terça-feira, 30 de junho de 2009

Thomas Mann


...- Ah, ah, ah! Mas o senhor é muito mordaz.

- Mordaz? Quer dizer maldoso? Sim, de maldoso tenho um pouco - consentiu Settembrini. - O meu maior desgosto é estar condenado a desperdiçar a minha maldade nestas míseras questões. Espero que não tenha nada contra a maldade, senhor engenheiro. Ela é, a meus olhos, a arma mais fulgurante da razão contra as forças das trevas e de tudo o que é feio. A maldade, meu caro, é o espírito da crítica e a crítica está na origem do progresso e das luzes.


Thomas Mann, A Montanha mágica, tradução de Gilda Lopes Encarnação, edição Dom Quixote

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Simone de Beauvoir


A verdade é que eles não querem ser governados por iguais: pensam muito mal deles porque pensam mal a seu próprio respeito e a respeito dos seus mais próximos vizinhos. É «humano» amar o dinheiro e viver ao serviço dos seus interesses. Mas quando somos humanos, como os outros, não somos capazes de governá-los. O povo pede então o não humano, o sobre-humano, o Grande Homem, que será «honesto» por que está «acima dessas questões».

Simone de Beauvoir, A Força das Coisas

As baratas...


Certo dia ouvi ou li o seguinte. A ver se concordas. Que quem professa maldade adquire a cor plúmbea do céu em dia de chuva. Tenho visto muita gente… tenho avistado imensos corvos. Imensos pássaros. Mas não tenho certeza de alguma vez ter visto alguém de chumbo. Ou da cor do chumbo. Já se o chumbo se metamorfoseasse e se em vez da tez surgissem baratas. Baratas assustadiças. Então assim já temos acordo. Então assim porque dessas tenho eu visto em imensa batalha. Em imensa agonia. E algumas com asas. Que escarafuncham como se tivessem pavor da luz. Tendo um pavor doloroso da luz. Esgueiram pelos chãos de todos os males. E assustadas eternas pois não sabem o que fazer para voltar a nascer. Nem saberão que morrem. Nem sabem que estão vivas. São baratas. Podem desaparecer esborrachadas. Sem que ninguém delas se compadeça. Porque as baratas não contam. Não assustam. Não se instalam entre nós. É como se de uma condição de degredo…


Nuno Monteiro

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Não há forma de romper a aurora


Pois não
E que pena
Pobre bela
Desfigurada e desnutrida
Pobre mulher
Ouves os tiros que te mostraram a morte
Sentes as marcas dos ferros
Olhas o caminho de casa
Mas não tens pão
Não tens vida
És um morto caminhante
Um punhado de peste
Odeiam-te
Atrasam-te
Azedas…longamente…contaminas…

Voltaste costas ao mundo e não acreditas nem em ti.
És o âmago da montanha…
Foges das luzes que te magoam

E ficas velha e desfigurada
E depois foges outra vez…

Nuno Monteiro

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Conversas com Albert Cossery


«Apenas a fome desencadeia revoltas. Como fazer uma revolução, se tiver de assinar letras para comprar um carro?»

«Conversas com Albert Cossery» – Miguel Mitarni – Antígona

in adevidacomedia.wordpress.com/2008/01/18/

Max Weber


“ ... é horrível pensar que um dia o mundo será ocupado somente por estas pequenas peças, por pequenos homens que se agarram a pequenos empregos e procuram obter outros maiores – uma situação que ... tem um papel crescente no espírito do nosso sistema administrativo presente ... Esta paixão pela burocracia é suficiente para pôr-nos em desespero ... A grande questão não é saber como promover e estimular esta evolução, mas como se opor a esta máquina para manter uma parte da humanidade livre desse desmembramento da alma, desta suprema dominação do modo burocrático de vida.”


