terça-feira, 31 de março de 2009

Os teus pés



Quando não te posso contemplar

Contemplo os teus pés.

Teus pés de osso arqueado,

Teus pequenos pés duros.

Eu sei que te sustentam

E que teu doce peso

Sobre eles se ergue.

Tua cintura e teus seios,

A duplicada púrpura

Dos teus mamilos,

A caixa dos teus olhos

Que há pouco levantaram voo,

A larga boca de fruta,

Tua rubra cabeleira,

Pequena torre minha.

Mas se amo os teus pés

É só porque andaram

Sobre a terra e sobre

O vento e sobre a água,

Até me encontrarem.


Pablo Neruda

Discurso de apresentação de Elementos


Carlos Nejar, poeta e romancista, dramaturgo e crítico brasileiro afirmou, e passo a citar, “a escrita é uma necessidade física, urgente, de absorver a realidade e mudá-la. Assumir a responsabilidade de levar uma mensagem ao portador. E não importam os obstáculos do caminho, a mensagem chegará. Escrever é saber cortar e fazer explodir os silêncios”
Mas a escrita só é valida se tiver leitores!
A triste realidade é que a leitura, em termos genéricos, está marginalizada porque não dá tanto nas vistas como um automóvel de último modelo! Quando se fala de poesia, a situação agudiza-se, já que o texto exige um esforço que a maioria dos seres não está para lhe dispensar. Já Camões se queixava no século XVI, e passo a citar:

Enfim, não houve forte Capitão
Que não fosse também douto e ciente,
Da Lácia, Grega ou Bárbara nação,
Senão da Portuguesa tão somente.
Sem vergonha o não digo, que a razão
De algum não ser por versos excelente
É não se ver prezado verso e rima
Porque quem não sabe arte não na estima.

E continua na estrofe seguinte:

Mas o pior de tudo é que a ventura
Tão ásperos os fez e tão austeros,
Tão rudes e de engenho e tão remisso,
Que a minutos lhe dá pouco ou nada disso.
Os Lusíadas, Canto V

Lamentável é que assim seja, pois o poema é uma pérola da essência humana, que cada vez é menos valorizada e cada vez mais precisa de ser compreendida entronizada.
No dizer de Carlos Nejar, a poesia é uma solidão que deu certo. Uma solidão activa e militante. Porque a solidão é cósmica. E a solidão não acaba nunca.
Poesia prende-se, pois, com pureza original, com uma visão depuradora do mundo imundo em que vivemos. O poeta tem o dever de denunciar as injustiças e atrocidades sociais; tem obrigação de contribuir para a cura da cegueira em que se move erraticamente a humanidade, de acordo com o que Torga escreveu: o poeta é como um farol. Dá chicotadas de luz na escuridão.
O poeta tem o direito de ser livre. Só assim pode ser isento na visão que transmite quando escreve; só em liberdade pode assumir o compromisso da luta por um mundo melhor e mais justo.
A poesia, através das eras, tem sido a arma mais resistente e persistente numa luta sem sangue, mas com ideias que têm provocado profundas e amplas transformações de mentalidades. Mas há ainda muito para fazer…
Carlos Nejar, de novo, afirma que a poesia é a arte da mudança. Recusa amarras ou prisões.
Foi com muito agrado e com justificada curiosidade que recebi e fiz a minha leitura do livro elementos, da autoria de Dina Cruz e de Nuno Monteiro.
Não se pretende com este trabalho apresentar uma análise científica, nem tão pouco uma crítica literária academicista que seria forçosamente castradora dos sentidos intrínsecos do poema.
Cada poema é uma pérola na sua integridade desafiante que se mostra e nos fascina porque é assim, tal qual se mostra, assumindo um brilho novo sempre que se muda o ângulo de visão.
É por isso que não se pode impor uma leitura, sob pena de reduzir uma obra de arte a um arquétipo frio, desnudo, inerte, inútil.
A sensação de belo deve pertencer a quem frui o poema, lendo-o, saboreando as vogais e as consoantes e as aliterações e as assonâncias e os ritmos e as insinuações e a vida que pulsa no poema sempre que temos a alma disponível para conversar com ele. Sim porque o poema é um ser vivo, mas preguiçoso, expressamente preguiçoso…o que ele pretende, sem o dizer, é que nos apercebamos de que ele existe, mesmo para além de nós; o que ele pretende é que lhe prestemos atenção, ora respeitadora, ora ousada, virando-o do avesso, se necessário for, para que consigamos deslumbrar-nos com aquilo que subjaz às palavras e até com a cumplicidade que entre elas existe.
Um poema é as palavras a falarem umas com as outras, mostrando aquilo que ocultam e ocultando aquilo que mostram; as palavras que, juntas, se carregam de sentidos e de memórias que nos fazem ver o invisível; as palavras que, num festival de magia, nos revelam mundos, vivências, emoções que nos fascinam e nos alertam para uma realidade renovada.

