sexta-feira, 30 de julho de 2010

Contraluz

Dizem por aí que o António Feio morreu...

… “Sabes o que gostava de ser? – disse eu. – Sabes o que gostava de ser? Quer dizer, se tivesse a merda de uma escolha?”
- O que era? E pára de dizer palavrões.
- Conheces aquela canção “Se alguém apanha alguém que atravessa o centeio”? O que eu gostava…
- É “Se alguém encontra alguém que atravessa o centeio!” – disse a miúda Phoebe. É uma poesia. Do Robert Burns.
- Bem sei que é uma poesia do Robert Burns.
Mas ela tinha razão. É mesmo “Se alguém encontra alguém que atravessa o centeio!” Mas naquele momento eu não o sabia.
- Pensei que era “Se alguém apanha alguém” – disse eu. – Mas enfim, ponho-me a imaginar uma data de miuditos a brincar a um jogo qualquer num grande campo de centeio e tal. Milhares de miuditos, e ninguém por perto, ninguém crescido, quero eu dizer, a não ser eu. E eu fico ali na borda de um abismo lixado. E o que eu tenho de fazer é ficar à espera no centeio e apanhar todos os que desatarem a correr para o abismo… Quer dizer, se vão a correr e não vêem para onde vão, eu tenho de saltar de um lado qualquer e de os apanhar. Era só isso que fazia o dia inteiro. Só estar ali à espera, a apanhar os miúdos no centeio e tal. Eu sei que é uma coisa maluca, mas é a única coisa que eu gostava de ser. Bem sei que é uma coisa maluca.

J. D. Salinger, The Catcher in the Rye, Tradução de José Lima

Há alturas em que a literatura é realmente assombrosa, acabava de ler o excerto anterior quando, na sic, noticiavam a morte do António Feio. E fiquei a pensar se o António não teria lido este mesmo excerto, vezes sem conta, e não tivesse encarnado o Caulfield…

Nuno Monteiro

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Porque vivemos demasiado o nosso castelo

Uma sombra agridoce


Uhhh… era a velha quem falava lá do catre…ouviste? Eu não! O quê? Ora, como o quê! O que tu não queres é ouvir… era com o senhor Jeremiado que se falava. Jeremias. Um homem alto, robusto, um vozeirão. Comia uma arroba de batatas à semana e de inverno passava fome pois o campo de batatas nunca lhe chegava. Era só. Nem mulher nem filho conhecido. Nunca casara. Quando saía de casa era para se meter a caminho da taberna, o andar arrastado, o olho vagaroso, entrado na dita, grosso - alto Mulher! Quero um copo de vinho… e era assim quase todas as tardes e quase todas as noites. Fechava a taberna quando ele fechava. Era ele quem guardava a chave de fechar. Agora, o diálogo era à porta da casita do escritor e era meia da tarde, quando os cães vadios grafonavam, talvez em tom de saudade… não quero é ouvir! Pois fica a saber que cá o jeremiado não tem medo de nada e muito menos de bruxas. Pois sim, quando o vento ventava, o jeremias era todo encolhimento, de dentro da casa! Era quase tanto tamanho quanto farroncas… acabou por dizer-lhe, mais ou menos em tom confidente… ora, pobre coitada, ela não é nem velha nem bruxa. É apenas mulher. E nem se pode dizer que seja feia! O frio e o vento e a fome e os filhos… deixa ficar no ar todo o restante novelo… ó escritor, deixa lá os papéis e vamos afogar as mágoas com uma pinga. Na taberna assentou na mesa do meio e pediu um garrafão. Estava na altura de confidenciar. Susana, vozeirou, vinho e dois copos e uma faca e salpicão. Vou contar uma história ao escritor para ele escrever… enquanto isso de dentro dele sai um sorrisinho que o torna bem disposto. Susana serve-os e abandona a sala. Ficam eles mais as moscas, que moscardam por aqui e por acolá, como loucas perfeitas. Começa ele… é de loucura que te quero falar. dizem por aí que eu não tenho filhos! Pois bem, isso não é assim tão verdade. A velha que mora na cordilheira, mostra o ventre inchado duma filha minha que está para ser parida vai para vinte anos. O raio da rapariga. Nunca se viu caso assim. É ela quem me leva as batatas todas… que queres, um homem derreia-se todo por uma mulher e uma filha… o escritor pensando para ele, sim senhor, ora aqui está se não temos padre, então não é que se fazem milagres que duram vinte anos e nem um altar, nem uma pedra! E Jeremias, foda lá os milagres mais as pedras, eu quero é a rapariga de lá para fora. Já está grande e ocupa lá muito espaço… eu com a idade dela já misturava os ninhos com a terra e as batatas… o escritor só sabe dizer, não vem cá um médico! Sim, por cá aparece com o padeiro ou com os do circo, mas não há força que chegue, ela não sai, diz sempre o mesmo, a minha varanda é melhor que a tua, e eu penso cá para mim, mas quem me terá feito assim tão casmurro, ao mesmo tempo amocho. E à semana, levam-me, mãe e filha, a arroba de batatas que há pouco pensavas que as comia eu… já o garrafão se sumia a meio e ele, com uma tapona, esborrachando uma moscarda, já que sabes escrever, mete aí no papel que precisamos aqui um padre, sempre se arranjaria um falinhas mansas que a tirasse da cama…por detrás do padre e da cama, finda a noite lá eu me aperceberia que o que urdia o homem era que a velha, a louca, não podia cumprir duas funções ao mesmo tempo, ou lhe sobrava espaço para a filha, ou lhe sobrava espaço para o Jeremias. E este, nem mulher nem filho conhecido. O que queria dizer, que, mesmo com mulher, era como se não tivesse mulher… desbastava todo o seu esperma para cima da terra, numa fonte agridoce, sem passado nem futuro…

Nuno Monteiro

Anita


Eu vi que era Anita quando repuxava aquele papagaio e o fazia dentro de um vento que a ameaçava levar, pequena magia, a dos caracóis exuberantes… flutuando ou dançando naquele mar de trigo.
pois por que lhe chamas anita che? Se cá não conheço moça alguma que tenha esse nome…
Não sei, brincava com os papagaios, dava sempre mais alento às mesmas cores, talvez a tenha associado ao país das maravilhas, não sei, os vestidos folheados, coloridos, muito brancos e cheios de sol…
Conta-me mais, como é essa anita?
Olha… é toda ela muito senhorita, imagina a idolatria do gato, que surge, contraluz, por detrás dum cortinado. E aninha e fica à espreita. É como os olhos dos gatos, umas vezes tristes, outras vezes abrem num sorriso - Ora mas que bela moça!, dir-se-ia que ainda agora acabou de se aquecer na praia…
O mais estranho é que ela desconhece a vida! E eu acho que essa faceta é fortíssima, especialmente se eu te asseverar que a desconhece de propósito, ou melhor, deixa lá ver se te consigo explicar isto convenientemente, ela conhece tanto da vida que dá a ideia que a desconhece, por exemplo, ela sabe que quando agita o papagaio levantado ao vento, obriga todo o mundo a sorrir… obriga o vento a concordar com ela…
Che, assim não há quem te entenda…
Olha, sabes do que estamos aqui a falar? o que eu quero dizer, é que há simples gestos que endireitam o mundo porque falcatruam no âmago do homem… o papagaio é um desses momentos…
Não a estarás a confundir, não quererás uma mulher de livro… isso não sei, che! Sei apenas o que vi, e o que eu vi foi uma planície a perder de vista que era como um chão grande, e um sol chuvoso, batido a vento e ela, Alice, aos piparotes, semelhante a algodão doce… E mais a mais! Sei lá eu o que é isso de uma mulher de livro. Pois se eu em vida ainda não li um que fosse…
Ora, de que estás à espera, que a convides para as festas, que não tardam aí chegam, e pra que servem senão para isso…
E continuaram verão fora, resguardados do calor numa qualquer sombrita, entremeando o trabalho com a vida, e ora um contava da Alice ora o outro contava de Clara. Pois assim fora com os pais antes deles, e com os pais dos pais antes deles. A santa madre Igreja os velava. Porque, bem sabiam ambos, que se inventou a igreja para abençoar o trabalho e casá-lo com as pequenas moças, de pés de cetim e olhos castanhos de regalo…

Nuno Monteiro

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Por esse mar fora...

Por esse mar fora!

Diz lugares comuns, "habla" com ela própria…
Não é mais que ninguém embora, lá no fundo, julgue, pretensiosamente…
Fala demais, fala demais, fala demais, isso é ponto assente…
Mostra uma fala mansa, pausada, sustentada, (por deus!), sustentada onde…
Tem muito medo de ferir susceptibilidades, frequentemente confunde conceitos, quer irradiar o desporto enquanto elege o ballet como obra prima…
Lá no fundo, não tem ideologia…
Por vezes pergunto-me se será capaz de escrever…
Confidencia, e quando o faz, a meia voz…
Traz com ela um livreco, loiro, como ela… um desses com capa irisada e uma linguagem de latão…
Não dispensa as pernas altas e grandes e uma camada de estuque pela cara e peito… sapatos brancos…
Fala tanto, oh, por deus, quanto fala…
Se lhe perguntas pela filha diz logo que é uma jóia de moça, a minha filha sai a mim, e irradia os dentes, do colgate muito branco, estilo Tide…
Um cabelo loiro, exuberante, que lhe desce pelas costas, largas, abrangentes…
Vive ainda à sombra do antigo regime…
Olha-os com uns olhos piscos, como quem diz… por zeus!, não saberá que já não tem idade…
É avó, quase.
Bebe chá em esplanadas de hotéis…
Sai à rua ao fim da manhã, leva um cachorrito, faz compras em Paris, diz-se liberal…
Por esse mar fora, são tantas, tantas, tantas. Por esse mar fora.
Tem cerca de quarenta anos! e uma vida nenhuma anterior a ela...