Max Weber, Gesammelte Aufsätze zur Soziologie und Sozialpolitik

quarta-feira, 24 de junho de 2009

pergaminhos de moralidade


Enquanto assobias uma canção despreocupadamente. erguem mais um muro que separa o outro mundo do nosso pleno mundo. Dos nossos pulmões dos nossos frutos maduros. Enquanto te aquietas com uma febre e derretes tudo o que se move com frascos e boiões de pastilhas. Te não importes porque viverás eternamente. Te não importes porque haverá sempre quem limpe as teias de aranha. E todo o restante mundo trabalha e trabalha e trabalha. Todo o restante mundo tanto do restante mundo. A neve está para chegar não te apoquentes. e uma tão grande quantidade de mundo aquiesce e chora. Não te seguem e voltaram-te as costas. Quando te dizem que não precisam de ninguém não sabem o que dizem. Nunca estiveram tão desesperados. Também não estão à espera do messias. Há um jugo de razão que corta como faca vagalhão. Há um jugo de desesperados…
Julgaste inatacável porque contribuis com uma migalha para a sociedade das nações. Mas fechas os olhos e assobias para outro lado. Ris abertamente da vida que te foi dada viver. Ris. E esse riso é a tua estrada. Não precisas de ninguém. Os teus sonhos são para cumprires sozinho. Nunca viste cair ninguém. Nunca olhaste. Nunca procuraste olhar.
Estás ciente de que há justiça no mundo. Tornaste-te um cínico e um hipócrita. Porque compras bens de elevado preço. E entregas a moeda ao pobre que te espiga a mão. Não tens raízes. És cidadão do mundo. És da cor da tua maquilhagem. Tens a palmilha da tua máscara. Dizes que não queres ver de que cor são as feridas e a diarreia. de que sabor são os furúnculos do esquecimento e da fome. E não vês porque te agoniam. E então pretendes estar tudo tão bem. Crês nas ilusões que te deixam tão bem disposto. És um produto és uma falácia és um pequenino papagaio que se comporta como uma estrela. Enquanto assobias tão despreocupadamente. Alvas os braços ao centro da chuva. E escorre medo como se fosse agonia.

sábado, 20 de junho de 2009

Teresa Baptista cansada de guerra


...Com quem se parece Teresa Batista, tão castigada pela vida, tão cansada de apanhar e sofrer e, ainda assim, de pé, com todo o peso da morte no lombo, porfiando em arrancar da maldita uma criança para a vida? Pois eu lhe digo com quem acho que ela se parece.

Sentada nesta varanda, vendo ao longe o mar do rio vermelho, olhando as árvores, algumas centenárias, a maioria plantadas por mim e pelos meus, com essas minhas mãos que empunharam a carabina nas matas de ferradas, nas lutas do cacau, recordando João, meu finado, um homem alegre e bom, cercada pelos meus três filhos, meus tesouros, e pelas três noras, minhas filhas e rivais, pelos netos netas e bisnetos, por meus parentes e aderentes, eu, Eulália Leal Amado, Lalu na voz geral da benquerença, lhe digo, meu senhor, que Teresa Batista se parece com o povo e com mais ninguém. Com o povo brasileiro, tão sofrido, nunca derrotado.Quando o pensam morto, ele se levanta do caixão...


in Teresa Batista cansada de Guerra, edição Planeta de Agostini

domingo, 7 de junho de 2009

Leitura


É tudo
É ela!
São os olhos que se não vêm
São os cabelos em desalinho
O pé e o sapato preto e a meia
É o jornal

É tudo
É ela
A outra mulher no mesmo banco
Outra… outra… outra
Tantas outras
Um banco
Uma mulher de cabelos em desalinho
E os olhos
A inveja…
O olhar
… são duas mulheres…

E o mais são sombras… nos vidros
De vultos que bramem!
Sempre
Toda a imagem sem tempo…
Nuno Monteiro

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Cadernos do subterrâneo


«O final dos finais, meus senhores: o melhor é não fazer nada! O melhor é uma inércia consciente! Por isso, viva o subterrâneo! Embora eu tenha dito que sofro de uma inveja biliosa pelo homem normal, não gostaria de ser ele nas condições em que o vejo (embora não deixe de o invejar. Não e não, aconteça o que acontecer, o subterrâneo é mais vantajoso!). Lá, pelo menos, pode-se… Eh, lá estou eu outra vez a mentir! Minto porque sei, como dois mais dois serem quatro, que não é o subterrâneo que é melhor, mas qualquer outra coisa, completamente outra, a que eu aspiro mas nunca mais encontro! O subterrâneo para o raio que o parta!»