Abordagem da obra:

O título: em qualquer obra o título é muito importante e pode assumir-se, muitas vezes, como o responsável pela atracção ou repulsa em relação ao livro. Também é verdade que há títulos que não deveriam ter livro e livros que não precisam de título. A novela menina e moça faz esquecer o título saudades.
O título pode remeter para o espaço onde decorre a acção: Viagens na minha terra; a Cidade e as Serras; Mau tempo no Canal. Pode remeter para o tempo da acção: 1984, de George Orwell. Pode condensar o assunto da obra: Amor de Perdição. Pode referir a personagem principal: Eurico o presbítero; os Maias; Os Lusíadas. Pode ser simbólico: Felizmente há luar!
Elementos, pois é certo que se trata de poesia elemental. Quase todos os poemas apresentam explicitamente um dos quatro elementos essenciais. O próprio subtítulo de cada uma das partes para isso remete: Terra de mim, escreve a Dina; o fogo e a água, regista o Nuno. Não falta o ar!
Comecemos pela referência à poesia da Dina:
Trata-se de uma poesia de carácter intimista, com o sujeito poético a auto-analisar-se e a exteriorizar o que lhe vai na alma. É uma poesia dos sentidos e das sensações. Tal como Orfeu desceu aos infernos para recuperar a sua amada, Eurídice, a poetisa desce ao mais fundo de si em busca da poesia: desço ao fundo de mim/e arrumo/em pensamentos desordenados/as vivências impolutas/Dos acasos propositados.
Por vezes fica angustiada, envergonhada, com o que encontra: em mim/mergulhei/profundamente/…/no armário das vergonhas/descobri/sorrisos secos/…abraços amargos/…/estilhaços/retalhos/pecados de mim.
Poesia do eu que se procura, se analisa, se expõe numa simbiose marcante com o tempo, o espaço, os elementos.
Mas também poesia do onírico que leva o poeta até imprevisíveis limites, passando “além do Bojador”, penosamente , para conquistar/as nuvens/o céu/o sol.
Poesia arrancada à solidão e à escuridão, ambientes propícios à criação: Só/na escuridão/no silêncio/…/só/no plaino frio/…/no segredo das batalhas que travo em mim e levam à consciencialização da necessidade de intervir socialmente, gritando: fraco é o sol/que não aquece/…fraca é a palavra/que soa alto/mas não se faz ouvir/…/mas não se quer ouvir…
Poesia, ora eufórica, quando escreve: E há música/e cores/ e vida/em mim…ora assumindo um pendor disfórico, um acentuado desencanto: Houvesse estrelas na noite/e teríamos esperança no futuro. Tal como na vida das gentes, altos e baixos; luz e trevas ocupam, à vez, a alma da poetisa: Dias há/em que esvoaçam/em mim/borboletas de luz/…/noutros/corvos soturnos/ me cegam de negro.
A magia da família, a esperança colocada num nome de criança ressaltam como lenitivos para as angústias do dia-a-dia atribulado: Maria: Trazes a madrugada nos olhos/ e a claridade da lua na tua voz; ou Beatriz: És quem/num beijo/me enche de arco-íris ou Porto de Abrigo: É no teu olhar/que me escondo/que me aqueço/que me abrigo/…/é em ti/meu porto
O arranjo gráfico dos textos privilegia a verticalidade, onde as estrofes heteromórficas, com versos heterométricos, extravasam o tumulto interior de quem, descendo ao mais fundo de si, encontra profundas dissonâncias.
A frequente ausência de pontuação favorece a pluralidade/liberdade, mas também a responsabilidade de leituras, ao mesmo tempo que aproxima a linguagem do pensamento e das emoções. Por outro lado, pode ser entendida como a obsessão de preservar a unidade que a pontuação não favorecece.
Enquanto que os poemas da Dina evidenciam uma preocupação com o interior do sujeito poético, exteriorizando-o, os poemas do Nuno mostram uma grande preocupação com a realidade exterior, que o poeta interioriza e sobre a qual reflecte. É como um arauto dos gritos da Natureza, mas também do Homem, das suas grandezas e das suas misérias.
Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo.
Estas afirmações de Sophia de Mello Breyner Andresen podem verificar-se nos poemas do Nuno quando escreve: Canto/a beleza do bater das asas/as ondas do mar/…/o raio de luz/…a terra inteira de quem tu és filha.
O poeta ora se mostra fascinado com a beleza do mundo, escrevendo: dentro de ti/descubro os heróis do vento que te impelem por esse mar/os dourados faróis por onde navegas/as frágeis noites/ e as cálidas madrugadas; ora se sente desencantado com o comportamento humano, lamentando-se: os homens julgam-se donos de tudo/até das estrelas; ora se mostra desolado com a actualidade violenta dos desempregados, denunciando: Foi um alvoroço/quando lá entrou o demónio/e lhe disse que já não tinha emprego/ A mulher chorou/os amigos fugiram/e entretanto chegou a fome/nos olhos baços das crianças. É certo Sophia, Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. O poeta angustia-se com as injustiças comportamentais de uma sociedade decadente, degenerada, que não trata dignamente nem as crianças nem os idosos: Até quando/ Chorarão as pedras pelos pobres meninos arrastados pelo gelo/ou verter-se-ão as águas pelos infames futuros dos nossos velhos ao abandono.
O poeta canta também a Solidariedade e o Amor cósmico: cheguei de noite e bati à porta tão ao de leve/como um sussurro ou uma paleta de sons saídos da floresta/…/O homem da casa ergueu a taça e cortou a broa/lendas de linho em cima da mesa e a porta aberta/ e tu que nos trazes?/…/Todas as flores do Alentejo!/os copos encheram-se com o vinho e/os miúdos de faces coradas/pegaram as flores e foram distribuí-las pelas outras casas.
A noite metafórica, símbolo do desconhecido, assume uma importância criadora, genesíaca, reveladora. É no atro da noite escura que mais se sente a necessidade da luz, do conhecimento. É no seio da noite que começa a gerar-se a ânsia de um novo dia, que deve ser vivido em pleno. Por isso o poeta escreve: Foi em meio da noite que finalmente compreendeu/que é impossível viver sem olhar/sem sentir/sem cheirar todos os aromas que vivem ao nosso lado. (Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem.)
Remata a obra com um apelo ao regresso à pureza original, ao mito do bom selvagem de que fala Jean Jacques Rousseau, o tal que “Deus criou e pôs num paraíso de delícias; voltou a criá-lo a sociedade e pô-lo num inferno de tolices”, parafraseando Garret em Viagens na minha terra. Escreve, pois, o poeta: Cospe toda a parcimónia e avizinha-te de mim/…/despe-te Rosa e juntos / caminharemos pela aurora do outro mundo/seremos bandidos e proscritos vivendo das raízes e das folhas/…/regurgitaremos da vida tudo quanto não importe / e dormirás ao relento bebendo estrelas e engolindo mundos.
Concluo, dizendo que a poesia da Dina exterioriza o seu interior em intensos poemas, marcados pela verticalidade, de ritmo rápido e sentido.
A poesia do Nuno interioriza o exterior que derrama depois em poemas mais extensos, onde predomina a horizontalidade do verso longo, pensado, depois de sentido.
Estamos perante poesia autêntica, pois os poetas expõem ideias e sentimentos, servindo-se de padrões formais que sobrevalorizam a sonoridade e alcançam a máxima intensidade expressiva num espaço mínimo. O discurso poético concentra-se numa série de signos e sinais linguísticos convencionais que abrangem vários níveis de significado.
De Elementos brota poesia autêntica, aquela que nunca fenece.
Cabe a cada leitor investir a sua quota-parte, no sentido de descodificar mensagens implícitas.

