terça-feira, 7 de outubro de 2008

Pablo



Tem automóvel, uísque, jornais,
Elegem-no juiz e deputado,
Condecoram-no, é ministro,
E é ouvido no Governo.
Ele sabe quem é subornável.
Ele sabe quem é subornado.
Ele lambe, incensa, condecora,
Adula, sorri, ameaça.
E assim se esvaziam pelos portos
As repúblicas exangues

José Cardoso Pires bramava “República dos corvos” pejada de clones cornetas.

Onde vive, perguntareis,
este vírus, este advogado,
este fermento dos dejectos,
este nojento piolho sanguíneo,
que engorda com o nosso sangue?



E morre glorioso, “o patriota”
Senador, o patrício eminente,
Condecorado pelo Papa,
ilustre, próspero, temido,
enquanto a trágica raça
dos nossos mortos, os que mergulharam
a mão no cobre, arranharam
a terra profunda e severa,
morrem humilhados e esquecidos
metidos à pressa
nos seus caixões fúnebres:
um nome e um número na cruz
que o vento sacode…

Pablo Neruda in Canto Geral do Chile

Encontro-me, igual a mim próprio e quase como sempre, à soleira da minha casa da minha “Isla Negra”
-quantas saudades tuas Neruda!
falando com ninguém ensandecido pela brisa de mar e acabrunhado com os laivos de vinho que partilho com as ondas que na sua suave rebentação me recordam a vida
-ou antes as voltas e reviravoltas da vida de nós todos
dos que morreram de pé, dos atraiçoados, dos íntegros e puros e então, na esteira desses desejados absorvo os ares e os odores deste oceano de azul
-tens os teus livros que te não deixam calar Neruda!
imóvel e absorto nos meus livros que são os meus heróis e de costas voltadas para o mundo, de olhos e todos os sentidos alerta mas na negação, alerta mas sempre negando, alerta para poder negar criticando, e alerta construindo, construindo dependências de mim e assim lutando sozinho, assim berrando ao vento e a plenos pulmões com ira e cólera,
e não me atreveria a invocar Neruda não fosse ele estar aqui comigo!
quão acolhedoras estas manhãs de nevoeiro, aqui à soleira da porta e entrelaçando a minha visão entre o mar e os livros, entre os livros e o grande oceano, entre os livros e a parte bela do mundo, este azul da cor dos pensamentos livres, ora da cor do céu ora ambiente fechado cinzento da palidez da tua camisa, mas sem violência, sem consternação, livre de angústia, sem mentira, sem alienação, sem terceiras leituras, num discurso directo, num discurso autêntico, num sôfrego pesar.
Encontro-me, igual a mim próprio e quase como sempre, à soleira da minha casa da minha “Isla Negra”
-sinto saudades tuas dos livros teus que me obrigaste a ler
E atrás de mim jaz inerte a minha vida vazia e os meus anos de vácuo, como se tivessem sido portas fechadas e mentes desfeitas, como se tivesse sido trabalho em vão, longe dos meus longe dos sonhos, silvo agudo vermelho do sangue dorido de chamada incessante e podres caminhos, desvarios e mentiras e alguns poucos sorrisos, tão poucos sorrisos autênticos que polvilham a humanidade de uma ténue linha de esperança mas logo os abutres logo esses ignóbeis que lhe estragam a face e a povoam de nuvens, a incomodam no seu sentir, a impedem de singrar e a obrigam a calar.
- é hoje como foi contigo Neruda
E o mundo avança como a rebentação aqui a meus pés, em pequeninos círculos de uma sucessão de iguais e os pobres são os mesmos, novos nomes para os mesmos caminhos, novas roupagens para as mesmas privações, novas armadilhas para as mesmas ditaduras e tal como então, uma humanidade à beira da perdição e tantos escravos que não sabem sequer que o são, tantos inocentes ostracizados, tantas mentes vazias, todos operários aterrorizados e toda a mesquinhez, todo o canibalismo num desejo de poder que não é senão derrota todo o sentir feito depender da condenação de milhões, o homem predador de si próprio.
-não desaparecerás porque o teu canto viverá para sempre.
Porque tu captaste num instante o sentido inglório da vida dos homens e soubeste sempre que a humanidade não existe, que a solidariedade não existe, que a compreensão e a ternura são miragens mas ainda assim foste tu que te referiste aos mais fracos e foste gigante nos teus caminhos clandestinos, nas tuas tiragens foragidas, foste leme de uma revolução, foste âncora de sentido.
São os poucos sorrisos da incompreensão diária, são os tantos solavancos da cegueira e do absolutismo, são os amuos da derrota nos olhos do iletrado, ou os instantes capitais de uma longínqua execução, mais uma, uma entre tantas, mais uma execução tão arbitrária, a humanidade fenestrada necrosada num suave lamento de uma guilhotina besuntada de sangue. Mais um louco morto. Outro cadáver recente mais um bando de abutres que singram em voo de auto contemplação e nós, nós no dia a dia das nossas pequeninas casas, nós no dia a dia das nossas pequeninas decepções, nós olhando em frente ante o vazio cinzento escuro das tempestades com trovões estilhaçados por milhões de pequenos nadas da incompreensão dos homens.
-não sei onde viste tu a compreensão dos homens Pablo!
-não sei onde tu viste a compreensão dos homens!
Do sítio onde estou, que não é a tua “isla” embora guarde o teu canto, sinto que desfilam os ecos do fim e a chegada da morte, sinto-o nas fortunas de poucos e nas acções dos novos loucos, sinto-o no viver frenético de uma movimentação de manada e no estado providência dilacerado dos médicos que não tenho, na falta de tempo dos que não têm filhos, na falta de leite dos que já nasceram condenados, nas montanhas aldeias lá longe abandonadas e em todas as instituições que não nos poupam loucos mortos.
Almas mortas, espectros produtores e números estatísticas e egoísmo, números estatísticas e tratados, cimeiras e conferências e papéis, papéis e mais papéis, inválidos e inócuos porque deixaram o estado mais refém. Deixaram o estado mais refém e querem fazê-lo ainda mais refém. É a desconstrução da vida tijolo a tijolo, pedra a pedra. E então, então assim, se assim para sempre, para quando o fim do homem?
Até este mar azul imenso que tenho em minha frente. Até este oceano de antigas virtudes e até as fortalezas inexpugnáveis, até neste imenso azul paira a suspeita de corrupção. Dançam, em todos os palcos da vida, fortes e incansáveis, indestrutíveis os pecados capitais. Todos enfileirados como se do hino se tratasse. A nação infecta e doente, a nação esquartejada e em quarentena. E um outro Adamastor se levanta, um outro gigante se interpõe, uma nova Orão se congemina ventre da Peste adaga da dor. Camus e os doentes ?, o religioso e as dúvidas ?, o contrabando e as fortunas ?, a cada homem a sua culpa , cada um com seu caminho.
Mais um louco morto. Ébrio julgo impossível que um tubarão se aproxime da costa e regurgite a cabeça sorridente de uma pequena miúda. Mas olhai que não, olhai que não e um após o outro eles chegam penitentes e regurgitam cabeças como se pedissem que se lhes desse um funeral. O cúmulo do cinismo e a maior das fraquezas.

Sem comentários:

“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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