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quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Pintor


Cabelo cinza, homem idoso novo, grande por dentro e por fora. Um acabrunhado coração, um sorriso bonacheiroso e um ardor no olhar. Olhos que olhavam para detrás, para donde estavam escondidas as verdades. Dedos borratados de restos de tintas. Dias houve em que o senti a sofrer quase chorando. Noutros dias mostrava-se expansivo, alegre e então, então fazia rir os outros. Pintava cores e arcos e mulheres e tambores e chão e temores do seu país de cores. Exagerava a forma e sorriria sempre que vendia um quadro. Era quando dizia a vida é feita de separação e eu estarrecia já que não o compreendia. Caminhava por aí destituído de inveja. Este homem separava-se dum quadro dele tal e qual eu abraçaria uma flor. Inv eja seria querê-los todos nas minhas paredes! E após uma ligeiríssima pausa dizer: É que não tenho assim tantas…

Para o Malangatana, um da minha terra

Nuno Monteiro

sexta-feira, 18 de junho de 2010

José



Dizem por aí que Saramago morreu... como se enganam... os livros falarão pela boca do mestre... o vento e o tempo, ainda que tentem, não serão capazes de o esquecer...

Por isso, digam o que disserem, digam, ou berrem! Saramago morreu...

Nuno Monteiro

terça-feira, 15 de junho de 2010

Num estranho mundo, para Oliverio Álvarez


Na cinza alvorada do dia que se quis invernoso, cavernoso, dois pés, não exactamente iguais, encarquilhados um pouco, esses tantos, mais a vontade que os impelia, solfejavam ante o vento que os catapultava, que os ignorava sem que eles, esses teus dois, amordaçassem o Homem numa balaústrada de anil, de doce incongruência, sem que eles, esses pés teus, se misturassem com as marés e se salgassem, como se salga o ritmo, o discurso, a escrita, enfim, como se pintam os quadros, como se mostram esbeltas, as estatuetas da terra e do sol e da lua, esse gigante alado, capital embevecido da nossa razão, esse dinheiro que sempre foi antes do dinheiro, esse cão ignoto que foi esquecido ainda antes de o ser, ainda antes de te lamber, pilhéria pele dum franco alabastro sobre a qual o tempo não passa, num mundo estranho, num ponto qualquer do universo das flores, onde fica o umbigo do Homem, onde cresce a raíz das árvores, onde acontece o borbulhar das águas e furam os rios, claros inclementes desvarios em sangue, um vento que encerra as pedras e essa tua vontade, esse teu ignoto pundonor, essa tua sibila m moderna, esse pecado que brota da visão dos teus pés nús, mãos inclementes que seguram os rios e os aliviam das barcas os aligeiram das frondosas copas e que são afinal, apenas mais e mais chocolate, apenas uma vitrine, uma pequenina rua empedrada de amarelo, empedrada de pó e livro, enredada de bibliteca cercada de madeira onerosa, odorífica, saudosa e donde surgem, ou voando ou sonhando, milagres transtornos milhafres, iludindo o vazio, impiedoso bando de ciganos bramindo e multiplicando por mil, entorpecidos os pés, entontecidos os vagares dessa labareda acastelada, onde logo pela manhã, após um sumo de poética, abres, escancaradas as portadas vermelhas, que findam contra uma parede mofa, lânguida, velha, que sem perdão, julga o céu e a terra e Te nega ó cristo, ó malvado e diabólico, porque depressa morres dum aneurisma ou clemente serás , só as pegadas que marcas na areia ou o ruído da vaga que julgas sentir, à última batida, ou então essa arca, esse maldito mastaréu, que navega em círculos, circum-navegação, como quem arpoa um poço de gritos, onde tu estás, onde vivemos todos, onde teus passos se perdem, onde tu clamas, infinda, clara, teus seios, teus anseios, teus odores sabores, teus cabelos, horrores, suores, humores, duma cidadela marciana, ou dum sonho pacífico, qual bola de cristal, qual ovário inquieto, donde zarpam telhados, cidades esquírolas, noites brancas e frondosas avenidas, soltando vazios e palavras tais quais, eternidade, salvação, sentido, oceano, sabedoria, montanha, pedra, satisfação, claridade. É Clara quem se afasta ao longo da praia, nessa alvorada de inverno, nessa lentidão de marcha.
Nuno Monteiro
“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

Prémio Histórico - Filosóficas