Nuno Monteiro

Óleo sobre loucura, três da manhã


Numa noite serena e nevoenta, ele deambulava, olhando as espadas e as estátuas, quietas, mudas, calcorreava as ruas e pensava, fumando na boca um cigarro e piscando os olhos devagar… talvez apenas sonambulasse. Se se pudesse mudar dois anos que fosse, galgando tempo,eu desataria à procura dela, eu dar-lhe-ia a mão, mas então?, então! Então eu teria apenas vinte anos e toda a minha vida com ela. Com ela? Sim com ela. Dois anos apenas. Como? Nem que tivesse que calcorrear toda a cidade em milhares de noites, ou nem que tivesse que ouvir a mesma canção dezenas de milhares de vezes. Algures numa encruzilhada, esperá-la-ia e roubá-la-ia. Enlouqueces! Aos poucos! Recita lá mais um verso e dá cá mais um cigarro. Vão faltando cigarros e quem os fume… leva a mão ao bolso e tira o isqueiro com que alumiaria por entre a chama eterna… as estátuas iradas confluíam contra ele… se eu pudesse mudar dois anos, desataria à procura dela, dar-lhe-ia a mão… O tempo nunca foi em brincadeiras com a noite! Mas, um último e estranho calafrio o perpassou! E se ela me não reconhecesse?

Nuno Monteiro

Pelo sonho é que vamos

Somos assim aos dezassete.
Sabemos lá que a vida é ruim!
A tudo amamos, tudo cremos.
Aos dezassete eu fui assim.

Depois, Acilda, os livros dizem,
Dizem os velhos, dizem todos:
“A vida é triste! A vida leva,
A um e um, todos os sonhos.”

Deixá-los lá falar os velhos,
Deixá-los lá… A vida é ruim?
Aos vinte e seis eu amo, eu creio.
Aos vinte e seis eu sou assim.

Sebastião da gama, in Pelo sonho é que vamos (1953),

Um dos meus muitos mundos...


terça-feira, 27 de julho de 2010

Os barulhos mudos do choro


Mesmo ao centro da aldeia havia uma placa que a pregaram lá na véspera. Quinze almas lá estavam para a inauguração, armadas de popa e circunstância e algum vinho, boa disposição e falatório. Susana recolhida, de sorriso escondido e maneiras acanhadas, era quam servia os homens ilustres, os cavaleiros que cirandavam pífios, indemnes. Ali se beberricava e ali se discutia. Alguns chegaram a aventar que o progresso estava na calha… e a inauguração era uma placa, ao forasteiro que chega, ou que chegas, num tom mais amistoso, menos coloquial, mas quê?, que forasteiro?, homem se se não fizer por eles então é que eles não mais chegarão, um pinheiro chagas, um politiqueiro, um patriota de pacotilha, era isso que ele era, o Moreno, esse visionário.
A placa lá estava, pronta para descorar ante o sol do pino do verão, que não chegara ainda pois para esses momentos de forte estio ainda se contavam trinta dias, e pronta igualmente para se desfazer em mil e um pedaços, quando viessem as gélidas friezas de janeiro. Ainda houve, o jeremias, o calmeirão, nisto tendo pensado ainda julgou por bem imaginar que se construísse uma capelinha para proteger a placa… forte contestação, lá roncou o chagas, mas tu estás louco ó homem então e o forasteiro quando chegasse, havia de ser belo, quando fosse para espreitar o interior da capela em vez do santo, olharia de frente para uma placa … e dali se vai o jeremias bem bem, sua excelência é que sabe, houve inclusivé um discurso, após a festa, já ao cair do dia, cheio de condecorações, benesses, mordomias e quermesses. Foram todos agraciados, ai lá isso, raios o partissem se não sabia ler, com uma voz possante e aflautelada, ao fim todos adormecidos, cambaleantes, para casa…
A vila a recobrar das fortes emoções, a noite caída já e pelas ruas, escurecidas, apenas os mortos, e já agora tambem se escreva que nem estes prestaram interesse algum à inauguração. Sem tempo e sem espaço, nem se deram ao trabalho de saber o que estava escrito na placa.
Manhã seguinte. O galo que canta e o Moreno mete os pés para fora da cama… ergue-se dum só estouro e chega-lhe uma dor de cabeça que o quase atira contra a parede. Empurra-se para a cozinha e senta-se à espera que chegue a mulher mais o pão e o queijo… grita, mulher, esta que ainda dormia, abre os olhos dum espanto e
Sabes!... raios, ontem, fizemos mal, só agora me lembrei, ninguém foi visitar o castanheiro! Maldito vinho, que povo este, quiseram deitar-se, mungir o sono e não pensaram sequer em mais nada, vai daí pumba, sobra sempre tudo cá para o mouro, ora esta, torna a vestir a farroupa, mulher dá cá os sapatos, vamos chamar esta gente toda, eram então cinco e quarenta da manhã, os olhares esbugalhados, o quê, apanhaste-lhe o jeito, outro discurso… ainda estás borracho, feita a contagem, faltava um, faltava o anão, só ali estavam cotorze almas, fora a louca e o militar, que esses não se encontravam recenseados… procurai o maldito anão, não pode estar longe, tem que se reunir a gente toda, então não é que nos esquecemos de visitar o castanheiro, e depressa, não vá um raio cair-nos… dois ou três olham o céu da manhã, limpo e já azul, dum dia quente, um quase estio.
Não se sabe como chega à praça um cão a guinchar. Que terá o bicho, assim aos guinchos logo pela manhã, aquele não é o cão do anão?, e olhe sua excelência que se engana o cão não guincha, ele chora. Estarrecidos, que noite havia sido aquela… o cão veio do caminho do castanheiro, topam a coisa toda… metem-se a andar até ao castanheiro, Jeremias foi o primeiro, em lá chegando, tapa os olhos. Vão tapando os olhos todos, até ficarem mudos e desaparecidos.
Desta feita ninguém abalara, nem o anão tivera a coragem de se escapulir pela cordilheira fora… de qualquer das formas, menos um, Susana! já podes arrumar o banco pequenino, aquele onde o anão se sentava. Quase todos choravam, duma forma ou doutra. Mas o que mais alto penava era o cão. Esse metia dó, o Jeremias, matem esse cão, e o moreno, madeireiro nas horas vagas, pega dum machado, ergue-o ao ar e quando o dobra, contra o vento, dá-lhe no pescoço e logo fica o silêncio, entrecortado pelo choramingar mudo das comadres…

Nuno Monteiro

As cidades invisíveis

Marco Polo descreve uma ponte, pedra a pedra.
- Mas qual é a pedra que sustém a ponte? – pergunta Kublai Kan.
- A ponte não é sustida por est a ou por aquela pedra – responde Marco, - mas sim pela linha do arco que elas formam.
Kublai Kan permanece silencioso, reflectindo. Depois acrescenta:
Porque me falas das pedras? É só o arco que me importa.
Polo responde:
- Sem pedras não há arco.


Italo Calvino, As cidades invisíveis, Editorial Teorema, 1990

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Porque vivemos demasiado o nosso castelo

Livrinho de cordel


Ouvi dizer que lá no alto, onde quase nasce o riacho, há uma gruta e que lá mora um militar. É verdade? Pois sim, dezasseis almas cá em baixo e já estou a contar com a louca e com a filha, mais esse militar de carreira que ao que dizem, aí está escondido. Ele julga que não há quem o saiba lá acima, acantonado, pobre louco. Chegou cá numa altura em que a cordilheira vomitava sangue… veio na calada da noite e lá se enfronhou nessa gruta… E de que vive? Oh isso não sei eu, mas pelos vistos, de muito pouco pode viver o homem. De muito pouco, pois essa é a verdade. Em especial o militar que, ao que se diz, foi um enforcado de guerra. Um quê? Um enforcado de guerra… chegou cá depois de o enforcarem, dos crimes, de ter matado e ter mandado matar gente por demais… a gruta onde vive, e o espaço envolvente, até às primeiras árvores, debaixo do arvoredo rasteiro onde ele anda, esse lugar, esse espaço é o purgatório! Não sabias, cada um de nós possui um pequenito espaço dentro do qual se pode mexer e que é o nosso jardim, um purgatório, enfim. Não te preocupes muito com a fome que ele possa ter, desconfio que não sente fome há pelo menos dez anos, que é o tempo em que sabemos que ele se move por lá. Então e essa guerra foi há dez anos? Foi. Como, então eu ainda estava do lado de lá da cordilheira… pois sim mas então tinhas quê vinte anos! Não se travam guerras com vinte anos… com essa idade só se é maroto e valdevinos… as guerras mudaram, agora só és exército se tiveres fome e se os teus te pedirem pão. E essas guerras só acontecem aos homens de trinta e de quarenta e de cinquenta… eu vi-o na noite em que chegou… vinha transformado num esqueleto. Diz-se que cortou carne dele para dar de comer aos filhos… aquilo foi uma carnificina. É como te conto, nessa guerra, a cordilheira deixou passar sangue para o lado de cá. Depois choveu longamente e as águas lavaram tudo. Só ficaram os fantasmas para contar a história.
Sou eu quem to diz, eu, Francisco Mortágua, se a água tudo apaga, as almas dos mortos aí estão para não deixar morrer a história. E tu, escritor, de que esperas… vai colando retratos no teu livrinho de cordel… não percas é tempo indo lá dentro da gruta, a escuridão é tão escura que chupa até a luz…
Nuno Monteiro

O momento e a nostalgia


Quando a casa está sossegada e eu mergulho nas músicas ela vem e aninha-se ao meu lado. Chega titubeante, como quem apalpa bem o terreno, aterra em cima da mesa… Move-se dentro de um novelo de cautelas, não quer incomodar. Mas depressa se instala e quando o faz então todo o espaço onde eu estou súbito é dela. Quando a casa está sossegada ela também está sossegada. Não tem medo de errar nem tem medo de lá morar. Olha-me e eu de imediato sei que é como se me perguntasse o que estás a ouvir? E eu respondo com outra questão também queres ouvir?… é quando ela move as orelhas para trás e das duas uma, ou vai fechando os olhitos até pousar a cabeça e mergulhar num sono leve ou, entretém-se a lamber uma pata e a outra pata, depois uma perna e depois a outra perna. Quando o faz, de vez em quando olha para mim e eu respondo não, hoje não. Ainda outras vezes fica olhando o ar numa perfeita nostalgia. Ou será que devo dizer que numa perfeita saudade? É que, por alguma razão astrológica, ela só o faz quando eu bebo do meu passado. E então eu fico pensando afinal quem é o gato e quem é o homem?