Livraria Bertrand, Vila Real, 20/03/2009
Henrique Morgado

segunda-feira, 30 de março de 2009

Não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade


Às Forças Armadas e ao povo de Portugal "Não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade" Jorge de Sena Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha. Quase, quase cinqüenta anos reinaram neste país, e conta de tantos danos, de tantos crimes e enganos, chegava até à raíz. Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha. Tantos morreram sem ver o dia do despertar! Tantos sem poder saber com que letras escrever, com que palavras gritar! Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha. Essa paz de cemitério toda prisão ou censura. e o poder feito galdério, sem limite e sem cautério, todo embófia e sinecura. Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha. Esses ricos sem vergonha, esses pobres sem futuro, essa emigração medonha, e a tristeza uma peçonha envenenando o ar puro. Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha. Essas guerra de além-mar gastando as armas e a gente, esse morrer e matar sem sinal de se acabar por política demente. Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha. Esse perder-se no mundo o nome de Portugal, essa amargura sem fundo, só miséria sem segundo, só desespero fatal. Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha. Quase, quase cinquenta anos durou esta eternidade, numa sombra de gusanos e em negócios de ciganos, entre mentira e maldade. Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha. Saem tanques para a rua, sai o povo logo atrás: estala enfim, altiva e nua, com força que não recua, a verdade mais veraz. Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha. Jorge de Sena

sábado, 28 de março de 2009

Elementos - Sessão de apresentação




Nuno Monteiro é sujeito de lugar algum. Ou então existe por vezes, em algum lugar, nalguma terra, ocupando algum espaço. Vive enleado e embrenhado nas letras, essas gordas e densas bátegas de chuva que lhe dão alento. Ou bebe da manhã e do sumo da veiga, postado entre o céu e a terra bramindo frases e festejos inaudíveis e inauditos. É um cigano ladrão dos galardões dos outros que assim se transporta de terra em terra. E mais se não diz por manifesta falta de interesse.

sexta-feira, 27 de março de 2009

All along the watchtower







"There must be some way out of here," said the joker to the thief,"There's too much confusion, I can't get no relief.Businessmen, they drink my wine, plowmen dig my earth,None of them along the line know what any of it is worth."
"No reason to get excited," the thief, he kindly spoke,"There are many here among us who feel that life is but a joke.But you and I, we've been through that, and this is not our fate,So let us not talk falsely now, the hour is getting late."
All along the watchtower, princes kept the viewWhile all the women came and went, barefoot servants, too.
Outside in the distance a wildcat did growl,Two riders were approaching, the wind began to howl.






Bob Dylan

quinta-feira, 26 de março de 2009

Ondjaki - "de pulsos"


XIV - "de pulsos"

tens o pulso tão belo. agora entendo porque o mordes.
como se o sofrimento fosse nada ao pé do toque. como se a sensação canina da boca em contacto com o sangue se desintegrasse não por vontade tua mas pela magia da beleza, do encanto redondo do teu pulso.
como que te oiço o coração enquanto o mordes; como que te mordo o outro pulso, ah, claro, se pudesse, se houvesse.
tens o pulso tão belo. como que arredondo e, feito flor, estranhamente humano.

Ondjaki

poesia declamada


VISÃO

Cinco pardais
Da janela do meu quarto
No chão gélido da viela
No frio cortante do Inverno
No olhar de quem espera
Impaciente
Que o tempo passe

Saltitam
Perscrutam
Debicam
Migalhas inertes

Saciados
Abrem asas
Ao vento
À verdade
Ao júbilo
De serem livres

Singelo momento
Ínfimo momento
De beleza singular
De natureza extrema
De humanidade pura

Cinco pardais
Da janela do meu quarto

Dina Cruz, in Elementos

Poesia declamada por Mariana Costa. Obrigado Mariana!

Poesia declamada


Os nomes das estrelas

Foi grande a barafunda quando cheguei ao notário
Para comprar uma estrela
Ninguém ma queria vender
Ninguém sabia o preço
Ninguém
Telefonaram aos astrónomos
E aos homens das estrelas
Não ma puderam vender
Estavam já todas tomadas
Mais a mais para que quererá ele a estrela?
Foi tão grande a barafunda
Os homens julgam-se donos de tudo
Até das estrelas
Lá tão longe
Com nomes tão esquisitos!


