segunda-feira, 23 de novembro de 2009

0lho moído e lacrimejando...


O menino sabia que seria para sempre menino mas nem isso nem isso o fez parar…
Não queria viver sempre menino queria poder vestir as calças do pai
E sair ao vento às migalhas do monte – lágrimas deitando na terra para não passar o fogo…
Mas menino que era sempre menino não pode sair fazendo frente ao pai
EXERCITOGENERALCORONEUPAIDEFAMILIA
Porque pai é pai e o menino é pequenino faz birras esconde debaixo da mesa
Menino chora mundos e embirra muito…
Vê o mundo muito grande e não sabe se erra, não sabe se peca
Pecar não peca mas pode chegar um urso e cheirar a melaço
URSOGRANDECOMFOMENAVENTA
E o menino se perderia e não saberia sequer virar para norte
Não saberia arar um campo nem como curar uma tosse

Menino que estava quase deixando de ser menino
Pequenino palhacinho que despoletava o riso nos olhos dos outros
RISORISORISORISORISORISORISORISORISORISORISO - SÓRISO
Pai não queria não
Pai se afrontaria e a mãe
A mãe diria sempre o que seu pai mandaria

Assim seria sempre naquela casa de mato – pai como pai, mãe não sendo e menino esperando vez. Menino espeitando janelas atirando morros e puxando seus pés à frente… desboletando terras e atiçando urros… poderia ser que urso dele não viesse atrás – ou que desse de comer a mais dez. ele só! Ele grande. ele tão pequenininho…

Trazia seus olhos moídos de ver tanto mundo que não via ainda. E magro! Ui como ele era magro...

Nuno Monteiro

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Da importância de ser palhaço...


Hoje expliquei aos meus alunos o que é um palhaço. Da bravura dum palhaço. Deveria ter sido o sumário. Ficaram com o sol debaixo do braço. Devem ter percebido. Afinal… todos sabem e consentem… todos sabem porque sentem… é tão mais fácil fazer chorar que fazer rir. Eles bem sabem que assim é. E então perceberam. Que um palhaço não é afronta. É sim bravura. Muita. Ínfima. Íntima. Ulisses. David.

Hoje expliquei aos meus alunos o que é um palhaço. A alguns dos meus alunos. Da bravura de se ser palhaço. Ficaram com o olho nublado. Mas eu sei que sabem. Eu sei que sim. depois fizeram exercícios. Chamaram por mim. Tinham dúvidas. Procuravam. Ufanavam. Depois. No fim. Riram. E escreveram poemas. Um poemário. Voltaram a rir. Sempre dentro dos limites… sempre dentro da normalidade.

Não gosto quando chamam palhaço uns aos outros. Sinto-os fracos. Sem cor. Incompletos. Ignorantes. Fico a olhar para eles. E por instantes nada digo. Nada faço. Perco os meus heróis. Não gosto quando os meus alunos se maltratam. Ficam sem cor. Sem malva.

Amanhã explicarei outra vez aos meus alunos quanto vale um palhaço. A ver se os consigo fazer rir. Para depois aprenderem. Estudando. Homens… Mulheres…

Não sei se falta teatro ou se faltará circo. Sei que faz falta. Algo faz muita falta. Julgo que seja riso. Mas tem que ser o riso da compreensão. Falta teatro. E falta circo. Isto é o que eu acho. Poderei estar enganado. O mundo não é, afinal, uma enorme arena? E o homem não deixou de ser o centro do mundo! Ou terá deixado?!
Foi esta a minha lição de hoje... terá sido muito? terá sido muito pouco... para uns é bastante... para outros não chega... eu por vezes choro de alegria... outras vezes rio de tristeza... enfim. Foi mais ou menos assim uma das minhas lições de hoje...
Nuno Monteiro

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Alma ()

Eu perdi,
Perdi a esperança
Escapou-se-me entre os dedos
Esfumou-se com o nevoeiro…
Perdi o sonho
Que por tanto lutei
Que por tanto sofri
Perdi a serenidade
Que tão bem guardei
Eu perdi
A Criança
Que havia em mim,
Eu perdi,
A esperança e a criança
Que havia em mim

Maria Papoila
(porque escrever é mais fácil que falar)

terça-feira, 17 de novembro de 2009

A luz da minha avó...


Rodeado de grades. Sentia tanto inverno dentro dele. Queria estar fora do mundo. Olhava ao longe o mundo a conversar. As gargalhadas inclementes. Os corredores e as portas da vida. Sorria mas só por vezes. Sempre conseguira segurar as forças. Sempre arranjara forças para segurar as suas forças. Agora nem o papel. Agora nem a chuva. Nem a água. Era como se procurasse ser banhado mas não quisesse realmente ser banhado. Ou como se procurasse a luz mas lhe não interessasse a luz. Estava farto de tantos corredores, sufocado de mentiras e de faces. As mil e uma faces da traição. Bem sabia que os homens não passariam nunca de homens mas era essa a utopia. Era essa a montanha. A montanha mais elevada a que ele não conseguia escalar. Os bocados de montanha que ele, covarde, via serem levados por outros. A montanha coberta em sangue e sugada por ervas daninhas. A mágoa de viver. O horrível ensejo de subir a montanha sem, no entanto, nunca o conseguir. O vão desejo de pedir ajuda a um alguém que nunca viria. Que nunca existirá! Que nunca cá estará! Um desejo projectado num sujeito eterno, num sujeito perfeito. Essa montanha! Que nunca cá estará.

Rodeado de grades. Todo o inverno deglutido jazia dolente morando dentro dele. Sem saber a que porta bater. Odiado por todos. Menosprezado por todos. Odiando todos. Menosprezando todos. Um inferno em vida. As chamas num frio torpe! Homens com mil faces. Pequeninas bonomias e sorrisos podres.

Rodeado de grades. Para sempre detestando as pequeninas conversas. Ninguém o escutando. Ninguém o enaltecendo. Não escutando ninguém. Não enaltecendo virtude alguma?! O que existirá para além da traição? O que fazer quando se destapar a traição por detrás do homem? Que instante seguir?! A que porta bater?! Javalis com face de gente! Aos tiros. Aos tiros.

Alguém que nunca virá e então para quê pedir ajuda! Alguém que nunca te conhecerá e então para quê pedir trabalho! Alguém que te nunca abraçará e então para quê! Agora nem a chuva. Agora nem o papel. Agora nem o livro. Que agonia. Que entorpecimento.

O que fazer quando sabes que os dias te escorrem por caminhos esconsos. Quando os dias se sucedem a vertiginosas velocidades. Quando sovado enxovalhado. Quando a tua cândida luz já não alumia. Quando sabes que não escreverás nunca palavras nem frases. Quando sabes que de ti não sairá, vez alguma, obra alguma. Este é o desespero. Esse é o momento. Esta é a minha vida desvendada. Todos muito amigos quando são muito amigos. Todos tão quentinhos quando os dias estão quentinhos. Todos cuspindo aleluias. Todos tão humanos.

Rodeados de grades. Eu atiro o meu olhar ao longe. Mas não caminho o caminho. Não invento romances. Não os vivo sequer. Não faço de conta. Não pretendo ouvir o que não ouço. Não fecho os olhos à maldade. Não deito fora a minha velhacaria. Não conheço ninguém. Ninguém me conhece a mim.

Atiro-me de bruços nos braços da minha avó!

E acordo do outro lado. Do lado da minha infância. Na casa da minha avó. E revivo instantes. Momentos. Revivo e vivo dessas minhas visões. Sempre sozinho. Revivo das luzes que eram na casa da minha avó. Revivo dos cheiros da sala e do quarto e da cozinha e do sótão da casa da minha avó. Do sótão dos medos e dos baús de África. Do natal e da Páscoa e dos meus tempos de estudante. Da minha infância eterna. De quando eu era eterno. Pois. Acordo do outro lado. Gostava muito de contar estórias de África, a minha avó. Gostava muito de ver novelas, a minha avó. Gostava muito de perus e de natais, a minha avó. Havia um corredor e umas escadas de madeira quase preta, numa das casas da minha avó. E um buraco para o sótão, na casa da minha avó. Era um buraco que subia. Por umas escadas. E tinha lá o açúcar e o pão ralado e a farinha. Ao lado das escadas havia umas prateleiras com as comidas. E coisitas mais pequenas como os fósforos. E uma ou outra vela. Havia uma luz. presa do fio do tecto. uma lâmpada bojuda. incandescente. queimava se lhe tocassemos. claro que lhe toquei. e claro que me queimei. claro que por vezes. quando o anseio era tão grande. a escada balanceava. e então foi quando eu caí...foi onde eu caí quando era pequeno. Julgo que terei desmaiado. Lá, na casa da minha avó. Mas não me importei. Eram só tombos. E eu, então, era eterno…

Assim, por vezes, quando não encontro motivos em parte alguma da vida… volto a ela, à minha avó. É para isso que servem os avós. Bem… nem todos os avós. Mas esta minha avó sim.

