sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Ode ao meu eu servil


Sete horas da manhã e um despertador máquina inútil que me encandeia acordado estou há cerca de quatro horas aos rebolões cama adentro como se ela transposição minha estivesse condenada a uma existência servil. Sem acentuação e sem preceitos para que não perca pensamento algum. Como todos ou tantos outros milhões servis sem cheiro nem sexo. Suores frios e choros incontroláveis sempre que mais uma hora passa e minha saúde não serena muito menos que dizer de meu intelecto açaimado por todos os problemas. Ou então nada, nenhum e só as olheiras, horríveis que me vêm ao espelho e se cravam como adagas entre eu e as minhas lágrimas. Manhã tão de manhã de um dia frio e seco destes de fraca neblina, soalheiro sol da parte da tarde e o meu Marão lá longe, esquecido, quieto, sossegado, abençoado. Filho de um deus menor. Lições de infância como água para a boca. Hoje tal como será sempre, a infâmia de bramir, a infância de lutar, a infantilidade de sonhar. Hoje, como para sempre será, como um abraço fraterno, como mais um laivo de sal, um banho na estrela, um sorriso fugidio, um instante apenas. A vida. A nossa vida. O meu novo texto. Que bem me sabe. Quão sereno e concreto aqui sentado, destas teclas abusando e pássaro de mim mesmo, abismo de saudade, os meus tempos antigos, os meus livros amados, esta minha escrita em círculos. Em quantos outros textos eu já escrevi isto? Não serei eu capaz de escrever sobre algo mais, que espécie de centralidade será esta que me amarra ao poço. Que desapego este que me faz parecer distante, que sentido de comiseração, que desamor próprio, que alegria em escrever, que povoa em mim tudo quanto não tenho, tudo quanto é medo, todos os meus futuros aqui reunidos. Quantas estradas bifurcam daqui deste meu espaço de paupérrimo elixir.
Hoje acordei tão cedo que em quatro horas repassei toda a minha vida e graças a deus por esta máquina tão prodigiosa que adivinha o futuro e trespassa o passado por entre um banho de lágrimas quentes e doces das minhas tantas outras vidas que poderiam ter sido. Pois é. A minha vida é este momento e como não sou herói, nem sei por que sofro, nem sei que estrada tomar, luzes passam velozes por mim como se eu perdido na escuridão do poço. Não passo de um pequenino palhaço que imensamente feliz fica quando consegue arrancar um sorriso às faces dos outros, os outros iguais, os meus camaradas, os outros tantos eu, vidas sombrias e cinzentas inglórias outros anti-heróis, outros brâmanes incandescentes, trespassados por olheiras, olheiras dos tormentos, lamentos como insónias, insónias de chumbo agarradas aos pequenos nadas, pequenos nadas como os palhaços – da minha instrução primária recordo-me de uma vez me terem dito que os palhaços são os heróis maiores desta que é a nossa vida. Porquê? porque são os que fazem rir e haverá algo mais importante que conseguir fazer rir, haverá presente maior que um sorriso profundo e vincado. Porque a vida deveria ser para rir, a vida deveria ser para a consagração, todos nós deveríamos nascer para ser felizes. que espécie de ente então nos regula para o sacrifício e para as noites mal dormidas?
Se cheguei a conclusão alguma. Invariavelmente não. O mais que posso é sentar e escrever. E recordar meus pais que me deram a infância. Ou olhar lá fora o céu azul e o Marão ao fundo do pano. Como gigante valente que dá comigo a pensar se algum homem tão forte assim como ele se poderá afirmar. Quem se dá ao trabalho de ser sagrado como as rochas desse monstro que é a serra lá de cima das nuvens. Quem quererá ser assim tão rude. Recrio uma vez mais a minha infância e os momentos de felicidade. E enquanto isso escrevo porque me faz sentir bem. escrevo porque a escrita me ilumina, me inunda e ela é para mim como algum láudano que me atordoa e me desperta. Ela é para mim a fortaleza inexpugnável. É o reino da justiça e da compreensão, é terreno fértil em sorrisos e heróis, é encontros e amores, serenidade de justiça, ausência de pobreza e cordialidade no trato. Um rebuçado a cada novo menino. E uma foto à estampada de alegria. A cara. O sorriso. O palhaço. O belo e sublime. Para que o humanitarismo não seja um credo inútil.
E agora que já disse tudo agora que já escrevi tudo quanto sabia estico um pouquinho mais este ofício, na ânsia de mais alguns minutos de prazer, na ânsia DE UM POUCO MAIS DE AZUL, NA SOFREGUIDÃO DE ALGUM OXIGÉNIO. DE SEGUIDA O FUNDO DO POÇO, O FUNDO DA VIDA E DE NOVO ESSA MALDITA QUE PERVERTE E ENGANA QUE ME OBRIGA A CALAR, QUE REPETE CONSTANTEMENTE QUE NÃO SOU POETA, QUE NÃO SOU POETA, QUE NÃO ÉS POETA, QUE NÃO ÉS POETA, não és poeta, não és poeta, não és poeta, como uma corrente infinda de cinzento e bafio.
Um último apontamento para berrar aos ventos que sou teimoso como uma mula, sou teimoso como uma mula, sou teimoso como uma mula e que tu não me vences, que tu não me vences, que tu não me vergas, que tu não me calas.

Nuno Monteiro

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António Lobo Antunes

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