sexta-feira, 3 de outubro de 2008

discurso a uma plateia de iguais

A figura maior, a alusão prevalecente, a espiral de realidade, o centro nevrálgico de todo o nosso descontentamento – não!, não é o deserto, tão pouco a neve ou o desconforto físico, esses cadernos do subterrâneo, esses antigos mestres, esses gárgulas reflectidos, esses olhos ameaçadores penetrantes de medo somos nós, são os nossos, subjugados, sou eu ao centro do poço, erva daninha espezinhada, peixe miúdo como todos vós, entes irmãos cozinhados em lume brando, nós, eu e o poço. A realidade crua e todas as nuvens ameaçadoras que se imiscuem entre eu e tu, os arrepios de toda uma imensa culpa, corta e desilude, castra e firma invejas, arregaça as mangas num trabalho inglório profusão de mentes que esbracejam sem sentido, anémicos pecadores, anarcas perdedores, saudosos itinerantes desta vida que é a de nós todos. E agora, com a vossa licença, sentado que estou à proa deste meu momento de toda a glória, na esteira de um livro, obra-prima que é a minha coroada de toda a imperfeição, permitam-me que me cale e que passe a falar-vos por intermédio dos livros de outros, dos meus heróis, dos meus eternos sentidos, dos meus pastores.
Calo-me continuando a falar e nem por isso deixo de ser eu, sou eu por intermédio de tantos outros meus faróis, sou eu por meio de palavras rascunhadas que dão frases com sentido, ferem e acabrunham, coro de inveja, impelem-me a outras trajectórias, corrigem-me, desformatam-me e consolam-me.
Humildemente peço-vos que me ouçam. Depois me direis se tenho ou não razão. E entretanto olharei de relance para os vossos olhos na esperança de que me queiram transmitir as inúmeras centelhas de que preciso para vos fazer reflectir.

“O homem na camioneta cuspiu e fitou-o de olhos semicerrados. Qual é a tua ideia, Lester, dar-me um tiro? Não fui eu quem te tirou a herdade. Foi o condado. A mim só me contrataram como leiloeiro.

O tipo é doido, CB.
CB disse: Se me queres dar um tiro, Lester, podes dar-mo aqui onde estou. Não saio daqui por tua causa.”

Cormac McCarthy, child of God, 1973. Magnífica antevisão dos nossos infelizes tempos modernos onde tantos e tantos espoliados esbracejam sem sentido. Este trecho traz-me à lembrança todos os milhares que entregam as casas ao banco para enfim caírem num limbo desprovido de senso e sentido. Quanta pena tem CB? Não tem nenhuma. A ele só o contrataram como leiloeiro. Porém participa da fraude. Não se recusou a tomar parte da destruição. Se não fosse CB seria outro igualzinho a ele. E este é o maior dos dramas. Há sempre um facínora na disposição de fazer o trabalho sujo. Com deus do seu lado. Pode deitar e dormir descansado e um pouco mais rico porque sente deus do seu lado.

“Há muito tempo que tenho vergonha, uma vergonha mortal, de ter sido, ainda que de longe, ainda que de boa fé, por minha vez um assassino. Com o tempo, compreendi apenas que até os que eram melhor que outros não podiam impedir-se, hoje, de matar ou de deixar matar, pois estava na lógica em que eles viviam e que não se podia fazer um gesto neste mundo sem se correr o risco de se fazer morrer. Sim, continuei a ter vergonha, aprendi isso – que estávamos todos na peste – e perdi a paz.”

A peste, Albert Camus. Esta alegoria poderosíssima de uma cidade em quarentena assolada por uma doença mortal epidémica – uma peste, é de uma desinquietação ensurdecedora à medida que nos vai mostrando de fraquezas somos feitos. A peste confunde-se com o homem. A espécie comporta-se tão miseravelmente mal. Excepção feita a um punhado de tão poucos pobres palhaços teimosos que sofrem de um humanitarismo que invariavelmente os ensombra e os sufraga. Ainda hoje não tenho noção do quanto será necessário para deixar de ser um pestiferado. É a consciência da peste que me inquieta. E o sentir de desalinho feito.

“Decidi então falar e agir claramente, para me pôr no bom caminho. Por consequência, digo que há flagelos e vítimas e nada mais. Se, dizendo isto, me torno eu próprio um flagelo, não é por minha vontade. Procuro ser um assassino inocente.”

Camus, de novo, na mesma obra. Como é que se foge desta sorte maldita de peste, pestiferado, assassino? Descortinarei aqui a própria vontade de criação deste espaço? Dúvidas, muitas, imensas…

“-Informo que vocês estão loucos – apeteceu-me dizer em voz alta. – Informo que tudo isto, esta reunião, este asilo, esta merda científica são a prova acabada da vossa estupidez, da vossa inutilidade, da vossa loucura, informo que estou a enlouquecer com vocês e quero que me levem daqui antes que me torne numa camisa de dormir…”
António Lobo Antunes, in Conhecimento do inferno, data da primeira edição 1980.

Vinte e oito anos volvidos a consagração da derrota, a aposição da desgraça e o nosso rectangulozinho mergulhado num sentido de esquizofrenia que tira a razão a todos e que nos marca desgarradamente como carrascos. O homem é o inferno de si próprio. O inferno é em vida, aqui, ao redor de nós, nas palavras e nos actos de todos os outros…

“- a colega passe isso a limpo o mais depressa possível – decidiu solenemente a perna -, a fim de ser apresentado às autoridades competentes…”
Do conhecimento do inferno

O caminho que o país leva é o oposto do que deveria ser. Secura no trato, todos os peixes miúdos escravizados de trabalho, os nossos filhos esquecidos a um canto, lágrimas, convulsões, a antítese da felicidade. Os que berram que não são açaimados e metidos em camisas de força. Deitados despejados como pobres desgraçados bem fundo lá tão escuro ao fundo do lodo ao fundo do poço.

Nuno Monteiro


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“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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