Fiódor Dostoiévski, in "Cadernos do subterrâneo" assírio & alvim, 2000 trad. Nina Guerra e Filipe Guerra

Retirado de O Café dos Loucos

Morte a crédito


Aqui estamos mais uma vez sozinhos. Tudo isto é tão lento, tão pesado, tão triste...Dentro de pouco tempo estarei velho. Tudo então se acabará. Tanta gente que passou aqui por este quarto. Disseram coisas. Não me disseram grande coisa. Foram-se embora. Envelheceram, tornaram-se lentos e miseráveis, cada qual no seu recanto da terra.

in Morte a Crédito, Céline numa edição da Assírio e Alvim

7


Toco a tua boca.
Com um dedo, toco a borda da tua boca, desenhando-a como se saísse da minha mão…

…olhas-me, de perto me olhas, cada vez mais de perto, e então brincamos aos ciclopes…

…então as minhas mãos tentam fundir-se no teu cabelo… enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores … e se nos mordermos a dor é doce… e há apenas uma saliva e apenas um sabor a fruta madura, e eu sinto-te tremer em mim como a lua na água…

in O jogo do mundo (Rayuela), Julio Cortázar, edição da Cavalo de Ferro

quarta-feira, 3 de junho de 2009

O poema


Quando sorris
E és da cor do céu
Quando te tornas fado
Quando te tornas mais um ouvinte
Quando engoles toda a verde ilha
Quando amarfanhas dentro de ti toda a estrada e todo o caminho

As palavras são de repente de outra cor
As cores dos teus olhos variam
Os sorrisos são os sorrisos eternos de uma mulher deitada na cama
Os teus filhos estão ainda entre as estrelas
E tu baloiças ao som da valsa que te fez mulher

Sempre que sorris…
O verde resplandece ainda mais interrogativo
E tu só aprendes a viver livre
Suspiras liberdade e crês
Crês que o homem é são…
Que ele é imenso
E que a misericórdia é o fim

Repugnas um homem de ferros e de fornalhas
Repugnas o olhar de impotência dos vaporosos generais
Engalanados nos seus fatos de cerimónia.