Nuno Monteiro

domingo, 25 de julho de 2010

Onde se apresenta o burrico


Levantara-se um vento que ecoava na cordilheira e voltava como um torvelo terrível que assombrava os telhados… o escritor encontrava-se recolhido, sentado à escrivaninha e pensava enredos, olhava os passados e entretinha-se com medo, teria medo? Ouve bater à porta, pancadinhas secas atende olá burrico és tu, estás com medo do vento? este vento é mau! Quer soprar as telhas abaixo… então diz-lhe o escritor, oh disso não precisas ter receio… a minha casa não é de palha… nem mesmo de madeira… essa é que era boa, tenho visto muita casa de pedra desmoronar! Com uma noite destas e com um vento assim! Não ouves?, até os mortos se encolhem. Acomoda-te, e então o escritor foi servir o burrico de aguardente, obrigado mas não me parece que vá ajudar, deve acalmar diz-lhe o escritor, o burrico entretinha-se esbugalhado olhando os livros que cresciam do chão, empilhados pelas bermas da sala, sem ordem, sem juízo. Os livros não precisam ter juízo. Andam por aí como que aos caídos, descabelados e de sandálias e mais não fazem que inquietar… são uns marotos os livros, sabes ler não sabes burrico?… aqui na terra nunca tivemos nenhum escritor e por isso a minha relação com os livros não pode ser muito funda. As minhas raízes são daqui e da cordilheira… esse altar maldito que nos tem feito tanto mal… o escritor faz uma cara circunspecta e pergunta, mal? Pois mal, muito mal, apesar de tu por lá teres andado a conspurcá-la! mal pois é ela quem rouba daqui as gentes enquanto vivas e outra vez mal pois é ela quem impede o caminho aos mortos, por isso tu os ouves por aí pelos cantos, como almas penadas… não encontram o caminho… metem-se todos aí aos magotes, conversando pelas esquinas, não comem nem dormem nem trabalham, apenas falam, confesso que por vezes gostaria de um pouco de silêncio… ó burrico, também não estás de bem com nada, se ventania é porque ventania, se se põe sossego então chegam a ti as vozes, não te rales com elas, também a mim me apoquentavam mas agora lido bem, as vozes indicam-me caminho, orientam-me nas minhas estórias, são de muita serventia.
Enquanto silvava em torvelinho, os dois ali enfiados, beberricavam à boca pequenina e a pouco e pouco caíam numa espécie de modorra, vives numa casa tão acanhada, um burro aqui não pode esticar-se, a tua casa é lá fora, esta é a minha casa e se te recebo espero bem que te saibas comportar. É pequenita, foi assim que eu a quis! Serve, está bem, está bem, não te zangues não disse para ofender, mas quando quiseres fazer-me uma casa, que seja maior… ó burrico, não estarás tu já um pouquito borracho? Ora bem, é sabido que os burricos não foram feitos para beber aguardente e de certeza que este com quem falamos não estará habituado.
De que falam os teus livros? Um interregno de silêncio antes da resposta, deves lê-los tu. Os livros falam para cada um de nós e o que eles me possam dizer a mim, deve ser algo diferente do que te dirão a ti… o burrico franze o sobrolho e pensa lá com ele agora quem beberica aguardente a mais… o escritor completa, as palavras e as frases são as mesmas mas os ventos que tas acomodam são diferentes… desconheces a importância dos ventos burrico, os ventos não servem apenas para deitar os telhados fora…
O burrico fica imóvel e ao fim diz sabes, escritor, ao fim, esta vila tem que te agradecer pois foste o primeiro que cá chegaste. Susana esperava-te. Espera-te. Embora ela ainda não o saiba, e ao menos, que esses livros que tu aí tens te possam ajudar a furar a cordilheira que é a muralha dela… quando o fizeres, ela parirá um filho e a maldição da cordilheira perderá força e então, só então, os vivos poderão viver como vivos e os mortos, poderão viver como mortos.
Assim como está, é uma barafunda, já te apercebeste que a estória que queres escrever não é num papel, embora ela se vá também escrever num papel… o escritor, pois sim, burrico, bem mereces a casa que te vou fazer. Sete anos o tanas, tu tens bem mais que sete anos, eu sou eu mais o meu pai e o meu avô e outros antes… comungo dos olhos e dos ouvidos dos mortos, embora eles me metam medo. E tudo isto sem igreja e sem redenção.
O vento amaina e o burrico retira-se. Com votos de boas escrituras! O nosso escritor fica sentado na escrivaninha todo o restante tempo. Deita-se quando o galo anuncia a alvorada. Não escreve nem uma linha. A meio da manhã está no campo a meter as sementes à terra. A cordilheira atira sobre a encosta um manto branco de nuvens. Farripas, um manto de abandono caído em breve sobre as vidraças.

Nuno Monteiro

sábado, 24 de julho de 2010

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Dezasseis almas


É tão fácil saber o que te terá acontecido! Oh isso dizes tu e volta-lhe as costas e sai de ao pé dele… pensa mais, dá conta de que foi rude, volta, julgamo-la arrependida… podes perguntar a quem quiseres. Ninguém te dirá. Ainda não há cá quem confie em ti… vives muito ao longe, observas mas de muito alto, e embora penses que cá tenhas passado o inverno… Isso não é quase nada… precisas muito mais . Diz ele, quem é o teu pai? Oh nem isso sabes! Para que foi aquilo lá em cima na cordilheira… quem julgas tu que queres impressionar? E uma vez mais o sorriso estampado na face, ela que não dá conta mas ele, esse sorriso dela lá está. Agora sim ela julga que está na hora e volta costas e sai disparada…
O escritor dizia lá para ele, já não consigo voltar as costas à aldeia. Agora sou parte deste mundo, partilho das dores e quando se meteu a pensar deu com o seguinte Susana é a única moça jovem por estas bandas… ainda não vi ninguém mais jovem que ela. E estas vozes que são presença assídua… serão de cá de dentro ou elas viverão mesmo cá na aldeia…
Todas juntas, as vozes diziam, cá na terra serás bem vindo, cá na terra serás bem vindo. E ele sabia que sim. Assim a conquistasse. Não à terra embora também à terra, bem, com a terra não se preocuparia pois assentara arraiais e isso lhe bastaria. Como era primavera, foi à venda e mandou que lhe vendessem sementes. Daria início a uma plantação.
Bom dia minha senhora! Era um quartilho de sementes de cebolas, tomates, feijões e assim… vou metê-las à terra e esperar que dêem… a mulher, agradavelmente bem disposta, condição assaz arredia daquelas paragens diz, faz muito bem, meu caro senhor, que nunca deveremos deixar estragar a terra e de seguida também ela para que foram aqueles sinais e logo de seguida com uma afectuosidade especial, que nós cá em baixo até pensamos que fosse nosso senhor. O resto da conversa foi sobre a terra e a sementeira. A velha havia ficado genuinamente bem impressionada com o forasteiro de quem, certíssimo, já ouvira falar. E sobre quem, obviamente, já falara.
Chegado a casa deixou a porta aberta e sentou-se à escrivaninha. Pegou no lápis e ficou longamente parado, à espera que algum rumo o sugerisse. Nada. Só a cordilheira o chamava. Ainda pensou em dar uma achega ao moleiro a perguntar pela Susana. Ao invés, seis da tarde, foi o sono quem o venceu. Nem a porta fechou. Dali a uma hora, sonhava, surgia-lhe uma cordilheira em forma de caveira que gritava para os da aldeia… todos daí para fora até ao final do Verão, todos daí embora até finais de verão. E de resto, até nem seria difícil uma vez que a vila, bem contabilizados todos os viventes não dariam mais que dezasseis almas. E nem uma igreja.
Nuno Monteiro

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Sacos vazios


Os meninos autistas são menos meninos. Têm menos escolas e menos livros, menos bibliotecas e menos mundo. Alguns, os afortunados, têm mais mãe e mais pai. Mas a mãe e o pai, por serem mais mãe e mais pai, são menos cidadãos. Choram frequentes vezes. Pedem em silêncio, são vozes em surdina ao bater da noite… tantas e tantas vezes batem à porta das instituições que cautelosamente fogem de mansinho. Vai faltando dinheiro… E os pais percebem, vão percebendo a cada minuto, infinitamente, quão deserto terá que ser o deserto. Outros meninos, os menos afortunados, os mais diferentes dentre os diferentes, sozinhos, vão-se apagando por esses acidentes…
Não é do sol nem é do céu. É do Homem que por mais que seja adulto, por mais que seja velho e sábio, ainda convive mal com a diferença, sobretudo com a diferença ultrajante. O ultraje e a ofensa são os grande detonadores desta espécie de cegueira… O pior problema é que não há mundos diferentes, não há uma liberdade perfeita. Faltam mundos no nosso mundo. A diferença, esmorece, paulatinamente, dos seus lugares… Por isso a morte se instala, alarde, entre nós, pequeninos, pouco educados.
Não aprende é burro, não aprende é burro, não aprende é burro, ninguém o quer, ninguém me paga para te aturar… deus me livre!, ao pobrezito a caridade e a misericórdia… cai no esgoto a pedir…
Que o mundo conviva com as sombras ou viva na noite para se aperceber dos espectros que murmuram. É este o salto civilizacional que resta dar. Mas não é este o salto que se apregoa… e enquanto persistirmos no erro de conduta, haverá uma data de meninos que, mesmo que o não sejam, serão tratados como diferentes e deitados fora, como sacos vazios…