Fico na casa da minha avó durante uma hora e já está! Já posso retornar. Já posso voltar ao trabalho. Pelo menos a minha avó. Uma vez telefonei-lhe. Mas não foi a mesma coisa. O telefone quebra o encanto. E a minha avó passa sendo outra pessoa qualquer. Não como a minha avó.

Mas na casa da minha avó Nunca me senti rodeado de grades. Pena que a casa da minha avó! Seja tão pequenina. E não dê para nós dois. mas ainda hoje eu penso. e se eu lá tivesse ficado agachadinho. sem fazer barulho. será que me esqueceriam lá?!

Na verdade este texto devia ser partido em dois. Porque se a minha avó é luz eu sou escuridão.
Nuno Monteiro

domingo, 15 de novembro de 2009

A borboleta que queria engolir o sol


De cada vez
Que me sento sozinho
Penso comigo
(Será que ela se senta ao meu lado)

Mas não
Infelizmente não
Eu nada lhe diria…
Mas por dentro de mim
Sorriria

Por isso
Vivo
Sentando sozinho
À espera dela
Dessa absoluta borboleta que queria tomar o sol

Enfim
Chegará o dia
Talvez tarde de mais
Talvez
Mas enquanto isso…
Olho-a no seu voo irrequieto
Por vezes as borboletas sorriem…
E eu inundo de cor!

Nuno Monteiro

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

terça-feira, 10 de novembro de 2009

SONORA



No deserto não crescem sentidos! Não chegam cheiros! No deserto a vida não tem tempo! Abunda o espaço! Uma música de vazio. Os olhos abundam tão ao longe…abarcam todo o mar, no deserto, os olhos!

(ele vivia numa toca como um bicho… longe do frio… longe das luzes…)

Caía CHUVA no deserto. Raro. Tão belo. Quando o céu se une ao chão. E deixa de haver chão e deixa de haver céu. Um cacto. Pois… um cacto no deserto! Belíssima bicharada saltitando por entre as gotas. Enormes crateras salpicando o solo… as gotas da chuva molhando a areia. A argila subindo aos céus. Molhando-lhe o nariz. Ele enchendo os pulmões. Agradecido. Sozinho. Um cacto. Pois. Uma flor no deserto. Aquela forma quase humana. Ele olhando o cacto. Não muito longe dali… não… nada longe dali… uma “joshua tree”. E quantos sons fugazes… efémeros… salpicando o vazio.

(as gargalhadas do homem magro rindo da vida rindo do vento rindo do deserto…)

Barba crescidíssima – os olhos entrançados numa cara encovada. Um cigarro de mescal… talvez fosse das cores. Talvez fosse da vida. Um adorador de areia. Água da chuva que lhe escorre pelas… às vezes pequena gota outras vezes virtude desabrida – água da chuva que o banha – um ranho de céu. Espelho cinzento de deserto. Um lugar vago e cristalino – uma visão tremenda – num abraço fraterno.

(as gargalhadas do homem louco perdido ou inebriado… o louco latejar do cérebro… há dois cérebros no homem, há o cérebro cérebro e há o cérebro coração… e só esse lateja!)

Chove no deserto. Um dia no ano. Uma fina camada de cinza que se descobre flor. Uma borboleta desajeitada que se penteia. Trauteando e empoleirando no ar. Ao longe ele vê o mar que se agita por entre os suores do ar. Ao longe ele vê ondas de água ascendente. E bebe-a. Fresca. Água caída e puída. Ele não baixa os braços. Ele não é cego. Não é surdo. Não é cérebro.

(de facto, olhando a água despontando nas flores, sopra um grito de mar e deita fora o cérebro. Não fuma cigarro. Não pensa senão na areia!)

Uns olhos inquietos pontilhando numa face irrequieta. Olham para todo o lado. Querem ver tudo. Tem na palma da mão esquerda todo o México dentro de uma garrafa… vai bebericando. Enquanto tempo escorre por ele como se fosse água. E por dentro de si olha-a no seu vestido branco. E então a água da chuva mistura-se com gotas de lágrimas. fica água salobra. Sal que lhe planta os pés. E o transforma em cacto. Endurecido. Deserto.

(num dia de chuva, a par com as flores e as borboletas, saem da terra e flutuam no ar… vivem de novo no ar cheirando a argila…)

Não é o cérebro quem chora. Muito embora seja no cérebro que ela vive. É o coração dele. Um coração seco. Árido. Um coração que não diz palavra. Ele sendo o cacto ou um cacto sendo ele. Bebe dum trago. Volteia e volteia e volteia. Ele é cego. É surdo. Não tem pernas. Pois não… tem raízes… as raízes que entram pela terra dentro e que abraçam toda a terra.

(gosta da chuva porque ela liberta da terra o cheiro da argila que era o cheiro da mulher dele… a mulher dele… era argila… ficou argila… não era de barro… era argila)

E a joshua tree observa tudo aquilo. Sem nada poder fazer. No outro lado da terra outras árvores… muito mais velhas… mais sabidas. Meteram-se na terra ao contrário. Quiseram esconder a cara e deixaram os pés à mostra. Deixaram os pés à mostra. Pés feios. Pés muito feios… feitos raízes.
Abandonados no deserto atiram as gotas de sal para dentro da terra. Terra disciplinada que deixa crescer raízes…


Nuno Monteiro

Um sentido apelo ao muro


Hoje terei que afirmar o seguinte:

quanta hipocrisia! quanta hipocrisia leva o mundo! o mundo dos homens... Sim! caiu um muro... mas de imediato se levantaram outros. de imediato se ergueram outros. muros menos altos. muros mais largos. muros não tão compridos. ou muros mais compridos. seja como for. Muros. um mundo murado.

então alvíssaras à cor e ao dominó. morto um muro! nascidos outros. tantos! muros da vergonha. muros menos muros. muros mais muros. muros dentro das pessoas. muros dentro das cidades. muros cá por dentro.

num dia de chuva os homens do costume engalanando a morte dum muro... e entoando discursos! e palavras! prémios nobel. deslocações oficiais!

longe de mim desfazer a importância da queda do muro. mas humildemente afirmo que a mesma humanidade, consente, aceita, autoriza. outros. Mais Muros. Novas formas de muros. Muros sem aparência de muro. Mas com consistência de muro.

Não poderá nunca algum homem estar bem ou viver bem enquanto souber ou consentir ou autorizar que outro - por mais pequeno que seja! viva sufragado e explorado.

e hoje mais que nunca eu sei que isto faz sentido...
Nuno Monteiro

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Miragem



Clamamos no deserto…
Apenas um túnel…
Cheio de vácuo…

Impede a passagem!
Barra o sopro!

E quando ao fim…
Andamos cansados! Findaremos cansados…
De tanto partir muros.

Será isto a coragem?!
Apenas: (tão só clamamos!)
Clamamos no deserto…

Um blogue...

Obrigado!

Pela distinção. Mais! por incentivares!

Porque julgo que o prémio seja isso. Um incentivo.

e pela distinção!

um brinde ao teu histórico-filosóficas...

Um brinde ao teu trabalho no histórico-filosóficas!

domingo, 8 de novembro de 2009

Sabes, eu gosto de ti

Acho-te tão meiga e ligeira -
teus olhos tão cheios de luz,
gosto de ti, gosto de ti.

E o teu nariz e cabelos e boca,
teus olhos e teu pescoço querido
0nde na gola da tua roupa
tens teu ouvido escondido.

Sabes, gostava imenso de ser
tu, mas isso não pode ser,
a luz envolve-te, a gente é
simplesmente aquilo que é.

Ai sim, gosto de ti,
gosto tanto e tanto de ti,
gostava de dizê-lo por completo -
Mas não o consigo em concreto.

Herman Gorter in Uma migalha na saia do Universo - Antologia da poesia Neerlandesa do século vinte - Assírio e Alvim, tradução de Fernando Venâncio

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

O odor das Camélias...



Tão difícil mergulhar mais cedo nos olhos de mar daquela donzela. Mergulhar mais fundo nos olhos negros da donzela sossegada… dona das camélias. Tão árduo… olhar mais fundo nos olhos irados daquela alma vazia. À volta só Camélias. Só Outono. Pelo chão… invernia pelo chão. Difícil e árduo! O corpo inerte da donzela que fixava docemente o olhar nos portões fronteiros da propriedade. Chorava de saudades. Vazia ficara. Voltara costas à vida. Dentro dela não era Outono. Dentro dela não sentia o calor do verão. Dentro dela. Dentro () nada. Era a donzela sem sentido. Segurava nas mãos um pequenino crucifixo?! Mãos frouxas e bamboleantes. Dentro das mãos não havia sequer um minúsculo ponto de encontro. Segurava o crucifixo enquanto as gordas flores das camélias caíam de tão maduras. Bem zia-se quando algum pardalito piava ali defronte dela defronte do portão.


