domingo, 27 de fevereiro de 2011

O amador das rochas

Há apenas um dia no ano com luminosidade grande para se fazer uma excepcional foto ao Marão. Hoje foi esse dia e eu não premi o gatilho. Não quis matar a tua sede de protagonismo. Fizeste-o tu, foste tu quem se banqueteou enquanto eu, eu apenas o olhei, ao majestoso, ainda com farripas de neve, mas já agora que estamos em maré, olha as angiospérmicas e vê como rebentam os pequenos ázimos, olha a primavera que aí vem. Serás capaz de fotografar a primeira andorinha? Dizem que não, mas eu sei que uma andorinha é toda a primavera. Engulo ar e ele sabe a quente sansaborão. As aldeias de xisto ainda aí estão. Eu tenho paredes caiadas de branco, prontinhas e a pedir que lhe plantemos uma colmeia de fotos a preto e branco. Tenho aqui comigo um cão pequeno que não pára de latir. É também aqui uma tipográfica. Este seria um óptimo momento para chorarmos um livro. Setenta páginas. Como morrem os caminhos, já que morrem os caminhos, acabei agora de ler “A peregrina”, fiquei com uma vontade imensa de abraçar a vida, sair por aí fora e matraquear as pedras, olhá-las de perto e bafejá-las. O dia de hoje não tem pinta de evaporação; consigo olhar tão longe. Vejo e sinto a serra da estrela aqui tão perto, ali tão longe. Como se estivesse ali uma calçada de gigante e me faltasse Rocamadour, onde estás Rocamadour?, porque demoras? Deixei que o dia morresse e eu não me movi que o capturasse. Assim, quem me levará a sério? É domingo e desabrocham as flores. Este é o vale de Josafat. O oeste leva o sol, amarelo, mágico. Eu cá fico, imenso em sede. Ainda não vi nem ouvi clique algum. Não há ninguém pelo caminho. Que mania esta minha pelos caminhos. Quem me dera uma calçada romana e uma actriz consensual, de pernas musculadas e grandes mãos calejadas. Assim, saltaria de monte em monte e na calada da noite, dormiria ao colo fraterno da santa madre agonia, a dos olhos pretos, a das insalubres delícias. Cai um pano de vento que me sacode montanha abaixo. A custo me sustenho. Ouço o ribombo do meu corpo que carcaça câmbrico abaixo, câmbrico abaixo, câmbrico abaixo, como que ascendendo a uma sede perfeita… Porra! Devias ter disparado o gatilho. Pintarias a parede de cinza…

Nuno Monteiro

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

A peregrina

“(...) Também a vida é uma viagem absurda. Tudo é absurdo – disse o bobo. – Quanto à viagem, cada um terá as suas razões, penso eu, e suspeito que não vamos dizê-las. Quiçá nem as saibamos, mas existem. Às vezes já tenho pensado que, se estou aqui, é apenas para manter a esperança dessa menina, e porque, enquanto ela tiver esperança, eu também a terei. Senão, já não me bastaria estar louco: teria de acabar comigo com as minhas próprias mãos.
À moça não lhe perguntaram nada. Tampouco teria respondido. Ou teria dito que a vida a tinha posto ali, naquele lugar, e que ali continuaria até que a vida a pusesse noutro. (...)"

Basílio Losada, A peregrina, Teorema

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Certas noites com luar

Era o tempo das noites tenras e eu estava muito na moda; havia ainda ruas inocentes e os edifícios, em lisboa, andavam a passo num vago lúgubre. Estivessemos próximos do sol e eu não escolhia, tergiversava mesmo sem querer e sugava dessas noites quentes e salitres. Era também próprio da idade e aos cafés, fumávamos todos da mesma mão. Já ninguém escreve assim. Tudo mudou tanto. Rasparam o salitre das ruas estreitas e foi a eito, meteram-lhes uma merda duma cor que acinzenta tudo, enterraram a fotografia antiga e drenaram o tejo. Acomodaram-no dentro de um espartilho que tudo cobre, que tudo esconde. Se o tecido tem cores e quanto essas cores não falam, se o espartilho tem textura e palpação, o tejo solto, a auréola do mamilo e a confluência com a anca deixaram de estar ao alcance da mão. As fachadas não têm marcas, não esmolam, ainda caem as folhas mas já não permitem esse Outono bravo e ventoso, já não temos pintores e muito menos homens mágicos. A cor com que pintaram o mundo e a luz branca com que o apertam são espartilhos que deformam o colo e o metem muito a direito como se me proibissem de fumar. Acontece que então eu ia pela rua com um inebrio quente e suave, uma existência que pendurava da balaustrada do céu e chegava ao bar, à minha casa e encontrava-os lá todos, a esses extraordinários belzebus e perguntava Quem já escreveu hoje e logo ali defronte de mim, enrolavam um cigarro e espiralavam fumo pelas páginas e matraqueavam as palavras pelo ar corrido desse tempo espesso. Leve, tão leve quanto o sentido da liberdade… e quanto mais tabaco corria, mais noite se abatia e lá de cima, da balaustrada, chegavam roncos de trovão; deveriam ser seis da manhã e eu ia a pé pela linha costeira e era rara a noite em que a não encontrava, à minha ninfa de berma de bar. E eu então dizia-lhe, vá, já cumpriste a tua noite, desatralaça lá o espartilho e logo de imediato, deitando abaixo as cores, botando lá a mão, semeava carne pelo meio da carne. Houve um tempo em que eu passeava pelas ruas muito magro, muito tísico, nada do mundo se assemelhava comigo e eu não queria nada com a pessoa inteira, cheirava-lhe o verniz das unhas ou olhava-lhe fixamente para os olhos sem nada pigarrear, baliam dentro de mim as saudades das Acácias em flor, havia dentro de mim um ronco irmão que me impedia de subir ao palco. Talvez tenha sido por isso que, numa noite em que não encontrando a carteira, tendo perdido a minha biblioteca e tendo encontrado o corpo da minha ninfa profanado eu, saltando da janela, ainda calhei de procurar em volta mas já não saltimbanco algum. Esse cúmulo terá sido a minha única experiência. Depois alguém me apagou.
“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

Prémio Histórico - Filosóficas