente. Por vezes dou umas voltas pelo campo. A água gelada nos carreiros e nada de cores no chão. Só pedra e terra. Estás bem arranjado… e enquanto seguia pelos carreiros ouvia conversas em sussurro. O escritor fervilhava de escritos. Metia tudo no papel, como um sôfrego.
Fevereiro. Dia primeiro. Entra na tasca. Um ar quente e abafado. De respiração. Lá do fundo chega-lhe a voz da taberneira, tonitruante. Dirige-se para adonde ela anda e diz queria um trago de aguardente. E ia para dar os obrigados mas ela corta aqui os obrigados não fazem falta nenhuma… prove este bolinho mais o seu trago. O escritor repara no sorriso da mulher e resolve meter na história a taberneira era a mulher alta, os braços longos e sorridentes, um sorriso que contrastava com a terra com o frio com a neve. Um sorriso igual à beleza dos carvalhos, um casulo de borboleta.
Fevereiro. O tempo passava vagaroso, como os pássaros que circum-navegam o globo, armados em grupos, embutidos em bandos… O escritor enfrentava agora o frio para escrever na taberna, já antecipando o sorriso da taberneira. O vaivém de entradas e saídas, a azáfama que não era azáfama. Os homens mal chegavam, logo à entrada que se anunciavam com desgarrados ditos. Súbito conhecia o padeiro, o moleiro, o lenhador. Súbito conhecia a aldeia. Nem almas nem mulheres. Haveria mulheres que não se viam fora de casa. Perdão mulheres havia uma. As outras eram as mulheres dos outros… Todos chamavam Susana. Ele, logo pela manhã, acabado de chegar à taberna, dançava a modos que lhe desse a ela para rir, com os lábios temerosos, em dois lados da cara muito desiguais. O escritor lembra de pensar, a propósito do sorriso tímido, ela não sabe que é bonita. E Fevereiro fora, o escritor notava que se instalava, entre ele e a aldeia, um misto de desconfiança e de feitiço. Afinal os corpos tinham alma. E só agora reconhecia que, até então, da aldeia conhecia pouco. Por exemplo de quem era Susana filha? E quem a fizera taberneira? Nada. Demasiado Fevereiro. Muita noite. Uma luz coalhada de nuvens. Demasiada cinza no ar.
Quase fim de fevereiro. Dia de anos. Quantos? Quarenta. Só agora quarenta. Que tão devagar passa o tempo. Escreve freneticamente toda a manhã. Não sai de casa. Esconde-se dos próprios anos. Sente-se amorfanhar. Aqui ainda não sabem que eu faço anos hoje. Vai à taberna. Quer passar despercebido. Estaca no meio da banca. Sai-lhe como dum sino… Hoje quem paga sou eu. Rodadas à borla até à meia da noite. O que ele foi fazer. Logo se desatralaçam as línguas e se soltam os curiosos… Perguntam, mas que andas tu aqui a fazer? E ele responde, cortês. Nasce uma espécie de respeito. O escritor é porreiro. Vozes de passagem. O escritor é porreiro. Vozes que sobem as escadas, até aos quartos, comunicam às mulheres. O escritor é porreiro, faz anos hoje, temos cá um escritor, coisas assim, pela aldeia fora. As vozes que ele sempre ouviu. Falam dele.
Março. O degelo. O vento que sopra mais amaino. As plantas que despontam. Queres vir a minha casa! Apanha-a desprevenida, ao fim dum trago, ele ainda quente, da aguardente… ela nada responde, nem sorri. Olha-o um instante, com os olhos pretos, adornados. O escritor afasta-se, zanga, raiva, desprezo, tristeza, um pouco disto tudo. Os olhos dela substituíram o sorriso por uma espécie de tristeza. Escreve compulsivamente, pela noite fora. Não compreende a tristeza e espera que a escrita, a pausa pensante, o faça finalmente entender…
Com o moleiro! O que se passa com esta aldeia? O velhote que se ri… sabes pouco! És ainda por cá há pouco tempo. Mas isso cura-se. Susana não pode ir contigo. E o escritor não pode, e o moleiro não pode mas quer, oh como quer. Susana está morta. Simplesmente ainda não se deixou enterrar. Compete-te a ti, se lhe gostas do sorriso. Tens aqui um pão. Leva-lho. Entrega-lho de presente. O resto é com ela. Deixa que ela decida. Por enquanto está morta. Tu não vais querer… o escritor e a sua escrita lázaro também ressuscitou! E pega no pão e sobe do ribeiro e chega-lhe à porta e vai para bater e súbito estaca, deixa-lho à porta mais o verso:

Teus olhos pretos
E um sorriso pausado
Essa lua
É toda tua
Inteira, pousada numa espécie de vazio…

Sobe as escadinhas do seu alpendre. Mete lenha a queimar. Esquece. Não esquece. Escreve. Não deixa de escrever. Lá fora, a noite ainda bufa vento que levanta vozes. Mas já se cantam melodias. Os mortos saberão como renascer. A isso os conduzam os vivos…

Nuno Monteiro

2 comentários:

Dina Cruz disse...

Clara já nasceu há muito... muito antes da escrita brotar das mãos do homem e da paixão do homem por Susana. Clara nunca morrerá assim como nunca nasceu. Ela é... Simplesmente, é.
Gosto da aldeia, da casa pequena, do castanheiro e do frio do inverno. Ainda bem que construíste a lareira e guardaste a lenha que sobrou da escrivaninha... :-)

Nuno Monteiro disse...

É a ideia de clara que move o homem e que vai fazer avançar a história, o homem encontra-se pendurado da corda de Clara, não como um condenado mas como um quase autista.

“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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