Poesia declamada na apresentação do livro por Ana Bertelo. Obrigado Ana!

O vento


O vento bateu à porta tão de mansinho
Instilou e insuflou e destruiu todas as minhas barreiras
O vento, esse ligeiro daninho
Esse gigante incongruente
Que abanou a minha vida, que me fez cair
Que me impele agora para o meio do nada
Que me empurra para o paraíso
Que me consagrou que me derrotou
Que vento que congrega multidões
Que torrente de desejo
Quantas palavras sãs de desespero
Que vento
Quanto vento que tanto abanou a minha vida
O vento
Do vento
Saltam as faúlhas do meu intelecto e morrem ao fim de tão pouco
Loucas insanas como louvores
Palavras vãs, ares fétidos, calor e suores
Num amargo de boca, na constatação da fraqueza
O vento que me trouxe
O vento que me obriga a vogar incenso por entre mares de desejo
O vento
Esse mesmo
Esse vento.

discurso lançamento Elementos


Os agradecimentos primeiro e então aqui ficam. À biblioteca Municipal de Barcelos e ao Dr. Victor Pinho que teve a amabilidade de nos proporcionar tudo isto. Ao Dr. João Lourenço e à Drª Manuela Ascensão Correia que foram tão gentis connosco e com este livro. Aos meus pais que estão sempre comigo. E como poderia eu não mencionar o Sr. Manuel José Cardoso Ribeiro que se associou à edição da forma mais despretensiosa que eu posso conceber.

Do livro vou apenas dizer que aí está, para os leitores, para que dele se possam servir e para que façam dele vida vossa com justificado sentido. Não escondo que gosto tanto de livros. Não escondo que me sinto bem na escrita. Não o escondo embora também me resguarde. Deste palco de sons e de paletas de cores que se voltam para ti para te obrigar a escrever mais e mais. Sabendo como todos que o livro de nada servirá se não cativar leitores. Os leitores que quando afundam e se deixam levar pelo suave balastro retornam mudados e suavemente mais felizes. Os leitores que então são parte activa na construção que fica a jusante da edição. Os leitores que verão uma nuvem a mais ou uma montanha a menos. Os leitores que reinterpretam a cada instante e que por isso dão novas cores à paleta carregada de luz. Desta vez nasceu um livro de poesia. Versos para ler e reler na calma da noite ou para matar a rotina de martírio dos nossos dias. Versos para ler e reler. As minhas palavras reconstruídas para vós e por vós. O meu livro entregue a vós e reescrito por vós os verdadeiros e autênticos donos do que lêem. Não há objecto mais mágico! O próximo sairá sem capa e sem cor para que na mente de cada um possa surgir a cor e os sons e o sabor e o paladar que melhor falarão convosco e melhor se adequarão a vós. Pode começar a leitura pelo poema que desejar. São muitas as formas de leitura. Dentro de cada pessoa as palavras farão o sentido que é uno e intransmissível. Porque o livro é o contrário do despotismo e da tirania. Porque o livro é a vossa liberdade e agudeza de espírito. E porque o homem precisa desesperadamente de se mover livre por entre as estrelas e o firmamento. Porque o homem precisa de sonho e códigos. Precisa de novos horizontes para que se possa reafirmar. E o livro e a escrita, os versos e as palavras são os vossos momentos de calma e os vossos mergulhos no escuro.

Julgo que muita da insegurança e da destemperança hoje sentida e vivida advém da falta de leitura e da consequente reflexão. A vida impele para uma correria desenfreada mas o homem também se deixa arrastar e muitas vezes até luta para suplantar o outro. Começa aí o seu calvário. Reside aí a sua insatisfação. Em breve acometido de um quase sórdido desejo de mais e mais poder, de um mais e maior ter e de um paupérrimo sentido social e de justiça. E então a crise abeira-se e senta-se connosco na sala de estar e na cozinha. Crise que é do homem. De cada homem. E então versos para ler e os vossos momentos de calma e os vossos mergulhos no escuro.

Com vosso consentimento lerei um pequeno texto que escrevi sobre aquilo que é para mim a literatura e a escrita.