Nuno Monteiro

Porque vivemos demasiado o nosso castelo


A terna face de Clara


Quem se desse ao trabalho de por ali passear, repararia, como não?, que não havia igreja. O inverno das noites infindáveis tinha passado. A terra de volta dele parecia renascida. Por sobre os carreiros as flores e por sobre as flores, as imagens. O escritor saía cedo de casa. Visitava os carreiros, aos pontapés às pedras, sentava e descansava, amiúde dormia e escrevia coisas do género aqui, meio caminho na encosta, pelo carreiro da cordilheira, eu não ouço as vozes que pulam pela aldeia. Deixara crescer uma barba grisalha, não havia espelhos mas adivinhava-se magro. As vozes não te metem medo. Por isso adormecia a meio da manhã, ou a meio da tarde, tanto fazia. Ninguém por ali passaria.
Mais a mais sabia não haver igreja e isso confortava-o. Julgava entender os vagares e as vozes da aldeia. Não se metiam com ele. A aldeia vivia quase vazia. Muitos mortos, poucos nascidos, ou quase nem um, quantos bebés ouvira ele chorar? Muitos trabalhos. E Susana?, como saberia de Susana? Onde perguntaria?… foi recapitulando o que julgava saber, Susana parecia tomar conta da taberna sozinha. Susana usava sempre do mesmo tom, usava sempre do mesmo trato, Susana parecia não ter mais ninguém dentro dela! O escritor achava aquilo estranho. Mas havia o sorriso. O escritor mandava perguntar se seria possível que um se apaixonasse apenas por um sorriso… Com isto olhava a cordilheira. Sentia calor e por isso procurava, instintivamente, água escorredoira. Límpida e mineral.
Ficava a pensar como havia ali chegado. Só ficaram com ele as pequenitas estrelas. Em breve daria o romance por terminado! Depois pensava qual quê! Que se não dá nunca o romance por terminado. O que viera encontrar naquelas fragas de ermida? Um tempo longo, um enorme ribeiro de cristal e a taberna…
Meteu-se a descer o ribeiro. Lá ao fundo encontraria o moleiro. Engraçado! Cheguei cá para escrever uma história, um punhado de histórias. Lentamente, quase imperceptivelmente, a montanha e a primavera, a cordilheira, tornam-me a mim um dos personagens! Estás ciente disso não estás! Espero que estejas pois de outra forma, Susana jamais te quererá! Súbito ali defronte dele a revelação. Assim ela lhe quereria. Então o escritor chegaria ao moleiro e dir-lhe-ia ó moleiro, deves dizer-me o teu nome! Assim mesmo, o teu nome! Só conheço o nome de Susana. Assim ela nunca me saberá daqui. Bah! Tudo o que tu sabes não é nada. É como se visses de muito longe. Olhas, mas do topo da cordilheira, como os abutres… não vês nada ao perto. Dir-te-ei o meu nome mas nunca o aprenderás. Não és daqui. Soube do poema. Não conquistas com poemas quem nunca se despediu… Susana está presa a uma luz que tanto a maltratou.
No dia seguinte, ainda mal amanhecido, o escritor metido pelo carreiro. Buscava a cordilheira. Tentava agarrar um sonho. Prometera um pouco de céu. Trazer-lho-ia pois então. Ao colo um abutre. Mãos, as dele. Cortadas de tanto arranhar o inverno. Lá chegado soltou o pano, fez uma vela, marchava e marcharia, de dia, com vento, a vela enfunava e dela se soltava um fumo branco, de cheiro a jasmim, e de noite, de noite a vela clamava, pelos montes, o nome dela, os lábios dela, o colo dela, a terna face, a de Clara.
Lá em baixo, ao lado da mó, o moleiro via primeiro que a taberneira. Susana chamava-lhe pai. A ele isso lhe bastava. Falar-lhe-ia? Devia, pois de outra forma, como saberia do poema…
A cordilheira viveria dentro dele, nunca mais o abandonaria, seria bastião e castelo. Uma língua de lanceiros alçada à escuta.


Nuno Monteiro

terça-feira, 20 de julho de 2010

Clara ainda não nascera


Faltava a Igreja. Passaria lá a ser a casa dele, do escritor. A única vila sem igreja , a vila sem almas. Um pouco antes da vinda ao mundo de Clara, o escritor quisera fazer-se escritor. Quisera escrever uma história longa, um romance clássico. Metera-se no carro e andara à procura, procurava-se a si, afastava-se de si, procurava a cordilheira que o traria outra vez ao mundo, vagueava pelo mundo quando foi dar com a aldeia mais isolada, a casa perfeita.
Era começo de inverno. Ameaça de frio e vento. Viu um enorme castanheiro e ao lado do castanheiro, uma pequenita casa de dois pisos, uma casa tão pequenina que parecia saída de um conto de fadas. Ao lado, um terreno. Óptimo. Na primavera aqui deitarei à terra as batatas e os tomates e as vagens e as beterrabas. Terreno murado, um muro degradado, comido pelos líquenes, o escritor pega na máquina fotográfica e vai a toda a volta, tirando fotografias, roubando pedacinhos. Olha para a casa. Ergue-se ao lado do enorme castanheiro. Mais baixa que este. Rústica, rés do chão e um primeiro andar, pequenita, não tem janelas.
Foi bater às portas perguntando de quem é a casa do castanheiro, de quem é a casa do castanheiro, até que um velho a casa e o terreno são meus quanto quer por ela e pelo terreno e assim se fez negócio. O escritor esfregava as mãos de contente…
Faltava a igreja mas ele que se não importava. Ouviu dizer. Despache-se a botar telhado e janelas ou morrerá de frio aí vem o inverno e com ele, a neve. O escritor meteu um telhado e uma placa e meteu ainda uma lareira. Correu a deitar abaixo dois pinheiros e com a melhor madeira ergueu uma escrivaninha. Os sobejos iam para lume, eram lenha. Dormia no chão, num catre. Ora bolas. Também lá faltavam as almas?, de que se ralaria se faltasse igreja? Pão. Precisaria de pão. Comprou um alqueire de milho moído, ao moinho, ao fundo da estrada, ao ribeiro.
Novembro. Papel tinha ele. Tudo pronto, pensava. Caía a noite. E com ela vinha o frio e o vento e a neve e então lembra-se de se ter lembrado irra falta-me a guarnição de aguardente. E vai daí ainda sai para trazer. Compra-a na taberna, foi assim que descobriu a taberna, quase por acaso, não fosse movido por uma imensa necessidade, quando sai da taberna leva na retina um sorriso muito escondido e uns olhos pretos, grandes, numa cara redonda que o olhava. Leva dez garrafas. Faz as contas ao de leve. Toca-lhe na mão. Dedos finos. Lembra-se de ter pensado que a beleza se esconde por detrás dos gestos. Guarda-a nos baixos, ao lado donde viveriam as ovelhas, quando as tivesse, paciência !,não se pode ter tudo. Tudo a seu tempo, Roma e Pavia…
Dezembro. A história vai avançada. Ele pensa. Estou mais magro. A história escreve-se à custa do meu pesar. Muito bem. Um romance clássico, nem mais. Por fora da porta a casa do escritor tinha um pequenito alpendre donde se olhava o enorme castanheiro, à direita e a casa grande, à esquerda. Em frente, lá ao longe, a floresta de carvalho que dominava a serra, a estradita serpenteando por entre os gnomos e os casulos de borboleta, o riacho, atravessado por duas pontes, uma ao lado da outra, estás enganado, há muitas mais… Dia 25. Lembra-se de que é natal. Resolve meter na história. Um beijinho à minha vida. E depois só para ele. Espero que ela compreenda esta minha loucura.
Janeiro. Nevada atrás de nevada. Cubro-me de camurça e enquanto escrevo, movo-me constantemente. Por vezes dou umas voltas pelo campo. A água gelada nos carreiros e nada de cores no chão. Só pedra e terra. Estás bem arranjado… e enquanto seguia pelos carreiros ouvia conversas em sussurro. O escritor fervilhava de escritos. Metia tudo no papel, como um sôfrego.
Fevereiro. Dia primeiro. Entra na tasca. Um ar quente e abafado. De respiração. Lá do fundo chega-lhe a voz da taberneira, tonitruante. Dirige-se para adonde ela anda e diz queria um trago de aguardente. E ia para dar os obrigados mas ela corta aqui os obrigados não fazem falta nenhuma… prove este bolinho mais o seu trago. O escritor repara no sorriso da mulher e resolve meter na história a taberneira era a mulher alta, os braços longos e sorridentes, um sorriso que contrastava com a terra com o frio com a neve. Um sorriso igual à beleza dos carvalhos, um casulo de borboleta.
Fevereiro. O tempo passava vagaroso, como os pássaros que circum-navegam o globo, armados em grupos, embutidos em bandos… O escritor enfrentava agora o frio para escrever na taberna, já antecipando o sorriso da taberneira. O vaivém de entradas e saídas, a azáfama que não era azáfama. Os homens mal chegavam, logo à entrada que se anunciavam com desgarrados ditos. Súbito conhecia o padeiro, o moleiro, o lenhador. Súbito conhecia a aldeia. Nem almas nem mulheres. Haveria mulheres que não se viam fora de casa. Perdão mulheres havia uma. As outras eram as mulheres dos outros… Todos chamavam Susana. Ele, logo pela manhã, acabado de chegar à taberna, dançava a modos que lhe desse a ela para rir, com os lábios temerosos, em dois lados da cara muito desiguais. O escritor lembra de pensar, a propósito do sorriso tímido, ela não sabe que é bonita. E Fevereiro fora, o escritor notava que se instalava, entre ele e a aldeia, um misto de desconfiança e de feitiço. Afinal os corpos tinham alma. E só agora reconhecia que, até então, da aldeia conhecia pouco. Por exemplo de quem era Susana filha? E quem a fizera taberneira? Nada. Demasiado Fevereiro. Muita noite. Uma luz coalhada de nuvens. Demasiada cinza no ar.
Quase fim de fevereiro. Dia de anos. Quantos? Quarenta. Só agora quarenta. Que tão devagar passa o tempo. Escreve freneticamente toda a manhã. Não sai de casa. Esconde-se dos próprios anos. Sente-se amorfanhar. Aqui ainda não sabem que eu faço anos hoje. Vai à taberna. Quer passar despercebido. Estaca no meio da banca. Sai-lhe como dum sino… Hoje quem paga sou eu. Rodadas à borla até à meia da noite. O que ele foi fazer. Logo se desatralaçam as línguas e se soltam os curiosos… Perguntam, mas que andas tu aqui a fazer? E ele responde, cortês. Nasce uma espécie de respeito. O escritor é porreiro. Vozes de passagem. O escritor é porreiro. Vozes que sobem as escadas, até aos quartos, comunicam às mulheres. O escritor é porreiro, faz anos hoje, temos cá um escritor, coisas assim, pela aldeia fora. As vozes que ele sempre ouviu. Falam dele.
Março. O degelo. O vento que sopra mais amaino. As plantas que despontam. Queres vir a minha casa! Apanha-a desprevenida, ao fim dum trago, ele ainda quente, da aguardente… ela nada responde, nem sorri. Olha-o um instante, com os olhos pretos, adornados. O escritor afasta-se, zanga, raiva, desprezo, tristeza, um pouco disto tudo. Os olhos dela substituíram o sorriso por uma espécie de tristeza. Escreve compulsivamente, pela noite fora. Não compreende a tristeza e espera que a escrita, a pausa pensante, o faça finalmente entender…
Com o moleiro! O que se passa com esta aldeia? O velhote que se ri… sabes pouco! És ainda por cá há pouco tempo. Mas isso cura-se. Susana não pode ir contigo. E o escritor não pode, e o moleiro não pode mas quer, oh como quer. Susana está morta. Simplesmente ainda não se deixou enterrar. Compete-te a ti, se lhe gostas do sorriso. Tens aqui um pão. Leva-lho. Entrega-lho de presente. O resto é com ela. Deixa que ela decida. Por enquanto está morta. Tu não vais querer… o escritor e a sua escrita lázaro também ressuscitou! E pega no pão e sobe do ribeiro e chega-lhe à porta e vai para bater e súbito estaca, deixa-lho à porta mais o verso:

Teus olhos pretos
E um sorriso pausado
Essa lua
É toda tua
Inteira, pousada numa espécie de vazio…

Sobe as escadinhas do seu alpendre. Mete lenha a queimar. Esquece. Não esquece. Escreve. Não deixa de escrever. Lá fora, a noite ainda bufa vento que levanta vozes. Mas já se cantam melodias. Os mortos saberão como renascer. A isso os conduzam os vivos…

Nuno Monteiro

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Pedro Páramo


“Pensava em ti, Susana. Nas colinas verdes. Quando lançavamos papagaios na época do vento. Ouvíamos lá em baixo o rumor vivo da aldeia enquanto estávamos por cima dele, no alto da colina, e, entretanto, fugia-nos o fio de cânhamo arrastado pelo vento. “Ajuda-me, Susana.” E umas mãos suaves apertavam as nossas mãos. “Solta mais fio.”
“O ar fazia-nos rir; juntava os nossos olhares enquanto o fio corria entre os dedos atrás do vento, até se partir com um leve estalido como se tivesse sido despedaçado pelas asas de algum pássaro. E lá do alto, o pássaro de papel caía às piruetas, arrastando a sua cauda de cordel, perdendo-se no verde da terra.
“Os teus lábios estavam molhados como se o orvalho os houvesse beijado.”

Juan Rulfo, Pedro Páramo, Obra reunida, Cavalo de Ferro

A seara no Verão


Movia-o o sonho de fazer terra boa da terra má. Era Pedro, pai de Clara. Não precisa só de força, faz muita falta o engenho e esse quem o dá é Susana. Um homem deve poder chegar a casa e pousar o produto do seu trabalho da tarde e
a presença dela inundando-o de lua, enquanto lá dentro, repuxa os lençóis brancos da cama.
A pequena aldeia estremecia ao luar, submergida em vozes e no sabor acre da laranja, Susana haveria de dizer, Pedro esse céu está hoje uma barafunda, anda deitar, aquece-me os pés e
ele passaria do alpendre para o quarto e em sussurro, a terra cheira a limão…
A vida decorre tão rapidamente e as chuvadas, os córregos de água, vão dar todos ao mesmo ponto vélico donde repuxam as raízes e adonde Susana, cumulada de branco, na aventura de mais uma colheita, pariria uma menina. Clara.

(a Juan Rulfo, finda a primeira leitura de Pedro Páramo)

Nuno Monteiro

domingo, 18 de julho de 2010

A borboleta que arranca a vida

Enquanto ela fervilha e alcança
A acácia negra habita os céus e estranha a doença
Ela não foge nem alcança – ((a vida é só um imenso salpicar de areia saltando da cachoeira))
Essa negra erva que galga esse delírio;
Esse colírio;
Esse pequenino pardal;
Asas puídas de um papel às cores (das minhas barbas ouço que se me rasgam as saias)

Como será possível deitar-se perdidas umas flores tão belas?
Onde foste buscar esse sorriso ?
E as tuas negras saias de folhos…
(Auroras verdes azuis culminando o vazio saltitando ao frio)
Por enquanto bordadas a linho!
Adiante, na berma do carreiro
Ao fim da noite
Um pedaço de calor te tocará
O ventre! (meu inteiro! como eu quero esse ventre quente esse suave ausente…)

Serás um chorrilho de água e um moinho de pedra molar
(habitarás insana uma pedra inculta! Uma muito longa noite…)
Olvidarás uma framboesa selvagem
Erguendo o vazio
Desses olhos de águia…

Despencará às loucas pelo céu acima
O azul celeste da borboleta que arranca a vida…

Rocamadour

retirado de: http://feminino-singular.blogspot.com/

Os ilhéus e os desertos


De facto há uma classe de heróis que vivem entre os demais. Não se sentem bem consigo, não são capazes de gerar, não congregam a felicidade dos infelizes, não são dados às conversas, não nasceram para viver… enfim, são homens depostos porque sabem, na vida seguem por outros carreiros, velam quando não devem velar, sinceram quando sabem não poder, choram nas alturas de riso e tagarelam quando deveriam morrer.
Esses sim, são os homens pássaro, mas ao invés destes, guardam o voo lá tão dentro, ao cabo de algum poço, onde nem eles chegam…

Nuno Monteiro

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Famas e cronopios

À vista de uma flor campestre

Que tem a flor assim de tão especial!
Não consegues ver! Então eu te direi! A flor encontrou a vontade independente! A flor não depende de alguma parede de betão para lhe refrear os impulsos. Não é imbecil nem supramente inteligente. Não não é. A flor, che, esta flor, é livre, cresce vigorosa como se sobre ela não impendessem desejos legítimos alguns. Ela é de alma.
E se eu lhe puser um pé em cima!
És bem capaz disso, sim senhor…
Foi então que um focinho de porco assomou à porta, pedindo de comer, com os guinchos estridentes que lhe são sobejamente reconhecidos… edgar ressumou, para dentro porco!


Nuno Monteiro

Um outro sol

O filho, uma vez que nascesse, não deveria deixar de lhe perguntar
Mãe?
Clara responderia
Sim
Enquanto um cheiro a jasmim invadiria toda a sala
Ela de vestido branco, os pés invadidos pelas sandálias, uma cadeira de baloiço, uma casita com alpendre, Clara no fogo do final da tarde ouviria…
O que é uma fotografia?
Ao fim de um momento diria…
Uma foto é quando tu te deixas captar por um pequeno pormenor, uma flor ou uma risada, uma portada ou uma face chorando, um poço de luz apontando a névoa…
Uma face chorando?
Pronto, sorrindo… mas sempre uma face, sempre um obrigado, sempre um até amanhã…
O filho, como uma borboleta, deveria desandar do alpendre para a terra vermelha cheia de sombras…


Nuno Monteiro

Do sentimento do inverso


Esses livros teus são uma merda! Quanto eu não daria por um papagaio de abas largas, um arco íris. Tinha uma tesoura na mão com a qual cortava os livros aos pedacinhos… recortava pequenos quadradinhos e atirava-os à sanita.
Nunca te entenderei, che!
Se eu tivesse um papagaio, usá-lo-ia numa noite de forte vento e evadir-me-ia…
Pois! Isso também não entendes… a máquina infernal que é o livro, o espalha brasas, a monumentalidade e a religiosidade…
Eu, se me fosse dado um momento, um terraço livre, e um punho de vento, iria com o arco íris…
Vais acabar por entupir a merda da sanita!
Melhor assim, mas que seja durante a noite, quando os cabrões dos guardas estiverem bem ferrados no sono… uma algazarra dos diabos, um chinfrim maluco… ele era assim, nem lia nem escrevia, mas sonhava as pequeninas situações que, pouco depois, tomavam lugar…
E contudo dizia, (a mim algo me diz que de propósito)
Esses teus livros são uma merda!
Por dentro de Edgar, medrava a vontade férrea de se agarrar à escrita…