(maldita a madrugada em que o vento aziago o levara… para sempre…para sempre… para sempre)


Tão árduo quanto impossível porque a vida da donzela fechara qual botão qual flor que resistia ao passar das estações. Correntes de ferro tornavam-na órfã. E ela órfã ficava. Segurava o crucifixo entre os dedos. Dedos dormentes de resto como os olhos de resto como a boca. Boca donde não saíam palavras. Boca donde não saíam formosas…


(maldita a madrugada em que o vento aziago o levara… talvez para sempre… chorava um leve vento quando o imaginava para sempre… impelia-a um doce cheiro a camélia!)


“Não havia forma de conhecer no passado dela.” “Não havia forma de conhecer no futuro dela”. Porque a leve donzela não existia fora daquela sombra fria das camélias. Porque a donzela não tirava os olhos do portão vivo e saudoso. Ventos havia em que arrastava o seu olhar no sentido do horizonte! Dele esperaria sempre ver surgir algo mais… Dele esperaria sempre… algum pardal… alguma ave… enquanto maldizia as aves esperava ardentemente por elas. Uma alma inteira! Vazia e plena. Carcomida e cheia! As mãos frouxas encerrariam uma espécie de força incomensurável. Mas a não usava. Mas a não sentia. Mas a não queria. Ou melhor. As mãos nem dela eram. As mãos não comunicavam aquilo que o corpo pedia. As mãos pediam o que a saudade não deixava. A saudade queria o que as camélias não lhe podiam dar.

(maldita a madrugada em que o vento aziago o levara… teria sido o vento… teria sido o tempo… teria sido ela…)


“Não havia forma de conhecer no passado dela”. “Não havia forma de conhecer no futuro dela”. Porque a donzela levara consigo o seu olhar. Olhos abertos ao vento que se abriam só para ela. Só para dentro. só para o fogo. Consumir-se-ia no seu próprio fogo até quando? Consumir-se-ia no seu fogo. Fora dela, frio. Outono. Uma película de folhas e de flores mortas pintavam todo o chão.


(todos ouviram o vento soprar aziago enquanto dela se despedia e dela se apartava. Todos ouviram…)

O mais espantoso! A nobre donzela não queria que ele viesse! Chegava-lhe e sobrava-lhe a esperança que dele fazia. Erguia-se entre ela uma força irresistível – a da ausência. Era o domínio do sonho que a compungia. E lhe dava alento. Vivia duma força de nada. Impossível! Possível. Ali estava a nobre donzela. Ali vivia! Naquela espécie de eterna eternidade. Verdade? Possível! Simsimsimsimsimsim. Cada vez mais pequenino, passadas as estações.

(havia um invólucro de mulher velha por detrás daquela alma nobre)


E se havia perdido tudo! Perdera? Com quem falaria? O pintor desenhara-a como a alma gémea do medo. A tudo preferiria sempre a ausência. A Tudo preferiria sempre a funda fossa do frio. Interpunha-se entre ela e a vida. Frio. Não sentia frio. Medo. Sabia que sim. Medo. Arriscara-se a ter perdido tudo. Alguma vez possuíra algo? O quadro só fazia questões… a invernia era da mulher.


(aquela mulher nobre só era por detrás dum cavalo dum cavaleiro no mundo etéreo do sonho)


Tão difícil por vezes penetrar num quadro. Numa face. Tão demorada é a humanidade. Tão cheia de certos e de errados. Tão cheia de cheios e de vazios. Ao mesmo tempo tão coragem e tão fria. Ao mesmo tempo tão sangue e tão inocente. Nãonãonãonãonãonão. Todo um mundo que era um mundo dela se desenrolava bem por dentro da vida que era a vida dela. Todo o mundo. O dela. Tudo num quadro. Na imortalidade dum quadro. Tudo num tempo. E num espaço.


(e contudo. Tão perto daquela mulher. Ali pintada a óleo! Um cheiro intenso. Um sabor imenso. A Camélia. A Camélia)


A camélias sempre…
que seriam sempre suas e teriam sempre o doce aroma do dia em que, pela primeira vez, fora sua…
O seu aroma.
O aroma das camélias virgens de saudade e solidão.
Plenas de vida e de fragor.
Doces de gemidos e carícias.
Frescas de beijos e de carnes entumecidas.
Sem o frio do Outono e o cheiro seco das folhas caídas nas pedras do caminho que ficou por percorrer…

Saudade e vazio.
Odor a camélias.
Solidão…

Nuno Monteiro e Dina Cruz

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Enciclopédia da história Universal

Louvores a Deus


LOUVORES A DEUS

É louco o homem que neste mundo
Se cansa e cessa de louvar a Deus.
As aves o não fazem e alma não têm.
Só as anima o sopro do vento.


Anónimo (séc XI), in "Rosa do Mundo" assírio & alvim, 2001
trad. José Domingos Morais
ilust. Christian Northeast

retirado de http://ocafedosloucos.blogspot.com/

"EU (AUTOBIOGRAFIA)" de Fialho de Almeida




Excerto de um texto do escritor Fialho de Almeida, escrito em 1892 e publicado no 2.º vol. do "Jornal dum Vagabundo" em 1903 (a reedição recente é um livrinho intitulado "Os Jornalistas e outras Pasquinadas", da Palimpsesto):

"Tornando às letras, os meus próprios amigos repararam no carácter fragmentário dos meus escritos, e os mais ferozes me acusam de intrometer fezes humanas nas tintas duma paleta onde só deveriam esmair suavemente as cores do espectro. O primeiro ponto é bem notado, eu mesmo me entristeço de até à hora presente não ter senão uma efémera bagagem de historietas de espuma e artigos 'mais ou menso verrineiros'. Pouco importa que essa obra faça o melhor de cinco ou ou seis mil páginas, e represente a fadiga de mais de quinze anos de nervos excitados. O público entre nós não diviniza senão os fabricantes de grandes calhamaços (critério natural num país onde a leitura é toda de lombadas) e mesmo que eu fizesse, naqueles pobres bocados, maravilhas, passaria sempre por um cronista aguado das futilidades mansas do meu tempo. Resignar-me-ei calado ao 'veredictum', tanto mais sendo ele, quase por completo, verdadeiro, mas explicando sempre que quem não aufere, como eu, dinheiro do Estado, e tem de ganhar o pão dia por dia, não pode senão produzir minusclarias literárias, obrinhas de fácil curso, pagas aos quinze tostões, Deus sabe quando, e escritas sabe Deus em que disposições de cabeça e de barriga! A cada instante aboprdam-me os ingénuos - mas por que não escreve você um livro inteiro, um grande romance, um grande quadro crítico?...

Imaginam que esses trabalhos se abordam com a inconsequência e a rapidez de vinte ou trinta páginas; mal compreendem que sejam precisos longos meses de estudo, anos de concentração, paciências beneditinas de factura; e durante todo esse tempo quem é que garante ao desprovido escritor o passadio, e depois da obra feita quando dá por ela o editor, ou mesmo quem é que a edita, não havendo em Portugal senão trezentas pessoas capazes de pagar até seis tostões por exemplar.

A linguagem plebeia agora, e os termos 'sujos'. Quem percorre a maior parte dos livros portugueses escritos nos últimods quinze anos, abismado fica da falta de interesse inerente a quase todos, e da estulta preocupação que leva os autores a ecsreverem emn 'estilo nobre', into é, numa algaravia convencional, bocelada de retórica, eivada de incidentes, imagens cediças, frases feitas, através de cujo urdimento a atenção dos leitores se esfalfa, resultando a convicção de que uma tal literatura é apenas intrujice de dúzia e meia de espíritos palavrosos, ermos de gosto, sem ideias nem experiências de ofício, e que quando muito aprenderiam nas aulas de português a sintaxe dos escritos fradescos que lá é costume apontar como mananciais de inspiração literária genuína. Imagina-se em geral que todo o fiel patife, poeta ou prosador, capaz de arreglar sobre o papel daquelas estopadas, fica 'ipso facto' sagrado artista e homem de letras, e ninguém perscruta a razão por que devendi ser a frase literária a expressão fotográfica, instantânea, das ideias, escritor que tenha obscuro e supérfluo o estilo., é que certamente cerece de limpidez nas figurações ou doutrinas que esse estilo é chamado a visionar. As obscuridades de vocabulário pois, os torcicolos da frase, as arborências excessivamente complexas do período, longe de creditarem o talento pictural do escritor devem ao contrário sobreavisar-nos quanto ao pequeno peso e nenhum feitio sa sua bagagem psicológica. Dessa vacuidade cerebral hipocrisiada de retórica, que há vinte anos tem sido a literatura artística do país, resultou em primeiro lugar a deepradação do gosto público, e em segundo a indiferença gradual, hoje completa, desse mesmo público por todos os que fazem em Portugal a profissão de homens de letras. A decadência é tal, que o estilo em que é uso escrever-se só é bom quando não exprime coisa alguma, e constar de uma série de lugares-comuns piegas, amantéticos, que leitura finda, valem ao plumitivo a reputação de literatejar 'de luva branca'. Ninguém compreende a necessidade que há de escrever como se pensa e como se fala, límpido, claro, brutal, simples e certo, veemente ou plácido segundo o veio de água do assunto, precipitado ou espraiado, consoante o temperamento emotivo de quem serve, e sincero sempre, arrancado da alma, e empregando, como Shakespeare diz, para a pior ideia, a pior palavra, venho a dizer, a mais cruel, que é quase sempre a mais pictural e a mais persuasiva."