O escritor e a escrita

Quem me explicará como se escreve bem? Quem me dirá como se retrata o belo? Porque há o lírio e as papoilas do campo e essas são belas. Mas também há a terra e o mar que são lugares imensamente belos. Então e a silhueta de um veleiro de velas enfunadas na manhã clara e calma de um dia de primavera. Belo também. E as palavras escolhidas com tanto labor, e as palavras cozidas como se fossem teares e os tapetes de Arraiolos. Ou os tapetes de flores do Alentejo. A literatura é belíssima. O acto de leitura é de uma serenidade e de uma sinceridade belíssimas. E os textos mais simples são tão bonitos.
Senti-o que voa de planeta em planeta para se descobrir a si próprio; atraiçoai o infeliz momento em que Coyotito morreu ou sede capaz de sentar na esteira de espuma da Isla Negra, percorrei as entranhas da vida esconjurada na selva até dardes de cara com esses olhos malditos desse demente ou deixai que o frémito da paixão vos arrebata quando se aperceberem que Carlos e Eduarda não são senão irmãos.
O que são para mim os livros? Representações de tantos belos alternativos como se todos juntos fossem os nossos guardiães da vida. São ferramentas de cirurgião que nos rearranjam por dentro e que nos impelem a seguir em frente. São calmantes para os hipertensos e são setas de venenos correctores que nos assolam o espírito e que promovem mudanças. Quem disse que se aprende com a vida? Aprendo com os livros que leio, porque os livros valem mais que a vida. Porque o âmago de um livro encerra sinceridade, ternura e compaixão e esses não encontro em mais lugar algum. Por isso mesmo o livro é belo. Desde que esteja realmente bem escrito.
Daí que eu volte à questão inicial. Como se escreverá um belo livro? Não pode ser feito com base numa fabulação de uma sociedade. Porque infelizmente nós não estamos rodeados por Camelot nem eu alguma vez terei visto alguma Távola Redonda. Por mais que a queiram imaginar tentai explicar o conceito aos esfomeados do nosso país. Deverá, pelo contrário mostrar sinceridade e explorar o hiper-realismo que despoletará no leitor a apreensão e a vergonha. Daí que os livros precisem versar o espírito humano. E o que faz o homem quando é contrariado? Repensa-se e reorganiza-se.
Mas o livro tem que ser mais que sinceridade. Também deve ser tensão. Também deve ser mágoa. Tem que encerrar arrependimento. Não poderá nunca ser de outra forma porque o escritor é um escolhido. Escolhido como um condenado por todos os males que os outros ou ele próprio fizeram. E a sua única forma de remissão é a compartilha nua e crua e sincera e mágoa. Então a literatura passa a ser uma forma alternativa de prisão como se o escritor fosse ao mesmo tempo preso e libertador, sob ele impenderá sempre a faca da atrocidade e a ele caberá sempre denunciá-la e degradar o mal. Como um paliativo para o sofrimento. Mas o que mais sofre. O sofredor que entrega aos outros calma e serenidade em forma de libertação. Eis a encarnação do altruísmo. Daí que a literatura seja bela. E toda a escrita é bela desde que dissolva o sofrimento. Como os lírios do campo ou as montanhas na sua quietude ou ainda os mares salgados e os ventos e as borrascas.
Julgo agora já ter dito suficiente. Julgo que agora melhor será que me cale. Para deixar o livro em paz nas vossas mãos. Resta-me a consolação de vos ter tido aqui comigo. Muito obrigado a todos. E muito boa tarde.