Nuno Monteiro

quinta-feira, 15 de julho de 2010

a doida quer morrer-me

Insónia roxa. A luz a virgular-se em medo,
Luz morta de luar, mais Alma do que a lua…
Ela dança, ela range. A carne, álcool de nua,
Alastra-se pra mim num espasmo de segredo…
Tudo é capricho ao seu redor, em sombras fátuas…
O aroma endoideceu, upou-se em cor, quebrou…
Tenho frio… Alabastro!… A minha Alma parou…
E o seu corpo resvala a projectar estátuas…
Ela chama-me em Íris. Nimba-se a perder-me,
Golfa-me os seios nus, ecoa-me em quebranto…
Timbres, elmos, punhais… A doida quer morrer-me:
Mordoura-se a chorar - há sexos no seu pranto…
Ergo-me em som, oscilo, e parto, e vou arder-me
Na boca imperial que humanizou um Santo…

Mário de Sá-Carneiro

retirado de: http://cortenaaldeia.blogspot.com/2010_05_01_archive.html

quarta-feira, 14 de julho de 2010

O vento rangendo o castelo


Clara pisava a relva quando
(O vento, só podia ser o vento, arrastando as nuvens)
Morreu o jardineiro
E Clara, move os pés da relva
O quê?
Não sabes… essa relva que pisas… morreu! Morreu o jardineiro!
E Clara, sentiu dentro dela a pele que se dilacerava, voltou a pisar a relva, que tola, que a relva é para ser pisada… o vento que a invadia com imagens do jardineiro, de manhã, um chapéu de palha puída, passos curtos e vagarosos, um homem muito calado
Bom dia!
Bom dia menina.
E havia um travo à mistura com o cumprimento que Clara sabia ser da idade… a idade é uma puta! Não ando para aqui a arrastar-me, pois não, não ando pois não… Ora claro que não.
O vento uma vez mais, rangendo as portadas, Clara sente uma indisposição, é quando o vento lhe diz… a menina não estará grávida? E uma flor, muito vermelha, escarlate, pisa mesmo ao lado do pé!, Sorri-lhe.
Clara responde ao sorriso. E sente que deve ao jardineiro que trabalhou até à hora da morte…

Nuno Monteiro

DESERTO

Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua


Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.



Sophia de Mello Breyner Andresen

retirado de: http://ruadaspretas.blogspot.com/2010/07/sophia-de-mello-breyner-andresen.html

Porque vivemos demasiado o nosso castelo

Un ascenso fulgurante


(...)
A 25 años del primer libro publicado por Bolaño (el juvenil Consejos de un discípulo de Morrison a un fanático de Joyce, escrito junto a Antoni García Porta), el prestigio del novelista chileno casi no tiene parangón en el mundo de las letras hispanoamericanas y su impacto ha sido comparado con el que produjo García Márquez con Cien años de soledad.

Así sostiene la académica neoyorquina Sarah Pollack: “editores, críticos y lectores norteamericanos parecían estar esperando la aparición del sucesor de García Márquez, una nueva figura-autor alrededor de cuya persona y obra pudiesen establecerse los términos de una nueva clase de ficción Latino Americana…. El mercado literario actual busca nombres que puedan convertirse en marcas y cuyas vidas sean de igual o mayor interés que las obras que producen. Yo podría aventurar que en 2007, con la edición inglesa de Los detectives salvajes, todas las apuestas apuntaban a Roberto Bolaño”.

Pollack ha escrito un notable ensayo (recién publicado en la revista Comparative Literature de la Universidad de Duke) sobre la recepción en Estados Unidos de la obra de Bolaño y sobre la forma en que los norteamericanos “leen” a los autores que escriben en español. Para comprender la manera en que los medios contribuyen a crear autores que a la vez son figuras universales, compara los casos de Bolaño y García Márquez y su análisis parte con dos hitos –a su juicio claves– ocurridos en 2007: en octubre, Oprah Winfrey anunció que El amor en los tiempos del cólera, del narrador colombiano, se integraba a su popular club de lectura (de inmediato se imprimieron 750 mil copias del libro), mientras que en diciembre The New York Times elegía a Los detectives salvajes como una de las 5 mejores novelas del año, algo insólito para un autor de habla castellana. La propia Winfrey recomendaría más adelante otra novela de Bolaño, 2666. De esta manera, la bandera de la literatura latinoamericana pasaba del Nobel caribeño al chileno fallecido en 2003. El hombre que criticó a las estrellas del boom se convertía, de forma póstuma, en su nuevo estandarte. Un proceso que, como dice Pollack, ha sido “impresionante pero no inexplicable”. “De hecho –agrega– una cantidad apreciable de fuerzas económicas y estrategias de marketing se han combinado y fusionado… El genio creativo de Bolaño, su atrayente biografía, la experiencia personal durante el golpe de Pinochet, y finalmente la muerte por una insuficiencia hepática a los 50 años, el 15 de julio de 2003, así como la categorización de algunos de sus trabajos como novelas sobre dictaduras del Cono Sur, todo eso ha contribuido a producir un Bolaño bien situado para la recepción y el consumo en EE. UU. y de cierta forma anticipó la lectura de su obra que se ha propagado en ese país”.

Sin desmerecer el talento de Bolaño, Pollack establece las pautas con las que el autor chileno ha sido interpretado en Norteamérica, partiendo de la base que en la nación de Melville se estima que apenas un 3 por ciento de todos los libros publicados corresponden a traducciones. Por lo mismo, la irrupción del autor de 2666 en EE. UU. es una hazaña de proporciones. Siguiendo la tesis de Pollack, el destacado narrador salvadoreño Horacio Castellanos Moya –quien fuera amigo del escritor chileno– publicó una crónica en La Nación de Argentina, ampliamente comentada y replicada en The Guardian, en la que sentenció: “detrás de la construcción del mito Bolaño, no sólo hubo un operativo de marketing editorial sino también una redefinición de la imagen de la cultura y la literatura latinoamericanas que el establishment cultural estadounidense ahora le está vendiendo a su público”.

A la discusión se sumó también el mexicano Jorge Volpi, quien en una conferencia sobre el futuro de la ficción latinoamericana entregó algunos matices: “mientras leía los artículos y reseñas publicados en los medios literarios norteamericanos sobre Bolaño, continuamente me sorprendía que la lectura de los estadounidenses, especialmente la reinvención de su biografía, no tenía casi nada en común con la recepción que tuvo en el mundo hispano. No creo, como dicen algunos críticos y algunos de sus amigos, que el Bolaño de EE. UU. sea una falsificación, un producto de marketing, o un simple malentendido: al contrario, quizá el poder de sus textos radica en las diversas interpretaciones, a veces contrastantes u opuestas, que es posible extraer de sus libros”.


Historias falsas

Entre los aspectos más controvertidos que han explotado los medios anglosajones sobre la vida de Bolaño está su supuesto consumo de heroína, que incluso llevó a decir al escritor Jonathan Lethem en un artículo sobre 2666 publicado en New York Times que el chileno había muerto “de una enfermedad del hígado atribuible al uso de la heroína en años anteriores”. Como cuenta el crítico estadounidense Scott Esposito, fue Daniel Zalewski, escribiendo para The New Yorker, quien afirmó que Bolaño había sido adicto a la heroína, un dato que luego apareció en medios como The Nation, N+1 y The Millions (aparte de la nota ya mencionada en el New York Times), y que sirvió para explicar desde los problemas dentales del narrador hasta su afección hepática. El asunto fue desmentido en forma tajante por su viuda, Carolina López, y por su amigo, el español Enrique Vila Matas. Además de haber escrito un relato sobre un yonqui, que algunos leyeron como autobiográfico, la confusión nació probablemente debido a declaraciones de Bolaño en que aseguró que “a los 20 años, para mí ser poeta significaba ser revolucionario, y estar completamente abierto a todas las manifestaciones culturales, sexuales, y a experimentar todas las drogas”.

Jorge Volpi, por su parte, contrasta el enfoque que le han dado a Bolaño los críticos norteamericanos, que destacan su aura maldita, con el que le dedicaron en su momento los medios hispanos. Incluso, algunas reseñas de diarios estadounidenses han desarrollado la idea bastante errada de que el chileno nunca fue comprendido por sus contemporáneos y que murió luchando contra la pobreza. “Más allá de las discusión sobre el supuesto consumo de heroína, ninguno de los críticos hispanos hizo un punto enfocándose en su vida, como la de un “rebelde, exiliado y adicto”. Si esto no fuera suficiente, durante su última década Bolaño nunca vivió la urgencia de la pobreza, sino la modesta vida de la clase media suburbana, una vida infinitamente más plácida que la de otros inmigrantes latinos en Cataluña. Sin duda, la relación entre vida y obra produce mayor atractivo en los EE. UU. que en ninguna otra parte del mundo… El énfasis en su supuesta o real penuria ha jugado un rol clave en interpretar –y obviamente, en vender– sus libros”, afirma el autor mexicano. Y concluye: “el mundo literario norteamericano ha construido un rebelde radical a partir de un simple malentendido: confundir al narrador en primera persona con su autor. Bolaño, que durante los últimos años tuvo una vida más o menos normal, no llena de lujos, pero arropada por una casi simultánea fama… ha sido transformado en una de esos furiosos escritores que, enfrentando el desdén de sus contemporáneos y a través de una fiera lucha personal, llegan a convertirse en artistas trágicos, héroes póstumos: un nuevo ejemplo del mito del self-made man. Bolaño como el último revolucionario o el heredero de Salinger o de los beats: no es coincidencia que la otra figura latina exaltada en los EE. UU. de ese modo sea el azucarado Che Guevara de Benicio del Toro y Steven Soderbergh. Ambos han llegado a ser, en sus versiones estadounidenses, bastiones de la ferocidad y la rebeldía, profetas equipados con una fe ciega en sus respectivas causas; en uno, el arte, en el otro, la política”.
Marcelo Soto, retirado de: http://garciamadero.blogspot.com/

terça-feira, 13 de julho de 2010

O dono do sol

Foi lagarta até ao dia em que experimentou escrever. Os sujeitos que o rodeavam olharam aquilo mal… deixavam de lhe falar… opá olha que te matas. E não é que quase se finou. Meteu-se em casa. Durou a metamorfose quase dez anos. Quando ao fim de todo esse tempo abriu a porta de casa, dele só se pressentia uma melodia fininha, muito periclitante, uma escrita magra, um campo de gramínias que retumbava ao som do vento. O pior foi quando se lhe soltaram as asas e da lagarta se fez meteoro…

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Porque o momento é de um cronópio...