Fialho de Almeida
Retirado de

http://dererummundi.blogspot.com/

George Harrison - My sweet lord

sábado, 31 de outubro de 2009

O que é o plural de um monólogo



Sou eu deitado dentro de mim quando nem um pio deito do fundo desta minha caverna… um eu hibernante que teima em sorrir… desviado do mundo e nunca olhando antes fugindo assoberbado de espanto ... crudelíssimo de suor … desviando a minha cara minha da face do espelho da face do medo…
ou
Serei eu em meio de garrafa e em pleno convívio em meio de múltiplos bares e de sons e cores. E de sons e cores. Não triste. Não acabrunhado. Não idêntico a mim. igualzinho a mim próprio. Digno de mim. completamente digno de mim mesmo quando rio deste infanticídio. Mesmo quando escarneço cobarde esporeando as estrelas e cavalgando Galáxias. Sobejo de energia. Uma força vital desmesurada e desmedida. Num palco. Ao centro. Imensamente quente!
ou
Não serei eu acabrunhado e triste perante a ponte. Perante a miragem. Perante a queda. Não serei eu acabrunhado perante o silêncio. O silêncio tempestade de negação humana. Soltando as entranhas que não tenho. Dispersando sémen que arde enquanto fogo.
ou
Eu. Alma! Sereno! Respirando a montanha e alegórico! Categórico! Lendo. Contemplando um pretenso vazio. Uma espécie de nirvana.


(quantos “eus” caberão dentro de mim! quantos espelhos terei eu dentro de mim! quantas faces minhas diferentes!)


Eu? Eu nunca saberei definir o homem. Eu nunca conseguirei transportar esta nossa espécie de viagem. Eu sequer sei se vivo?! Eu sequer sei se morto?! Morto vogo por sobre espumas de risos. Vivo vogo por sobre risos e espumas. Vivo ou morto atravesso o tempo. Vivo ou morto escrevo estas linhas. Nada mais sei.
Seja então a minha voz a de um monólogo. Seja. Embora eu não seja. Um clarão de nuvens ribomba sobre mim e despeja água. Água pura e pacificadora.
Eu. Alma irada não respondo! Não respondo. Berro muito alto. Emudeço. Olho as horas. Tudo me mete medo. De tudo me afasto. Quanto mais me afasto mais me sinto só. Num ilhéu. Nem uma árvore espectral. Nem uma cova.

(quantos “eus” caberão dentro de mim! quantos espelhos terei eu dentro de mim! quantas faces minhas diferentes!)

E tempo?! egos? Quantos serão os meus? Respostas quantas?... menos de mil não conseguirei eu arquitectar! Quantos sujeitos serei eu?
Findo mais um livro. Renasci. Já não sou eu. Não deixei de ser eu. Por vezes vomito. Muitas vezes vomito. Todo o barulho me torna prenhe demais. Toda a verborreia dos dias. Tudo é vomitado. Tudo é desperdiçado. Alguém saberá onde pára a vida?
Quem me dera poder ler a meu bel-prazer dentro de uma redoma de vida. Fértil campo de feno. Ilha solitária de pão e dor. Não! Não dor. Encarnado. Juventude. Instantes de juventude. Não é isso que também quererás?!

(por volta de mim risos… duendes e estridentes ecoam pelas paredes e enfunam pelas ruelas tão estreitas)

sou do tamanho da ilha mais pequena e todo o meu eu está cravejado de solidão. uma gaivota. paira de olhos irados. Quantos de mim verá?! não sei construir plurais! não sei tecer romances. primeira pessoa. sempre da mesma forma. muitas pessoas dentro de mim…

Nuno Monteiro
Imagem - Guernica - Pablo Picasso

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Chuva no tempo




Aninhou-se melhor, pondo os braços em volta do peito. Dóia-lhe, não era uma dor física, era uma dor interior, uma dor que lhe dilacerava o peito… E a alma… Respirou fundo, tentou dormir, mas não conseguiu. A imagem estava na sua cabeça. Estava a morrer por dentro. Por que é que a sua mãe a havia abandonado? Ela não percebia. Ouviu gritos. Encolheu-se ainda mais, tapou-se com a colcha e chorou. Chorou, não sabe quantas horas. Era de manhã, acordou, tentou levantar-se. Porém, o buraco presente no seu peito aumentara e doía-lhe cada vez mais. Tentou de novo. Conseguiu ouvir chuva. Vestiu-se. Desceu as escadas. A dor que a perseguia era cada vez maior. Gritou, porém, a dor pareceu não ligar. Aumentou. Saiu a correr e foi para o rio. Chovia muito. Estava encharcada mas por dentro ardia. O rio estava furioso, mas parecia gritar de dor. Como ela. Sentou-se. Começou a ficar fria. De repente sentiu um cobertor. Olhou e viu-a. Começou a gritar. Ela estava com medo. Decidiu sair a correr. Chegou a casa, atirou-se para a cama. Cobriu-se e deixou-se ficar ali, até a dor passar. Para sempre.

Maria Papoila
“é o meu pseudónimo e é com ele que eu assino os meus textos. Foi escolhido pela minha mãe”

Linda- Inês Bertelo, 13 anos

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

boca chuchando no dedo...

vou mostrar cavalos
forcados
touradas

ao pequenito que está ao meu lado

volto já!

sou o pequeno príncipe empoleirado no seu asteróide

sou um peter pan

mas tenho que ir depressa

antes que o miúdo se afaste...

Nuno Monteiro

cabelos pretos...

Para que me dizes que eu tenho um blogue...
para que me queres dizer que eu tenho um blogue...
Para que haverás tu que sorrir dizendo que eu tenho um blogue...

Não sabes que me magoas?
Ou queres magoar?
e isso fará de ti o quê?

(preferia que abrisses o blogue e lesses o que lá está escrito. Isso é que me faria feliz...)

Nuno Monteiro

a primeira pessoa

Gosto de discursos na primeira pessoa… sujeitos que te dizem cruamente que a porcaria da estrada à noite é para passar voando correndo. Sujeitos que não estão cá com meias m…
E portanto é isto! Que digam! Mas que o façam pela frente. Que me empurrem! Ou me esmurrem. O resto só sabe a melaço. O resto é infame.
O mal do mundo é que está cheio destes pequeninos infames. Fraca coragem. Pouca frontalidade. Muita pintura e muito berro. Muito vento. Muita parra. Parra parra parra! Palmeiras e montanhas de parra…
Há ainda os bufos! Ora tanto bufo… discurso na primeira pessoa contra esses miseráveis infames. E armas em punho e peito pronto. Em guarda!
Também não gosto dos mal-criados. Esses são os piores. Tolero tudo! Desde a falta de coragem à insipidez. Mas não suporto má criação.
Também há os que roncam que sim que fazem que deitam abaixo. Pois! Há sempre o ronco do bruto.
E finalmente há o parvo. Que nem sabe que é parvo. Esse merece piedade.
Por detrás de tudo isto… por detrás de tudo isto e depois de muito discurso na primeira pessoa! O que há? O que sobra? Migalhas e miseráveis! Gente com um valor incalculável mas que foram sempre preteridos. Gente duma coragem ímpar. Gente que vive arquejando mas que acumulou tanta vida. Pessoas extraordinárias porque resilientes.
Para que servem os livros?! Os bons livros! São o ar que eu respiro. São o meu punhado de fé! São a minha fonte de resiliência. Gosto de pensar que sou resiliente. E já agora. Igualmente miserável. Como o Cortazar. Como o Bolano. Lutarei tudo contra esses infames infestantes! Até, finalmente, galgar das correntes da minha Orão.
Não ouço som nenhum dentro de igreja alguma. Primeira pessoa. Tenho comigo uma imagem do Cortazar olhando um gato selvagem. Igual ao meu. Meu camarada! Primeira pessoa.
Nuno Monteiro

sábado, 24 de outubro de 2009

Rodófitas são cabelos em chamas




A pequena anella olhava seus pés com espanto. Semi-mergulhada dentro da água do mar tão bravo. Prodigalizava-se em banhos de espuma e aqui e acolá… saltitando entre esta e a outra e ainda a próxima onda de espuma… era o sangue dentro de seu coração que a fazia mover. Chorava muito mas de fartura. Do pouco que a vida lhe dava. Sua cabeleira de cabelos ondulados. Não inundada de sol. Apenas molhada da água fria daquela praia do vento… ao longe marulhavam os navios que carregavam pedaços de enormes costados. Ainda mais ao longe sabia dum mar prenhe de sereias e de utopias tão túrgidas quanto os quartos de brinquedos e as lufas de capa e espada. Anela sempre fora a menina espadachim. Sempre magra! Sempre orgulhosa! Sempre viva. De olhos do mar.
Entretanto crescera e quando os olhos dela olhavam…


(Naquele momento, naquele instante, naquele sol daquela praia… ela era da baía de luuanda… tão distante da ponte, das tábuas, do pó.)