Discurso apresentação - Elementos


Tenho que agradecer à livraria Bertrand que me possibilitou tudo isto. E à Papiro que foi quem me editou o livro. À Agrireal por se ter associado à edição deste livro. E ao meu professor Henrique Morgado. Porque as palavras dele são Salva e Mirra e Torga. E porque me comoveu. Como e quanto me comoveu. Porque me fez elevar até às estrelas e voltar de novo agora para vos falar. E só espero estar à altura para dizer o que hoje preciso de vos dizer.
Os sons mergulham em mim e ecoam enquanto loucos sem que eu seja capaz de os segurar. O brilho das faces que são as vossas olha e mira e está aí, estão aí, todos, rendidos heróis, olhando e galgando fronteiras. E eu persigo o sonho que me consome e me amarra a esta cadeira. Sonho o sonho que me inquieta e me apoquenta. Esse sonho é para mim o código sagrado onde eu quero marcar com ferro em brasa. É o meu código e o meu desgraçado destino. E as minhas palavras minhas são tudo o que possuo. Nada mais quero alcançar senão a cristalinidade das palavras e a beleza intemporal que elas deixam quando plantadas. Numa vida que vive a queimar e numa fraga maldita onde eu sinto frio e o incómodo de continuar vivendo deixando os pés de fora enquanto a cabeça galga as estrelas da fronteira do meu sonho. Do meu código.
Deve haver algures quem me entenda. Algures haverá quem fale e sinta e pense como eu. Nalguma encruzilhada algum outro louco carregando semblantes que se nunca alteram. Tudo o que eu quero é companhia para uma tertúlia onde pudéssemos falar e falar sem tempo sobre as poesias e sobre os livros que te ensombram. Mas o que eu tenho, o que eu sinto em meio de mim são as faces que se transformaram em cera. Que nada podem, que nada nunca alcançam, que vão mirrando a cada instante. Faces de frio e desatenção. Faces feias e inertes. Perdeu-se o riso e a vida humana voltou-se do avesso. Cultivamos e acarinhamos anti-heróis, aspergimos o ar envenenado com que morreremos amanhã. E eis que se erguem majestosos e omnipotentes os espectros da escuridão e da solidão. Porque depois do fim restará ao homem contemplar-se a si próprio, numa horrível e dantesca visão de si. O eu imperfeito e devorador do bem. Porque deixamos paulatinamente de ver e sentir. Deixamos de labutar e de lutar. Numa palavra só. Solidão. O homem que se perde num mar de dúvidas porque deixou de sonhar. Não tem desígnios elevados. E então voltam as saudades da minha meninice. Então voltam as saudades da liberdade que eu imaginava nas nuvens. Volta o passado e inundam-me as memórias. E olho em volta e vejo as ruínas do país que não sinto como meu. Olho e sinto a fruição do fátuo e do passageiro no rosto do meu amigo desempregado. No rosto esquálido do meu irmão prostrado. Observo e quase fecho os olhos perante a indiferença com que tu viras as costas ao teu melhor amigo. E o que se passa com o teu amigo passa-se também com o teu país e a tua bandeira. Que esqueces ao vento e à chuva do inferno dos costumes que teimas em querer manter e sustentar.
Ao cabo da minha meia vida dou por mim surpreso porque me conseguiram fazer professor. E olho em busca dos meus alunos e descubro que tantos estão nesta sala comigo. E é aí que eu encontro refúgio. É esse o meu abrigo. É essa a minha tábua e o meu maior desígnio. Como eu quereria conseguir fazer deste texto uma ode e uma dádiva aos meus alunos. O que eu não daria para que as palavras soassem como cristais e marcassem como diamantes. Desgraçadamente fizeram-me professor. Entretanto descobri os alunos quando lhes consegui finalmente provocar o riso. E sei que são os meus alunos porque não mais os esquecerei. Tornaram-se perenes na minha montanha de memória. E erguem-se castelos quando me abrigam das intempéries. São as Torgas e os ventos e as imensidões do campo. É deles que me não consigo afastar. É com eles que choro. É por eles que trabalho. E mais não consigo dizer. Mais não posso fazer transparecer com palavras. E então obrigado também a vós. Por me enriquecerem com as vossas risadas. Por me ofertarem as flores do campo e todo o tamanho do ar.