Cronópios e famas

Vou fazer como o Bolano e, imaginando que estamos numa página de um livro imaginário, perguntemos:

O que é um cronópio!?

(e já agora, por que raio é que este meu blogue não poderá ser também um livro! Um livro digital...)

Nuno Monteiro

domingo, 11 de julho de 2010

Um instante de prata


O sol surgirá em breve e com ele, eu acabarei a minha noite. Pousarei o lápis e depois de um trago de café, sairei para o trabalho, carregada de saudades, farta de sono. A minha face encher-se-á de olheiras mas eu nada me importarei. Pois sei que, bem lá no fundo, da noite escura e vaga, trarei um bebé no ventre. E esse reduto me bastará! As minhas ovelhas balem incessantemente ante a pureza da manhã. Toda eu serei um impulso eléctrico. De tarde, encostada a uma parede branca muito alta, deverei dormir por uns instantes. Dormirei com um olho à cautela e uma mão liberta presa à máquina, de um momento para o outro o instante chama-la-á.
Pensa Clara que nunca se construirá uma lente que fotografe igualzinho ao que o olho vê…

Nuno Monteiro

sábado, 10 de julho de 2010

Josep Carreras/Lluis Llach: "El cant dels ocells" (The Song of the Birds)

El hombre muerto, Horacio Quiroga

"El hombre intentó mover la cabeza en vano. Echó una mirada de reojo a la empuñadura del machete, húmeda aún del sudor de su mano. Apreció mentalmente la extensión y la trayectoria del machete dentro de su vientre, y adquirió fría, matemática e inexorable, la seguridad de que acababa de llegar al término de su existencia. La muerte. En el transcurso de la vida se piensa muchas veces en que un día, tras años, meses, semanas y días preparatorios, llegaremos a nuestro turno al umbral de la muerte. Es la ley fatal, aceptada y prevista; tanto, que solemos dejarnos llevar placenteramente por la imaginación a ese momento, supremo entre todos, en que lanzamos el último suspiro. Pero entre el instante actual y esa postrera expiración, ¡qué de sueños, trastornos, esperanzas y dramas presumimos en nuestra vida! ¡Qué nos reserva aún esta existencia llena de vigor, antes de su eliminación del escenario humano! Es éste el consuelo, el placer y la razón de nuestras divagaciones mortuorias: ¡Tan lejos está la muerte, y tan imprevisto lo que debemos vivir aún! ¿Aún...?


No han pasado dos segundos: el sol está exactamente a la misma altura; las sombras no han avanzado un milímetro. Bruscamente, acaban de resolverse para el hombre tendido las divagaciones a largo plazo: se está muriendo. Muerto. Puede considerarse muerto en su cómoda postura. Pero el hombre abre los ojos y mira. ¿Qué tiempo ha pasado? ¿Qué cataclismo ha sobrevivido en el mundo? ¿Qué trastorno de la naturaleza trasuda el horrible acontecimiento?


Va a morir. Fría, fatal e ineludiblemente, va a morir.


El hombre resiste -¡es tan imprevisto ese horror!- y piensa: es una pesadilla; ¡esto es! ¿Qué ha cambiado? Nada. Y mira: ¿no es acaso ese el bananal? ¿No viene todas las mañanas a limpiarlo? ¿Quién lo conoce como él? Ve perfectamente el bananal, muy raleado, y las anchas hojas desnudas al sol. Allí están, muy cerca, deshilachadas por el viento. Pero ahora no se mueven... Es la calma del mediodía; pero deben ser las doce. Por entre los bananos, allá arriba, el hombre ve desde el duro suelo el techo rojo de su casa. A la izquierda entrevé el monte y la capuera de canelas. No alcanza a ver más, pero sabe muy bien que a sus espaldas está el camino al puerto nuevo; y que en la dirección de su cabeza, allá abajo, yace en el fondo del valle el Paraná dormido como un lago. Todo, todo exactamente como siempre; el sol de fuego, el aire vibrante y solitario, los bananos inmóviles, el alambrado de postes muy gruesos y altos que pronto tendrá que cambiar..."


retirado de: http://finaestampadeunadepresiva.blogspot.com/

sexta-feira, 9 de julho de 2010

As minhas tarefas...


Escrever custa cada vez mais… é um trabalho de louco… sinto que preciso condenar mais e mais tempo à leitura… é isso, o trabalho de escrever cansa tanto… já a leitura, pausada e funda, é tão leve. Um enorme bafo quente do deserto, donde não chega barulho algum…

Só para se saber que ando atarefado, aqui fica uma lista de livros que tenho para ler:

A volta ao mundo em oitenta dias, Julio Cortazar; Cavalo de Ferro
Manuscrito encontrado em Saragoça, Jan Potocki, Cavalo de Ferro
Henri e Cato, Iris Murdoch, Cotovia

Sendo que, ainda não acabei de ler Suttree, Cormac McCarthy, Relógio de água


Nuno Monteiro

vento


quinta-feira, 8 de julho de 2010

A linha de cumeada


O olhar é tímido, acompanhado dum frenético bater de asas… o dia abanca neste preciso instante… os olhos são carícia trauteada de caril, lá de trás dos montes ouço quando o recorte dos pinheiros pintam a montanha de concórdia. Também ela se julga dona de si quando o abraça, quando o envolve e acaricia… será só surpresa ou haverá um clarão por detrás do sol… ingénua, ter-lhe-á tocado ao de leve… todo o torso dele se faz ao mar, brioso de calor.
Clara, sorri ao bebericar da chávena de café e ao ostentar, no olhar, o espectro da noite que passa para trás do dia…
Diz-lhe, queres voar?
Fica à escuta, muito parada, de pé, longamente.

Nuno Monteiro

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Ricardo Piglia - a Cidade ausente

Intermitentes nas vidas do louco


Que história é a deste país que não passa das indigências?! Proponho um corte radical na educação. Entreguemos às nossas crianças uma noite e um livro. Consumo mínimo. Todos os dias uma noite e em cada noite uma nova cantiga como uma dança guinada… e imperioso, antes que me esqueça! Cortemos as televisões aos políticos… os holofotes das televisões aos políticos…

Com tachos a menos e cantos de sereia, devidamente iluminados por uma certa ideologia do acreditar, cada novo português poder-se-ia refazer, do lado do novo mundo, onde há menos vícios…

Livreiros? Livrarias? Poucos. Há muito se pediram exéquias fúnebres.

O que é um português?
Um tudo de escape.

E a escrita?
Uma medonha viagem de barco, amotinado, fúnebres, os pirilampos.

E esta república! O que lhe resta?
Ia para dizer que lhe resta a velhice, mas aqui entre nós, nem isso pois esta nossa república morreu ontem de madrugada.

Nuno Monteiro

Combate de espadas


Diz-me Clara…
que poesia haverá nas palavras que colhes, com tanto cuidado, logo pela manhã, quando o mundo é sereno e todo o teu peso, vaza por entre as nuvens?
Nesses instantes que me aspergem, eu tenho comigo todos os olhos do mundo. Não vês o que isso significa… sou, então, a mulher mais triste do mundo. A mais baixa. A mais feia. A mais má. Toda a poesia me rouba de mim.
Contudo a pequena borboleta rasa as tuas pernas…
Sim! e quanto vento ela faz. Na verdade é a cor da borboleta que me faz olhar o mundo.
Talvez tenha sido ela quem, um dia, numa praia de chuva, te fez pintar os olhos! Sim, com mil raios, era inverno, e o badalo da maré e a vaza da torre de igreja apartaram-me a minha face da minha ira… serenei tremendo de frio… lembro tão bem… no areal em frente havia dois cavalheiros que se batiam
Com que arma
Ora com que arma, espadas, com as quais escreviam no sangue um do outro…
Nuno Monteiro

terça-feira, 6 de julho de 2010

Diálogo

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- O que é o tempo?
- Um martelo de plumas.
.
- O que é a vida?
- A eterna ausente.
.
- O que é a família?
- Uma catástrofe. Loucura circular histérica com convulsões de penitência.
.
- Quem é Deus?
- Um pobre diabo.
.
- Que faz ele?
- Sobrevive sempre às suas vítimas.
.
- Onde mora?
- Num tinteiro?
.
- O que é Portugal?
- Uma cave cheia de mofo.
.
[Ernesto Sampaio e João Rodrigues, Cadavre exquis, in Ernesto Sampaio Feriados Nacionais, Fenda, 1999]
retirado de: http://ofuncionariocansado.blogspot.com/

A rua

A rua

Era Clara, ao final do dia, fugindo da praia, entrando magra pelas ruelas das vidraças partidas, vermelhas e verdes e negras, choradas. Levava na mão, folhas escritas, retratos incompletos, pedaços de vozes, pinturas e partituras, doenças, suores. Ao cabo da rua esperava-a uma tela cinzenta onde Clara se diluiria. Por enquanto sentia sede. Uma franqueza subia a calçada e Clara, moça ainda, envergando uma camisa de marinheiro, azul às riscas brancas, sorria às caldeiradas que cheiravam das janelas. Dali a exactamente dez minutos, caminhando, chegaria ao pé duma cadela. Debruçar-se-ia apenas para descobrir que a cadela estaria morta com um tiro no crânio. Chora, acto contínuo. E borrata a camisa que depressa encapela, abandonando os modos do Pacífico…
Clara não saberia nunca mas chorava sempre que via, na rua, algum animal abandonado. Que monstro é capaz de matar uma cadela com um tiro?