Nuno Monteiro

terça-feira, 2 de junho de 2009

Apresentação - Elementos - Livraria Nova Almedina


Estou num sítio aprazível – rodeado de livros e de paredes pretas. Estantes vivas que esperam calmamente o nosso olhar. Ávidas de mãos sedentas de insónias. Estou portanto ao centro do mundo. Tenho as histórias do mundo em meu redor – os livros das prateleiras são constelações de sensações e de sabores. Uma via láctea – uma estrada de Santiago – um lugar aprazível onde repousam as vidas de tantos. As palavras e as frases. Tantos. Tanto. Tão pouco. Os píncaros e as profundezas. Os intestinos do homem. Instruções de passagem. Caixa negra de avião. Paredes pintadas de negro. A cor do luto. A cor do silêncio. A cor da saudade. A cor da estudantina. A cor da serenata. Os espaços fechados. Os teus fantasmas congregam-se aqui. Paredes que caiam desta forma um branco tão pouco usual. Ou que sugam a luz – deixam-te cair ao infinito do mundo ribombando como o trovão. Ou arena e ringue da vida do dia-a-dia das pequeninas formigas ou das alegres e joviais andorinhas que pararam para nos cumprimentar. Lá fora a lua espalhará cinzento. Lá fora as avenidas iluminadas são os caminhos das insónias. Lá fora tantos esperam que desça a noite. Esperam que o mundo se desenvencilhe do branco. Esperam que os olhos azuis se enovelem. Pedem cor de livro e o recheio de calor e o cheiro das tertúlias. Pedem. Estão em pulgas e fervem de febre. Febris anunciam olhando as paredes e as estantes cobertas de livros. Chegam ao grito após um momento de maior introspecção. Chegam às lágrimas.
Não sei que espécie de beleza tem esta cidade. Não sei que algo cinzento. Não sei que lhe hei-de chamar ou julgo que será da idade. Será da idade. Tradição. Talvez. Ou serão os fantasmas dos guerreiros que por cá passaram. Serão as almas dos tantos que por cá passaram e por cá viveram. Serão as saudades. Vagueiam saudades que te tolhem o olhar e te obrigam a correr. Vagueiam saudades. Anunciam-se recordações. Tudo isso é Coimbra. E esta sala é o epicentro do sismo. É a marca indelével das estações do ano. Das minhas febris insónias. Das paredes caiadas de negro como se aqui fosse possível invertermos a vida. Como se nesse instante fosse possível transpirar lugares e vagares e anunciar cinicamente que o mundo é uma enorme biblioteca. Dança comigo porque também ele aqui está – fuma comigo porque também ele aqui está – das paredes soltam-se os autores num tântalo lamento. Então vive de novo – vivam de novo – vagueiem – insinuem-se – o mundo não é feito de tempo – não é contido em espaço algum. A noite não tem barreiras. Não tem ditames. Não tem preço. A noite tem ditos. E olhares. E posturas morais. Crimes exemplares. Cada noite é uma ilha submersa de espelhos. Consigo olhar para dentro de ti pequenina flor. Posso observar-te naufragada em suor minha cigarra amiga. O cinzento da noite e as avenidas quietas os passos do jardim botânico e os enormes edifícios da universidade. Todos gárgulas que se movem com orgulho. Morre em mim o esquecimento dos meus amigos. Tremo e anuncio ao mundo que esta cidade me acomete de loucura. A loucura das lágrimas nos olhos e a doçura na voz. O tormento das saudades. Das saudades dos tempos que eu julgava não existirem as saudades dos guerreiros que comigo estudaram. Não estudei cá! Não vivi em Coimbra. Mas é aqui o epicentro do sismo. É aqui como se algo sobrenatural se assoberbasse de mim. por detrás de cada livro as saudades que me embargam a voz e me comprimem o peito. As estrelas do firmamento tão longe por detrás das paredes caiadas de escuridão.
Queria que hoje fosse carnaval para poder fumar um cigarro. Um dia destes devo imiscuir-me nessa máquina maravilhosa que viaja no tempo. Para cumprimentar Buenos Aires. Para conversar com a boémia. Para ouvir as melodias que foram as tuas cortazar. As tuas manchas e a tua maga. A tua paris. As ruas cinzentas da fusca luz daqui e dali. As tuas noites e a tua fome. O teu sentido.
Queria poder correr ao redor do teu reino Tom Joad. Queria diluir-me nos campos de feno e nas searas. Ver o sul da Califórnia. Sentir o calor das montanhas rochosas. Dormir. Dormir. Dormir na nova Orleães. Passar pelo mundo trauteando canções como se estivesse sempre debaixo do vulcão. Como se estivesse sempre… como se para sempre… tenho sede de eternidade. É impossível vivermos tudo num corpo tão pequeno. Impossível sentir todo o mundo. Impossível ler todos os livros. Impossível equilibrar todos os livros como se fossem castelos de vinho em cima das bandejas do poeta. Impossível falar de poesia. Impossível concordar com um livro. Impossível rasgá-lo ou abandoná-lo. Atirem-me um copo de vinho e um cigarro para que eu possa conhecer lendo e viajar pois esta biblioteca é a máquina do tempo. Esta alma encerra inúmeras almas. Todas incontidas. Esta sala mágica tem milhares de vidas multiplicadas por mil. E tem dezenas de sóis. Centenas de milhares de luas. Não pede a ninguém para agir. Não pede a nada para olhar. De noite. De noite. Não tem paredes e então há uma profusão de cheiros, uma parafernália de sentidos. Um caleidoscópio de ilusões. Esta sala é do tamanho da vida. Incomensuravelmente maior. Reconhecidamente menor.
Continuo com saudades. De quem ou do quê? Não saberei dizer. não sei o que procuro. Sei que procuro. A literatura não sabe que escreve. Sabe que precisa escrever. Esta sala não sabe que vive. Sabe que precisa viver. O sol não sabe que aquece. A noite não sabe que é noite. A abelha não sabe que poliniza. O mundo saberá que é mundo? Duvido. Paris saberá que é cidade. Tenho a certeza. Duvido que tenha a certeza. Tenho a certeza que duvido. Sou impossível. Formiga com alma de cigano. Perdido no tempo e no espaço. Quando cairá chuva? Quando viajará chuva? Quando?

Trago comigo dois livros – um de prosa e o outro de poesia. O livro de poesia também é da Dina. Mais da Dina. São para vós. Não existem sem o leitor. Como esta livraria – desaparecida ficará sem homens e mulheres.

Um abraço à minha Tia Anabela. A ela lhe devo este evento. E um beijo. Obrigado à Drª Elisabete Ferreira. Eternamente agradecido. E obrigado a todos. Por terem vindo e por me terem ouvido.

Nuno Monteiro
“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

Prémio Histórico - Filosóficas