Tenho contado uma pequenina história em cada uma das sessões e em cada local por onde tenho passado. Permiti-me esta última veleidade. Esta chama-se indiferença. E reza da seguinte maneira:
É tão cedo na manhã e o nosso homem acabou de abrir os olhos. Rapidamente e cheio de fortes abalos interiores, cheio de sobressaltos e tanto lhe dói a cabeça. E num primeiro tropeção não sabia sequer onde estava. Depois ficou impávido e sereno de cabeça bamba olhando o tecto esbranquiçado daquele que seria um quarto. Um qualquer quarto, sem ligação alguma a si, que não nutria amor por ninguém e muito menos qualquer ligação por alguém. Pelo menos que ele assim o sentisse ou que ele julgasse consciente que sim. E talvez daí essa sua impertinência e também essa sua aparente indigência. Com efeito ele sempre sonhou dali se ir e abandonar tudo até ao cabo do mundo. Porém o mundo teimava em não se mover para vir ter com ele. E ele, defeito pernicioso, também se habituara a não se deixar mover.
Ainda tão cedo na manhã e ainda e mais uma vez o nosso herói na senda de um outro dia heróico, olhos suplicantes cravejados no tecto sem forças sequer para mover um dedo e uma cabeça mergulhada em águas frias e monstruosas como o fim do mundo ou o espectro da fome. E um vago sentido de fome da cor das teias de aranha que trazia imersas em si e que eram um símbolo da indiferença que votava ao abandono do homem pelo homem. Ou nem votava e então deixava o papel em branco. Um branco imaculado sem cheiro e asséptico do sentido desta humanidade que se esqueceu da simplicidade e da honestidade.
Após um momento de contracção em que julgou que uma febre imensa o perpassava e sem mais em que pensar julgou ouvir o telefone que gania ali ao perto dele. Arrastou-se da cama para o chão e esgueirou-se pelo chão do quarto até ao canto donde vinha aquele resfolegar de asma. Atendeu e do outro lado pareceu-lhe ouvir uma criança sonhar. Sonhava chorando enquanto um gato se aproximava do beiral do lado de cá, do lado do sol, do lado sereno, do lado da indigência. E o telefone. O que significava ali o telefone? O telefone era o miúdo que gemia do lado de lá, do lado da fome e do lado da desnutrição, a criança que morria sozinha num areal imenso de sílica estéril e a quem lhe iam faltando forças até para mover os maxilares. O telefone foi o chamamento desesperado dessa súbita remissão com que o pequenino corpo se julgou capaz de viver sem comer, sem ter que comer e aquele choro era o menino a chamar a mãe, morta e apodrecida ali mesmo ao lado dele, naquele fundo de deserto, naquele campo de batalha, naquelas terras desnudadas e pobre menino que mais não pode que morrer.
E aqui tão cedo na manhã e o nosso herói ouvindo aterrado aquele choro que não entendia e interrogando-se sobre que mal fizera e a quem punira. Acordara de uma noite agitada e julgando num assombro de prodigalidade ser aquele choro o do seu filho que abandonara havia um mês levou a mão ao bolso e tirou de lá um cheque que enviou pelo telefone. Pelo sim pelo não acrescentou um zero à soma não fosse o miúdo emagrecer ou julgá-lo a ele um sovina incapaz de sentir as birras. E então atirou-lhe o cheque que imediatamente brotou do outro lado da linha, num tântalo lamento que ouviu aquele coração expirar ao fim de uma longa batalha de fome crua e cadavérica. E entretanto, rico, de posse de um papel que lhe garantiria dinheiro para toda a sua vida aquela pobre criança deixou-se morrer, atacada pela cegueira e desesperança. Só a mãe por ele velava, só a mãe hirta e seca, de ossos à mostra e longamente morta ali naquele deserto. Sobreveio a morte e ali ficaram mãe e filho e do lado de cá, do lado do quarto, do lado do nosso herói se reinava o silêncio era porque o cheque havia sido aceite.
Bom moço este meu menino! A mãe é que o estraga com mimos mas também que culpa é a minha se o juiz o quis na casa dela. Atura-o ela mas se foi ela quem o quis, não sei porque me obrigaram a sustentá-los aos dois. E ao dizer isto sentiu as teias que dentro de si pululavam galgarem mais um muro e destruírem mais uma muralha.
Então, já acordado, entrou para o automóvel e fez toda a viagem acompanhado do seu sentido de felicidade porque não negava nada ao filho.

Terminaria, então, aqui e assim, agora sim, agradecendo a vossa presença e deixando o livro para que o possam ver e sentir e para que dele se possam servir, pintalgando-o das cores que vos forem mais simpáticas e também para que o possam julgar, num qualquer lugar, num tempo qualquer, num redemoinho mais e na esteira do tapete das ideias e do sonho.

Muito obrigado então e muito boa noite.
“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

Prémio Histórico - Filosóficas