A Anella do corpo franzino auscultava seus pés com espanto. Meia ave meia mulher era ela quem se debatia entre as ondas daquele mar tão bravio. Soprava contra o vento como se daquele sopro… como se da ténue força daqueles pequeninos pulmões… como se dum Divad. Apontaria sempre à estrela. Apontaria sempre à utopia. Era assim que ela mergulhava e deixava ao salitre seus cabelos de chamas da cor das rodófitas.


(morava na ponte, por baixo, entre a terra amarela inclinada e o vão! Por cima de umas tábuas velhas…)


Sempre fora espadachim sem a espada. Tarde de mais para a empunhar. Substituíra-a por uma pena. Inútil pena que não comoves… Não havia vivalma na praia. Sussurrava aos pássaros. Gigantes alados que lhe pisavam todo o areal.


(homens com asas destruindo todos os castelos todas as fronteiras todas as torres…)

Arrastava-se graciosamente para fora de água. Deixava na areia pequeninas pegadas. As pequeninas marcas dos seus pequeninos pés. Pena que as unhas pintadas de encarnado não se deixassem gravar na areia. Pena que aqueles pés que Anelle olhava com espanto! Não coitados! dos pés que anella usava com orgulho! Mas pena que esses pés… a contradissessem em tudo e a arrastassem sempre de volta ao início. Sempre de volta ao frio. Sempre de volta à origem.


(por cima de umas tábuas velhas… sim era aí onde ela morava… entre o chão batido de terra e o vão…)


Assim era anele! Assim é ANELE. Assim será elen! Uma outra fada anairO. Mais seus belos cabelos teimosos como rodófitas. Longamente contemplando seus pés pequeninos e redondinhos. A pequenina mulher que ousava saltitar entre espumas de onda.
E enquanto corria e sorria pelo areal! Quanto daquele sorriso! Aquele trigueiro corpo deixava uma cauda, uma cabeleira – dir-se-ia um cometa – era sem dúvida da chama! Das chamas que são seus cabelos. Não sei se dos cabelos! Não sei não! Talvez seus cabelos rodófitas sejam prolongamentos neuronais. Talvez aquelas chamas sejam ideias. Florestas em lugar de mesopotâmia! Pequenos lustres de fogo coroando toda aquela magreza.
Sim! quanto daquele sorriso! Não é bocado que falta no meu e no teu…

Nuno Monteiro

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Conversa entre o estado e a menina


(Aqui fica transcrito e registado na íntegra a conversa que a menina teve com o estado)

Menina: Como é facilmente visível falta-me grande parte da face esquerda! Foi um garoto de rua que eu tentava encantar… enfim! Ninguém me dá emprego! Não tenho qualquer fonte de rendimento…
Estado: e então que pretende?
Menina: pelo menos um cirurgião que me devolva aos poucos a minha antiga face…
Estado: e que garantias tem que todos esses tecidos em falta são substituíveis?
Menina: “…?????????????...!!!!!!!!!!!” entorna o cabelo preto sobre a face esquerda para não se expor tanto.
Estado: deve preencher primeiro este impresso! Título do papel: Registo de autorização para consulta médica de especialidade. Terá então que o fazer acompanhar de um comprovativo de emprego…
Menina: (interrompendo) Mas se eu não consigo emprego!
Estado: Se não se encontra empregada não tem direito a estado!
Menina: Como podem as regras excluir-me…
Estado: (interrompendo) muito simples se a menina não trabalha não desconta e se não paga ao estado o estado não pode pagar ao cirurgião. E voltando à carga: O estado antevê – pelo seu aspecto e figura – uma condição clínica complicada! E uma reabilitação complicada e morosa. Logo dispendiosa. Não é o género de serviço que se faça de borla.
Menina: então e poderia o estado ao menos providenciar-me um lugar na administração pública? Assim já poderia pagar pelas minhas operações…
Neste preciso instante batem as cinco horas! O estado entrega uma ficha com um número à menina
e
Queira desculpar. Acabou a minha hora de expediente. Reabriremos a repartição amanhã às nove horas. Passar bem…
A menina fica desamparada e de novo na face da rua. E é então que se apercebe que toda a rua está polvilhada de buracos. Toda aquela rua é um gigantesco estaleiro de pobres e pedintes. Toda a rua é um alter-ego seu. Só nessa altura percebeu o que deveria fazer…

Dez da noite. Toda a rua dorme ou serenamente se prepara para deitar. Os candeeiros só agora acendem. À medida que cai a escuridão! As aves recolhem-se e dormem. Não há sinal de libertação. Da minha rua eu não vejo senão a candeia que menos alumia. Da minha rua eu te não vejo a ti. Da minha rua. Só o instante seguinte. Só o vento, nem o vento. Da minha rua.
Nuno Monteiro
Foto. The paradise we made. Rui V.

um quarto de angústia...


Os olhos
Que a mim me olham
Não os olhos que eu vejo
Os olhos
Que a ti te olham
Não os olhos
Nunca os olhos
Que eu e tu olhamos
Os olhos
Os olhos que são mais que olhos
A alma?
Algo mais
Algo menos
Algo distante
Serão olhos
Será medo
Há uma corrente que lhe faz os olhos negros (cegos?)
Vento
Deve ser um cento
Um pranto
Um esperanto
São os meus olhos olhando
Os teus olhos escutando
Vento outra vez
Surripiando a porta…
Nuno Monteiro
Foto: Man behind chain - viesturs links

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

A ode ao livro



Quando abrires…
Esse livro!
Esse magnífico maldito!
Esse teu livro aberto… esse teu presente…
E souberes ler (porque saberás ler! Saberás ler na face amiga e inimiga!)

Então – um eterno compasso de espera! Aproveita e respira!
Só então…
Conhecerás.
Ensandecerás?
Ou cuspirás no livro?

Porque se o fizeres…
Se cuspires no livro…
Os ratos
Esses tantos! … esses homenzinhos homens mesquinhos!
Terão ganho.

e


(um horizonte infindo negro sugar-te-á toda a humanidade e plantar-te-á de medo)
Nuno Monteiro

Botão de vida...


Sem ele, o mundo era menos um. Para aquele só soldado, a Terra tinha deixado de dar frutos. O Sol se punha e os olhos pediam perdão. Suas forças se redimiam encostadas ao travesseiro. A noite seria longa. Estrelada, sem luar.


O que mais o perturbava era o facto de não estar em nenhum lado. Via o Sol a sumir por debaixo duma linha que parecia não ter fim.


Ele se tinha esgueirado para um buraco bem fundo, bem longe de si. Era dele o casaco cheio de medalhas e de condcorações. Só ele e o abismo em que se afundou - a maldade do outro lado da linha nifinita.


Fugiu, escondeu, matou e se defendeu... A Alma não lhe soprava no peito.


A avenida era a cama que nunca teve. Mais confortável que a terra batida dos caminhos repisados pelos carros de combate. A folha de jornal fornecia-lhe o conhecimento... a folha de jornal não seria o sonho?... parecia-lhe impossível não haver um fruto dentro de si...


Em seus olhos as ruas permaneciam vazias silenciosas e intactas. Dir-se-ia que se conservara até ali... até à vida... até à linha infinita!


Bárbara Patrício

domingo, 18 de outubro de 2009

Melville


Hoje Ó mundo…

Apenas vazio…
Silêncio…
Ao som débil de uma cantiga

mundo que te escreves a ti com M (maiúscula)…

Baleia branca! E um grito perdido no nevoeiro!
Melville!!!
Capitão…

Sing! Sing! Sail! May god embrace you!

And bread again…


Branca de ódio e de pavor! o teu mist foi a tua viagem...


Nuno Monteiro

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Bertolt Brecht


"Não há pior analfabeto que o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. O analfabeto político é tão burro que se orgulha de o ser e, de peito feito, diz que detesta a política. Não sabe, o imbecil, que da sua ignorância política é que nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, desonesto, o corrupto e lacaio dos exploradores do povo."

