segunda-feira, 13 de outubro de 2008

O escritor e a escrita



Quem me explicará como se escreve bem? Quem me dirá como se retrata o belo? Porque há o lírio e as papoilas do campo e essas são belas. Mas também há a terra e o mar que são lugares imensamente belos. Então e a silhueta de um veleiro de velas enfunadas na manhã clara e calma de um dia de primavera. Belo também. E as palavras escolhidas com tanto labor, e as palavras cozidas como se fossem teares e os tapetes de Arraiolos. Ou os tapetes de flores do Alentejo. A literatura é belíssima. O acto de leitura é de uma serenidade e de uma sinceridade belíssimas. E os textos mais simples são tão bonitos.
Senti-o que voa de planeta em planeta para se descobrir a si próprio; atraiçoai o infeliz momento em que Coyotito morreu ou sede capaz de sentar na esteira de espuma da Isla Negra, percorrei as entranhas da vida esconjurada na selva até dardes de cara com esses olhos malditos desse demente ou deixai que o frémito da paixão vos arrebata quando se aperceberem que Carlos e Eduarda não são senão irmãos.
O que são para mim os livros? Representações de tantos belos alternativos como se todos juntos fossem os nossos guardiães da vida. São ferramentas de cirurgião que nos rearranjam por dentro e que nos impelem a seguir em frente. São calmantes para os hipertensos e são setas de venenos correctores que nos assolam o espírito e que promovem mudanças. Quem disse que se aprende com a vida? Aprendo com os livros que leio, porque os livros valem mais que a vida. Porque o âmago de um livro encerra sinceridade, ternura e compaixão e esses não encontro em mais lugar algum. Por isso mesmo o livro é belo. Desde que esteja realmente bem escrito.
Daí que eu volte à questão inicial. Como se escreverá um belo livro? Não pode ser feito com base numa fabulação de uma sociedade. Porque infelizmente nós não estamos rodeados por Camelot nem eu alguma vez terei visto alguma Távola Redonda. Por mais que a queiram imaginar tentai explicar o conceito aos esfomeados do nosso país. Deverá, pelo contrário mostrar sinceridade e explorar o hiper-realismo que despoletará no leitor a apreensão e a vergonha. Daí que os livros precisem versar o espírito humano. E o que faz o homem quando é contrariado? Repensa-se e reorganiza-se.
Mas o livro tem que ser mais que sinceridade. Também deve ser tensão. Também deve ser mágoa. Tem que encerrar arrependimento. Não poderá nunca ser de outra forma porque o escritor é um escolhido. Escolhido como um condenado por todos os males que os outros ou ele próprio fizeram. E a sua única forma de remissão é a compartilha nua e crua e sincera e mágoa. Então a literatura passa a ser uma forma alternativa de prisão como se o escritor fosse ao mesmo tempo preso e libertador, sob ele impenderá sempre a faca da atrocidade e a ele caberá sempre denunciá-la e degradar o mal. Como um paliativo para o sofrimento. Mas o que mais sofre. O sofredor que entrega aos outros calma e serenidade em forma de libertação. Eis a encarnação do altruísmo. Daí que a literatura seja bela. E toda a escrita é bela desde que dissolva o sofrimento. Como os lírios do campo ou as montanhas na sua quietude ou ainda os mares salgados e os ventos e as borrascas.


Nuno Monteiro

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“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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