Nuno Monteiro

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Terebentina


Um borratão vermelho olhava na minha direcção. Sabia quem eu era. Vai daí pergunta
(eu percebia um ligeiro tremor no olho esquerdo! Seria medo?)
Terebentina, quem era Terebentina?
Edgar responderia frenético, a minha água, Terebentina era a minha chuva interior.
De seguida edgar escarraria no chão, ao lado dos pés dele e afastar-se-ia. Subisse a rua mil vezes e ainda assim não se veria livre do borratão vermelho. Merda, como estou cansado… abordando um transeunte perguntaria ó pá, tens um ciagarro e o gajo a modos que de mau humor, eu, aceitando, nem um obrigado. Risca um fósforo e fuma-o dum trago. Mas enquanto o faz olha a cidade vestida de sujo. Pisca muito os olhos como se não fosse feliz. Edgar escarraria ainda outra vez e uma patrulha de polícia afastá-lo-ia dali…

Nuno Monteiro

Espadas


Diz-me Clara…

que poesia haverá nas palavras que colhes, com tanto cuidado, logo pela manhã, quando o mundo é sereno e todo o teu peso, vaza por entre as nuvens?
Nesses instantes que me aspergem, eu tenho comigo todos os olhos do mundo. Não vês o que isso significa… sou, então, a mulher mais triste do mundo. A mais baixa. A mais feia. A mais má. Toda a poesia me rouba de mim.
Contudo a pequena borboleta rasa as tuas pernas…
Sim! e quanto vento ela faz. Na verdade é a cor da borboleta que me faz olhar o mundo.
Talvez tenha sido ela quem, um dia, numa praia de chuva, te fez pintar os olhos! Sim, com mil raios, era inverno, e o badalo da maré e a vaza da torre de igreja apartaram-me a minha face da minha ira… serenei tremendo de frio… lembro tão bem… no areal em frente havia dois cavalheiros que se batiam
Com que arma?
Ora com que arma, espadas, com as quais escreviam no sangue um do outro…

Edgar

Silêncio
Um não contundente ao fim da vista
Uma folha que esvoaça por cima da lufada de ar
Uma pistola
Uma agonia
Terebentina, a cadela, não pára de latir (talvez assustada)
Ele que a não ouve, não a poderá nunca ouvir
Face rubicunda, um musgo verde cinzento brotando da humidade do dia
Dentes serrilhados, há muito mortos
Um fogacho de luz anuncia o inverno
Outra vez a pistola
Como é que ele descobriu o momento
Do som do trovão?
Terebentina cai ao chão
A língua encostada à terra

Ele
Silêncio
O mundo jaz a seus pés, iracundo, nunca lhe dando nada.

Baldes e baldes de chuva enchem os carreiros de pedras e lama…


Nuno Monteiro

A serpente


Soberba. Muito grande. E à volta só deserto, cheio de cactos. Uma estrada que trazia e levava, esburacada, quase sem asfalto. Um homem de lata e uma serpente. Vermelha e negra que dava pelo nome beltenegros; uma escrita organizadinha, com uivos nos cirros dos montes e carreiros ainda desabitados e portas por fechar e um cheiro impregnado em tudo. Flores, dentro da cidade, em pequenos canteiros. Um único hotel. Uma noite. Chega um criado que lhe abre a porta. A moça atira a perna para fora do carro e o sapato choca com o chão. Ele dá-lhe a mão e ajuda-a a levantar-se. A moça diz-lhe ao ouvido: leva-me até ao elevador. Ele assim faz. Passada a recepção, a mulher, à entrada do elevador despede-se vens buscar-me amanhã? Ele anui. Fecha-lhe a porta e fica olhando vendo-a subir. Já no quarto tira o corpete e comete a insensatez de olhar pela janela. Vê como a cidade é pequena e pára silenciada sobre um telhado escarlate. Esconde-se por detrás dos cortinados. Não quer que o deserto a olhe. Há uma enorme tempestade de areia e de pó que se revolve dentro dela. Clara apresta-se a adormecer. Clara não é a fria e desabitada serpente que o deserto viu chegar. Mas a cada instante que passa, a cada enxurrada que passa, se sente mais longe dela própria.


Nuno Monteiro

As pétalas envelhecidas

As pétalas envelhecidas

Bem me quer, mal me quer. Rugas, plásticos e cabelos vazios. Junça que me empolga as pernas e,
A minha praia sem ninguém, a não ser as impetuosas bailarinas que grasnam incessantemente.
No quarto de hotel, um silêncio amedrontador. Clara está sozinha, sente-se mal, uma terrível indisposição tolhe-a e quase a eclipsa. Gritaria quase sem forças… todas as idades do mundo! Todas as incompreensões do mundo! Todas as interjeições! A porta do lado nascente, do oceano, fechada, impede a chegada do murmúrio fresco… ao fogão, a panela cozerá a sopa de ervilhas. Abrirá as páginas de um livro que a magoará! Sulcará ao longo de cabelos que não serão nunca os dela! Obrigará, dançando à lua, algum estranho a abraçar-se ao seu colo! Regará jardins de fruta e de temperos… obliterará da visão as praias nuas e vazias do inverno! Rasgará dalgures o quadro inteiro, (laudatório, esse vento) belicoso como ela.
Mas mesmo sem forças, Clara nunca se deixará cegar ou engordar. Desliga a panela do lume e afoga-se no sono. Na manhã seguinte, os mesmos pratos de plástico, servidos aos molhos, por sobre um jardim. E uma sombra perfumada, atraente, a bergamota…

Nuno Monteiro

domingo, 4 de julho de 2010

Invocação


As nuvens viajavam lá pelo alto, longe, tão distantes dela. Marulhavam no mar imenso da eternidade. Putas! Nuvens que não envelhecem. Talvez essas nuvens sejam, tanto ou tão pouco, o que em mim nasceu errado… não sei mais. Não vejo nem aclaro mais que o céu imenso, azul, distante, frio. Em direcção ao vazio. Um calabouço. Um calabouço de velhice. Peço, então, em consequência, aos anjos e santos, que me destituam de razão. Ou que me instilem veneno, maldito, intravenoso. Acordarei para a noite, depois. Vender-me-ei ao diabólico satã. E de dia, enquanto a invernia adoça os amantes ou os cheira a mar, eu, no meu imenso e glorioso vazio, prescindirei de tudo, até de ti, pássaro, que te idolatras por detrás do sol.
(Clara, enquanto subia a avenida, deixando para trás o eco do mundo)

Nuno Monteiro

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Personal Jesus

Serpenteio mas não me desvio


Esse bem poderia ser o seu epitáfio. Contudo não o será nunca. As cobras nunca morrem. Mesmo quando são devassadas na sua mais eterna glória, ainda que desalojadas de toda a honra… é claro que eu não estou a falar das simples cobras do centeio. Perder-me-ei nesses ímpios de algodão, nessas quiméricas estufas um tanto quanto salgadas. Algures num chão, um sapo datém-se à espreita. Espera paciente, o bufo. Na hora certa cuspirá veneno e trará por terra todos os sonhadores. Clara sonhava. Dormia inquieta, profundamente por fora dos pés de cigana… havia uma mansão e muitos burros mascarados. Havia longos túneis e nascentes de água. Havia um pequeno jardim botânico e um alaúde que alumiava tudo com uma luz amarelenta, monárquica.
Em breve acordaria sobressaltada… no seu sonho, uma cobra azul acabara de comer o sapo. A borboletita catita levantar-se-ia e caminharia ao longo do corredor. Cabelos despenteados e busto indemne, mármoreo, seráfico.
Conhecia tão bem os caminhos que a levavam para fora dos pauis…

Nuno Monteiro

À sombra do vulcão


Ou como quando Clara lhe perguntou onde deixaste os meus filhos e em vez dele foi a baleia que falou lá do fundo das eternidades oceânicas, os teus filhos vivem nos escritos dos poetas e então, mulher, não sejas fraca nem cínica nem ordinária nem inconstante! Os teus filhos não serão sempre filhos teus. Em breve casarão e terão mulheres …

(…)
Tanto lhe disse a baleia que Clara desatou a chorar. Nem o tempo nem o espaço dela se importaram. O monólogo continuaria para uma e outra e outra e outra e …

Encontrar-nos-emos outra vez… ao vagar do dia.

Nuno Monteiro

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Hemisfério Sul


Ela, no seu imenso sorriso, age como se num porto, acolhe no seio, águas calmas, todos os barcos, as pequenas escunas há tanto perdidas, os magníficos iates irónicos, as naus e os galeões, os moderníssimos transatlânticos, os vapores do mississipi, os cargueiros da minha alma, todos os barcos, qualquer calado, qualquer equipagem, qualquer carga.
Ela, no seu imenso sorriso, é o umbigo do mar. Clara, nesse pacífico vagar, vivera empregada num bar de marinheiros. E durante todo esse tempo, quando olhava, não via homens, só lia livros. Não se ausentava sem que os lobos do mar, quedassem infindos, segurando Ouma, mareando às Maurícias. Sorriria, ao longo de muito tempo, ardendo sem arder, servindo sem servir. E passava, azálea, vistosa, ao de leve, as pontas dos dedos pelas lombadas dos livros. Encontraria uma barca que a levaria de viagem… Esparramada, riria ruidosamente. Meia noite. Bebericava a última cerveja. E o contorno dos lábios adormeceria, exalando um perfume quente, trópico, fruta. Adão, chegando, fecharia a porta e arrumar-lhe-ia o livro, entrançaria as pernas dele nas pernas dela e … assim se serve, do barco, o livro…
Esse teu porto, essa espécie de laguna cristalina é toda a tua virtude.

Nuno Monteiro
“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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