Bertolt Brecht (1898-1956)

domingo, 11 de outubro de 2009

A Terceira República



Sei dum barco e do seu capitão
E duma concórdia mansa
Do silencioso salitre
Como uma bomba cinzenta…
Sei dos olhos do capitão
Sorrisos de choro
Um enxame de corvos…

A mulher morta debruçava o altar e dedos trémulos abraçavam a santinha…

Sei do peso… da fome e dos sonhos!... em joelhos dobrados!
Sei da vida… essa podre insensatez!

Da pele gretada e do salgado no mar
Navegava às escuras por sobre um manto de estradas
Arengava as débeis mãos às estrelas
Que o nunca ouviam!

(o barco que não é um barco e o capitão decapitado numa imbecil trincheira)

O deserto tira a sede mas é a traição quem sepulta a bandeira…

Esmorecia a santinha por sobre a morte da mulher que se esticava ao altar

Ele!
Ele apenas queria incentivar as pequeninas luzes!
Nuno Monteiro
Imagem: Paula Rego - Three blind mice

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Vou contar o meu sonho...



Sempre que ao meu lado !comigo! convivem os saudáveis e os etéreos… num vagar de um tempo lasso… de um tempo quente e húmido… tal qual a música… tal qual o verbo… às vezes sozinho… outras vezes rodeado de cores… outras vezes (estas vezes as minhas preferidas) … instantes fugazes! tão próximo de ti! Ou em sussurro…quase em abstracção! Quase em agonia! No meio dum escuro… do abastado alabastro…


!O pobre menino pende na beira da ponte deitando suas lágrimas ao vento…!


Sempre que do meu interior vertem as lágrimas por ti derramadas… espera um pouco… conseguirei eu abstrair… não quero falar-te de poços nem de fétidos sorrisos! Não! Decididamente. Sempre que de mim se acerca um formigueiro que se não comporta como tal… sempre que de mim se acerca uma etérea e deletéria esperança… eu finjo sorrir-lhe… e por momentos sigo o meu caminho. Nesses instantes em que o meu tecido vivo quase te abraça!

A mãe sufragada de trabalho ainda tem que ouvir rugir esse incontrolável patronato…

E tudo porque dentro de mim eu sou apenas criança… e tudo porque dentro de mim há um instante apenas de sossego… tudo porque dentro de mim confluem todos os adamastores… e porque ao fim da estrada … ao fim da estrada… temo e fujo quando me encontro só… porque ao fim da noite… impulsivo e descontrolado… bocarra colada ao fundo vítreo da esterilidade… tudo porque ao fim do meu texto… tudo porque ao fim da esperança… para lá da música e da dança… enfim!


O vento secou as lágrimas e agora é o rapaz quem se alça ao vento.


... caminha indecente e seco por sobre um domínio de morte…
e diz a mãe! O meu mundo é este meu patrão! A minha vida é a minha produção! e isto Enquanto lhe arde o peito...


Para lá da musa dançarina… para lá dos caminhos e dos sorrisos escarninhos… se me não consigo ver liberto dos meus muitos adamastores… se bulem comigo os milagres de Cristo e se namoram comigo as coléricas malhas encarnadas de tuas unhas pintadas… porque acordo sobressaltado à vista dum enorme fragor…
Um baque surdo de duro mineral assinala o fim e o silêncio… as asas do homem têm tão efémera vista…


Porque:


A fábrica é uma pança gorda que tudo engorda e tudo trucida…
Porque:
A vida o abandonou e os sonhos que o não alertaram…

Então vamos ao sonho (parte dois) – um “aprés” desgraça


Um chão qualquer e uma vela cortando a imensidão da noite! Dois ou três pomos de laranja espalhados aqui e além… paredes de pedra num montado tosco! As tuas pernas prenhes e grávidas… uma camisola de lã que te esconde o leite… túrgidos mamilos eleitos entre cúmulos – pendida sem peso entre nimbos e limbos – invente-se pátria já! Invente-se dor de parto! Já!
Descubra-se a volta do tempo ou passe-se para lá do tempo… numa outra paris… fume-se nova arremetida!
A tosse da mãe é de tuberculose é de pulmão é enfim… de escarro… a tosse da morte é da cama duma pobre pátria … corujas e abutres… ela! Pele calejada e um saco de mar em vez da face…
Quero uma cantiga e a vela pequenina luz etérea marcando a tua presença! Não quero estar sozinho… não quero ficar sozinho… não quero casas de acolhimento… não posso dizer sim! não posso dizer não… posso gritar mas nunca voarei… sei que nunca conseguirei partir os muros…
Pessoas tão penteadas inventam passeios saltitando entre olhares e
Salpicos de renda numa melopeia de pele – pintadas unhas de pés erectos enquanto os olhos…
Por trás das lentes por trás das mentiras…
Centopeias de faltas e de cobardias!


Mas tu! Porém tu! em teu útero inteiro e intacto – delgada e fina pêra de novos vivos pequeninos passarinhos…
E tu! então tu! podes contra a faca que corta a morte – podes semear novos olhares e novos povos! Podes ser mãe e guerrilheira! As duas montanhas do mundo – da tua poesia quem sabe não viverá novo reino! Da tua poesia um novo reino…

!Que engula a morte que erradique a pobreza que seja Nobel…!
Nuno Monteiro
Imagem - O sonho - Pablo Picasso

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Better Man - Pearl Jam

mais elementos mais


afinal sempre chegou...

"a minha será sempre uma face de belo e uma face de horrível, a minha luz será sempre uma luz que cerca e sufoca..." ou não seria a minha face!ou não seria a minha luz!
quem vês não sou eu, é quem eu deixo ver, quem eu deixo parecer que sou. só sou eu no meu ninho, nos meus voos de ave liberta e libertadora, o que vês é tão-só uma sombra da ave, presa e predadora...
sem luz não se me abrem as asas

sem luz não se me abrem horizontes

sem luz sou ave de rapina

sou abutre
com luz

...

gaivota

...
muitas vezes eu não sou eu, sou outras... numa unidade que é dualidade.
"ao fim da estrada é a mim quem vês banhada em lágrimas"... lágrimas de alegria porque cheguei ao fim da estrada.


A negra e escura estrada que é o ermo lodoso onde me deixo deslizar durante todos os dias moles de purgatório e de penas.


Mas hei-de chegar, definitivamente, ao fim!!! E nesse dia, serei gaivota eternamente livre.


Dina Cruz

domingo, 4 de outubro de 2009

O que é a literatura?


«¿Entonces qué es una escritura de calidad? Pues lo que siempre ha sido: saber meter la cabeza en lo oscuro, saber saltar al vacío, saber que la literatura básicamente es un oficio peligroso. Correr por el borde del precipicio: a un lado el abismo sin fondo y al otro lado las caras que uno quiere, las sonrientes caras que uno quiere, y los libros, y los amigos, y la comida. Y aceptar esa evidencia aunque a veces nos pese más que la losa que cubre los restos de todos los escritores muertos. La literatura, como diría una folclórica andaluza, es un peligro.»


sábado, 3 de outubro de 2009

A Abóbora menina



Tão gentil de distante, tão macia aos olhos

vacuda, gordinha,

de segredos bem escondidos

estende-se à distância

procurando ser terra

quem sabe possa

acontecer o milagre:

folhinhas verdes

flor amarela

ventre redondo

depois é só esperar

nela desaguam todos os rapazes.


In Ritos de Passagem, 1985


sexta-feira, 2 de outubro de 2009

A República


(...)
Ferido de morte, um revolucionário civil agonizava na rua, junto a um prédio do Rossio, a praça principal de Lisboa. Estava só, sabia que não tinha qualquer possibilidade de salvação, nenhuma ambulância se atreveria a ir recolhê-lo, pois o tiroteio cruzado impedia a chegada de socorros. Então esse homem humilde, cujo nome, que eu saiba, a história não registou, com uns dedos que tremiam, quase desfalecido, traçou na parede, conforme pôde, com o seu próprio sangue, com o sangue que lhe corria dos ferimentos, estas palavras: “Viva a república”. Escreveu república e morreu, e foi o mesmo que tivesse escrito: esperança, futuro, paz.
(...)


quinta-feira, 1 de outubro de 2009

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

O Livro dos guerrilheiros


(...)
Se os verdadeiros escritores da nossa terra exigirem a certidão da história na pauta destas mortes, sempre lhes dou aviso que a verdade não dá se encontro em balcão de cartório notarial ou decreto do governo, cadavez apenas nas estórias que contamos uns nos outros, enquanto esperamos nossa vez na fila de dar baixa de nossas pequeninas vidas. (...)

José Luandino Vieira, O livro dos Guerrilheiros, edição Caminho

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Unhas pintadas de encarnado...


Unhas de um vermelho alegre e vivaz!, pintadas… de um encarnado limpo e vivo! E uma seda feita () repousando-lhe tão ao de leve pelos seios… nem muito grandes estes… apenas graciosos! Ela ri quando a seda julga que se destapa
e
logo após – com um ciciar engraçado nos olhos azuis marinhos – num fundo de mar e numa areia branca – com um sopro de vida em torno dos olhos marejados de sorriso… é ela quem surge quando se anunciam as unhas pintadas de encarnado… é ela quem entra de meias descalças e de cabelo ao vento. é ela quem anuncia ao fim dos espaços ao fim dos risos. é ela quem sufraga o teu coração. !É ela a mulher alta varina! É ela a imponência dos pés e a pele castanha bronzeada – um altar ao tempo como água que lhe escorre pelo colo e lhe socorre os seios com os braços valentes.
E
logo depois – com um ar de criança encerrada no corpo adulto da mulher – presa infinda dos fundos azuis das areias castanhas de coral – é ela! Só pode ser ela! Quando encolhe o pescoço e deita fora o sorriso – esse sorriso – esse adeus – esse tirano. Quando atira olhares ao longe como se quisesse mais e mais céu! Mais e mais azul! Essa toda intensa cristandade – essa toda intensa tez
(amarela dos cabelos muito castanhos muito secos)
Choram os tempos duma lívida insensa tez
Quando ao fim do dia se instrui e encerra o livro
Quando ao fim da noite se engana e pinta por cima do vermelho
Quando ao cabo da viagem se afunda nas rosas até lhes tomar todos os espelhos
Logo após… bramindo das pernas … tatuadas por sinal!
Tiritando de frio… sorvendo vapor do vaso do calor…
E descerrando a saia
Alçando acima das pernas para além da figura…
Apenas as nádegas, nada mais que as nádegas
E um raio de luz…

Coroando o frio – adensando o mistério!

Nuno Monteiro

A Dona Olga e eu


Mora aqui, num destes prédios sem idade nem elevador, sempre vestida como para um baptizado ou um casamento, de boininha verde na cabeça, toda pinoca: nenhuma prega, nenhuma nódoa, um camafeu a fechar-lhe a gola, pulseiras, anéis, o caracol trabalhado sobre a linha de lápis castanho das sobrancelhas. Deixa uma cauda de perfume atrás, um sorriso difícil à frente. Rugas no lugar das covinhas das bochechas: que idade terá? Quase não se percebe a falta de dinheiro, quase não se percebe a solidão: domingos compridíssimos, o retrato de um sargento da Marinha na cómoda: isso vejo do passeio porque a sala é pequena e o rés-do-chão baixo. (...)


António Lobo Antunes - crónica: in http://aeiou.visao.pt/a-dona-olga-e-eu=f526420

sábado, 26 de setembro de 2009

O Poço - Nuno Monteiro


Porque o mar das dúvidas é mais forte que o mar das certezas!... porque nem todo o conhecimento te purificará quando em tua volta pulular o medo... porque toda a tua beleza esbater-se-á!... envolvendo um outono cinza chuva... porque adorna e afunda toda a nação!...balsando de borco ante o fastio dos tempos... porque água alguma chegará para te purificar!
e.
do poço...desse desprezo... desse calabouço...
da vida... desse belo-horrível!
entro espelho adentro e vou bater ao outro lado
à outra noite...
ao sítio do mel e das estrelas
ao oásis autista
ao circo prodígio
ao meu marão maravilhoso
e
enquanto em mim repousar leitura
quererei gritar!
(ao menino dos olhos grandes e de abraço descomunal)
germinal...
internacional...
!pula e salta por dentro de mim!
Obrigado!


Nuno Monteiro

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Viagem ao fim da noite


Caí então doente, com febre, explicaram-me no hospital, enlouquecido pelo medo. É possível. Que de melhor temos a fazer enquanto andarmos por este mundo, não é?, do que sairmos dele? Loucos ou não, com ou sem medo?

Céline, Viagem ao fim da noite, edição Ulisseia


esta é curta! comentam ou não? loucos ou não? com ou sem medo?

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Livraria Trama - Lisboa


Tu, dentro do meu olhar…

O meu trevo é um trevo de quatro folhas e cada uma delas aponta um norte diferente cada uma delas aponta uma gota de chuva cada uma delas rasga uma diferente clorofila cada uma delas voa num vento distante – porém todas estão tão perto!

e.

Sei contudo que entre os muros há muros e por cima dos muros crescem muros e que todos esses muros… bem… desses muros… deixemos os muros… larguemos os muros…

e.

O teu trevo é uma canção o teu olhar vibra de emoção e toda a tua moral… toda a tua viagem corre pelos mundos e se te move o olhar… se te moves livre por dentro dos olhares…

Eu, por dentro do teu olhar!

Do meu pequeno recanto
(O meu tacanho recanto é realmente de uma beleza sadia extraordinária)
Do meu pequeno recanto abarco com a vista todo o rio que me cerca… com a vista que por vezes me cega e me deixa um pouco lívido… abarco com a vista e embarco na viagem. A viagem é o alcance da vida…
Do meu pequeno recanto escolho à vista barco comandante e equipagem. Destino nenhum, qualquer! A viagem o suco… do meu pequeno recanto. O meu pequeno regato. O meu encanto de solidão.
(O regato escuro do meu encanto é realmente de uma beleza singela)
Mas quem mais se deitará comigo? Neste nosso louco vento… ao luar! por cima do capim, por debaixo da aba da humanidade, por sobre um enorme toldo de circo – encharcado de água e perdido de vida – humanidade fria ventosa uma frágil face sorrindo uma ode por cima das águas.
Nesta minha vida toldo o circo das cores correctas e ouço as estórias trazidas pelo luar – sorrio quando me mostram o linho e o pão – inebriadas estórias de fugas e madrugadas inebriadas gazelas que me deixam inquieto no meu pequeno recanto
(o meu tamanho recanto é realmente…
A minha casa o meu jardim o meu espelho…)
Lá por fora moram os lobos! Rangem os dentes às pedras da viagem… magoas os pés de cada vez que corres atrás das estrelas… passam por ti milhares de cometas que te deixam o cabelo pintalgado de fogo… muitos são lobos por falta de opções… muita maldade polvilha as entranhas dos lobos… ao luar! Neste vento maldigo… afundados em escuridão homens confundem-se com lobos… por travo amargo do veneno… não deixas de cumprir tua viagem… mas quando cessas olhas tua face magoada e admiras-te com teus cabelos de fogo. Não. Não cessas tua viagem. Nada de ti abandonas… percorres os caminhos pisando com os teus pés. Como são belos os teus pés! Como és bela por cima dos teus pés!
(recanto tamanho este meu lago de serenidade…)
Sabes! O rio das águas não acabará nunca! E nunca os lobos poderão morder teus cabelos de fogo. Ou sequer teus pés lívidos. Gosto das tuas histórias. Gosto do teu coração…
O meu pequeno e inocente regato é uma capitania de navio… vogo num lago de lágrimas pela geografia da etérea literatura. E sonho com o caminho. Trabalho num sonho. Em volta de mim tudo é terra mirabilis. Em meio de mim nada arde tudo arde! Bebo da infantil e frágil face da humanidade ventosa… só as montanhas me assustam… só com elas me entendo…
(o meu pequeno regato é contudo…
… o mundo de todas as janelas as janelas de todos os mundos…)
Sabes que teus pés encerram todos os teus sonhos! Sabes que podes descalçar e correr areal… sabes que teus pés te podem içar ao navio e voar igualzinho ao andarilho… as tuas asas são os teus mundos… Do meu pequeno recanto! No meu pequeno recanto! Olho ao longe a brancura da noite e barulho ébrio no deserto de mescal…

É dessa ode que é um trevo que navegam todos os capitães e que cristalizam árvores para semear raízes…

e!

Destruir os muros destronar os guetos

e!


Loas de broa e lendas de linho … por sobre a mesa por todas as flores.


Texto que serviu de base à apresentação d'O Poço e d'O Elementos na Trama em Lisboa.


(discurso com alterações - !!deixei ficar os papéis com a Andreia!!)

A Rua!


Um espaço de tempo… um local imprudente… colchões amontoados por dentro de pinturas toscas… não num espaço de cidade não num espaço de subúrbio. Um espaço de toda a parte. Por toda a parte um mesmo espaço… Era a rua deserta! Quase uma rua bombardeada quase uma rua nua esburacada… sem ser na verdade uma rua…
então?...
também era um caleidoscópio de gentes, uma feira de emoções, um turbilhão de medos e angústias… poderia ser tombadilho de proa voltada para qualquer cardeal… fundamentalmente era um enredo… uma alma sentindo… um palanque falando…
e então? O que lá se via?...
um bando de pássaros cegos ganindo migalhas e salpicos de imagens que repicavam sinos e gonzos e nos molhavam a face… daquela rua quase deserta qualquer um poderia ver a vida! Pequeninos instantes fotográficos da vida. Da vida pequeninos… pequeninos vivos vivendo… bancos de jardim e olhos postos no cimento! Cores? Poucas! Quase sempre o cinzento. Luz? Pouca! Quase sempre o cinzento. Cheiros? Poucos! Quase sempre o cinzento…
Nuno Monteiro

Wonderful!! Wonderful!!

A Ruiva - Fialho de Almeida


“Dickens foi trabalhar aos doze anos para uma fábrica de cera; Genet foi acusado aos dez de roubo e enviado para uma Casa de Correcção. Fialho de Almeida, por sua vez, entrou aos catorze numa miserável botica ao largo do Mitelo, em Lisboa. Passava o dia a preparar venenos e à noite fechava-se num apertado vão de escada, nas traseiras da botica, onde dormia numa tábua rasa. Foi aí, nesse cubículo, à luz de uma vela, distraído de quando em quando por irritantes ratazanas, que Fialho fez a sua formação de escritor.”

António Cândido Franco, in Nota para o conto A Ruiva, Fialho de Almeida, Assírio e Alvim, 2005, colecção Beltenegros.

“-Nada de ajuntamentos aqui! Nada de ajuntamentos aqui! – E cada um foi para a sua banda, dando boas-noites. A triste espancada nem dava acordo de si. Corridas as primeiras curas das feridas, cada um foi dormir descansadamente e ninguém se lembrou de chamar o médico.
Sem o filho, sem uma pessoa que velasse por ela, a triste mulher revolvia-se nas enxergas, às escuras, em gemidos de dor e desvairamentos de febre.
E como de costume a manhã rompeu dali a cinco horas anunciando uma terça-feira de Inverno.

A Ruiva, Fialho de Almeida, edição Assírio e Alvim.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

A Rua


(...) A bondade é uma enorme construção fragilizada e de peruca – por debaixo da tão beata bondade jaz sempre uma cabeça careca imensa e um medo abrasador…


Noutro ponto da mesma rua uma rapariga de cabelos flamejantes. Acena os braços finos e sinaliza todos os faróis… Acaba de encontrar um menino selvagem esbracejando no lixo… e então a rapariga de cabelos ardentes. Olha enternecida enquanto preenche os papéis da adopção… sorri a rapariga dos cabelos (). Pega na papelada preenchida e


de sopetão que é só bravura


voa para o pé do trastezinho… aninha-se para o pé do menino… enternece de ternura uma multidão de infiéis! Carrega naquele momento todas as suas provas e
Quando lhe conta uma estória quando lhe sussurra ao ouvido sente os dentes rangendo sente a alma do menino em ebulição


E


Então ela não pára! Então ela não cessa! As sarças ardentes atingem as portas do céu… toda a água do mundo a inunda e a purifica


Porém


De repente o trastezinho move a face e (sem aviso)


Quando ela pressentia o beijo


Ei-lo de boca cheia de sangue! Ei-lo ganindo e fugindo … cospe o pedaço de carne da face da rapariga e nesse instante
Todo o fogo no cabelo morto (...)


Nuno Monteiro

sábado, 12 de setembro de 2009

João Palma Ferreira - os crânioclastas


"Foi quando nós entrámos. A luz abafada do fogo que morria pintava sombras na sala de frio.

Mas volto-me e vejo-o ainda sentado nos degraus do Monumento. O padre, de bronze, faz um aceno qualquer que ninguém decifrará, o gesto da estatuária inútil, a mesma que anda por aí há séculos abandonada em livros de antiquário. Vejo-o confusamente, como na sala do casino, como na praia nos vemos ou sob a amplidão fora do vidro fosco que sufoca ou abafa o nosso hálito. Curva-se interiormente no meu cérebro acompanhando a exacta concavidade dos ossos. Tento, em desespero, neste dormir opaco, tocá-lo, leve que seja, para lhe dizer como as palavras são necessárias entre os homens. Mas ele apenas se inclina com maior gravidade, recosta-se no cadeirão para escutar as frases estrangeiras que cavam túneis de horror pelo silêncio. Sinto, nos olhos, a prisão do tecto e do zimbório que cresce, de vidro, na torre em funil por onde as frases se escoam; logo, reflectidas, regressam à obsessão de que partiram.

Fujo. Voo pelo descampado até à praia. Sigo uma onda de viés, nos folhos da espuma, mar que varre toda a costa mais rápido do que eu. Em liberdade, grito-lhe palavras de júbilo (não há crima ainda) e projecto o som por entre nuvens, ecos em rosas de jardim ou murmúrios em memórias do quintal; falo da humidade nos recantos da casa e do silêncio cortado pelo pingar da água. No pano verde de todos os prados lanço, em glória, o prazer das apostas, reis e valetes, ases e espadas, copas e oiros. Desfecho, na serra, pela boca fria da espingarda, as dez balas de chumbo que retinem perdidas pelas fragas.

É quando chego, fatigado, a altas horas da noite. É a mesma porta, sempre. Os batentes castanhos. É quando rodo a chave. É quando entro. Aqui. É quando subo a rampa ao encontro da mulher de fogo e ácido que me espera, no chão varrido de neve, atrás do laranjal."

António Gedeão - Poema para Galileu

Jorge de Sena - Glosa de Guido Cavalcanti



'Perchi' I' no spero di tornar giammai'

Porque não espero de jamais voltar
à terra em que nasci; porque não espero,
ainda que volte, de encontrá-la pronta
a conhecer-me como agora sei

que eu a conheço; porque não espero
sofrer saudades, ou perder a conta
dos dias que vivi sem a lembrar;
porque não espero nada, e morrerei

no exílio sempre, mas fiel ao mundo,
já que de outro nenhum morro exilado;
porque não espero, do meu poço fundo,

olhar o céu e ver mais que azulado
esse ar que ainda respiro, esse ar imundo
por quantos que me ignoram respirado;

porque não espero, espero contentado."

Jorge de Sena

Retirado de : http://blogdaruaonze.blogs.sapo.pt/20141.html

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

El Carretero - Buena Vista Social Club

Não passarão


Não desesperes , Mãe!
O último triunfo é interdito
Aos heróis que o não são.
Lembra-te do teu grito:
Não passarão!

Não passarão!
Só mesmo se parasse o coração
Que te bate no peito.
Só mesmo se pudesse haver sentido
Entre o sangue vertido
E o sonho desfeito.

Só mesmo se a raiz bebesse em lodo
De traição e de crime.
Só mesmo se não fosse o mundo todo
Que na tua tragédia se redime.

Não passarão!
Arde a seara, mas dum simples grão
Nasce o trigal de novo.
Morrem filhos e filhas da nação,
Não morre um povo!

Não passarão!
Seja qual for a fúria da agressão,
As forças que te querem jugular
Não poderão passar
Sobre a dor infinita desse não
Que a terra inteira ouviu
E repetiu:
Não passarão!

Miguel Torga, Antologia Poética, Círculo de Leitores, 2001

Civilização ocidental


Latas pregadas em paus
fixados na terra
fazem a casa

Os farrapos completam
a paisagem íntima

O sol atravessando as frestas
acorda o seu habitante

Depois as doze horas de trabalho
escravo

Britar pedra
acarretar pedra
britar pedra
acarretar pedra
ao sol
à chuva
britar pedra
acarretar pedra

A velhice vem cedo
Uma esteira nas noites escuras
baste para ele morrer
grato
e de fome.

Agostinho Neto, Sagrada Esperança
Sá da Costa, Lisboa, 1974

Miles Davis

Aurora


As mãos grandes da broa do suor
Da mulher disforme e do trinado de luz
Do escuro da lareira e do avançado na noite
Os Golias do mar à mesa do luar
Percorre-os um frémito, calcorreia-os essa mesma vontade
Ouvi-os!
São grandes, ímpios de justiça
Partirão
Soltam as vozes com que comandam a madrugada
Erguem as taças e cumprimentam-se também
Cortam a broa e regam com mel
Ouvi-os
São lívidos de justiça, são das alturas do mar
Somem-se na refrega da primeira vaga
E entregam alvíssaras
Ulisses!
Estarei louco ou serão todos argonautas
Desapertam as cordas ao chegar da aurora
Berra o mestre do meio do mar
Padre nosso que estais no céu…

Nuno Monteiro

Foto: http://my.opera.com/tjfelix/blog/2008/02/25/o-porto-do-centro-da-invicta-ate-a-foz

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Os muros e os rios


Do sol veio o sal
E do sal surgiste tu
Vieste descalça como o vento
Chegaste defronte como ébano
Trazias cabelos flamejantes na noite
Sorrisos os olhos de um verde de mar
E nos olhos um sorriso

Chegaste comedida
Foste fogo foste lume que rasgou
Ficaste impressão indelével no espírito da terra
Tu, sal da minha vida
Ébano e tentação
Serás vida serás morte?

A morte não ri como tu
Do sol vem a vida
A morte não aquece nem se move como tu
Do sal só teus lábios
Dos teus pés descalços e das tuas sarças de fogo
Só o sal chora os muros e os rios
Nuno Monteiro
“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

Prémio Histórico - Filosóficas

Arquivo do blogue