sábado, 24 de outubro de 2009

Rodófitas são cabelos em chamas




A pequena anella olhava seus pés com espanto. Semi-mergulhada dentro da água do mar tão bravo. Prodigalizava-se em banhos de espuma e aqui e acolá… saltitando entre esta e a outra e ainda a próxima onda de espuma… era o sangue dentro de seu coração que a fazia mover. Chorava muito mas de fartura. Do pouco que a vida lhe dava. Sua cabeleira de cabelos ondulados. Não inundada de sol. Apenas molhada da água fria daquela praia do vento… ao longe marulhavam os navios que carregavam pedaços de enormes costados. Ainda mais ao longe sabia dum mar prenhe de sereias e de utopias tão túrgidas quanto os quartos de brinquedos e as lufas de capa e espada. Anela sempre fora a menina espadachim. Sempre magra! Sempre orgulhosa! Sempre viva. De olhos do mar.
Entretanto crescera e quando os olhos dela olhavam…


(Naquele momento, naquele instante, naquele sol daquela praia… ela era da baía de luuanda… tão distante da ponte, das tábuas, do pó.)


A Anella do corpo franzino auscultava seus pés com espanto. Meia ave meia mulher era ela quem se debatia entre as ondas daquele mar tão bravio. Soprava contra o vento como se daquele sopro… como se da ténue força daqueles pequeninos pulmões… como se dum Divad. Apontaria sempre à estrela. Apontaria sempre à utopia. Era assim que ela mergulhava e deixava ao salitre seus cabelos de chamas da cor das rodófitas.


(morava na ponte, por baixo, entre a terra amarela inclinada e o vão! Por cima de umas tábuas velhas…)


Sempre fora espadachim sem a espada. Tarde de mais para a empunhar. Substituíra-a por uma pena. Inútil pena que não comoves… Não havia vivalma na praia. Sussurrava aos pássaros. Gigantes alados que lhe pisavam todo o areal.


(homens com asas destruindo todos os castelos todas as fronteiras todas as torres…)

Arrastava-se graciosamente para fora de água. Deixava na areia pequeninas pegadas. As pequeninas marcas dos seus pequeninos pés. Pena que as unhas pintadas de encarnado não se deixassem gravar na areia. Pena que aqueles pés que Anelle olhava com espanto! Não coitados! dos pés que anella usava com orgulho! Mas pena que esses pés… a contradissessem em tudo e a arrastassem sempre de volta ao início. Sempre de volta ao frio. Sempre de volta à origem.


(por cima de umas tábuas velhas… sim era aí onde ela morava… entre o chão batido de terra e o vão…)


Assim era anele! Assim é ANELE. Assim será elen! Uma outra fada anairO. Mais seus belos cabelos teimosos como rodófitas. Longamente contemplando seus pés pequeninos e redondinhos. A pequenina mulher que ousava saltitar entre espumas de onda.
E enquanto corria e sorria pelo areal! Quanto daquele sorriso! Aquele trigueiro corpo deixava uma cauda, uma cabeleira – dir-se-ia um cometa – era sem dúvida da chama! Das chamas que são seus cabelos. Não sei se dos cabelos! Não sei não! Talvez seus cabelos rodófitas sejam prolongamentos neuronais. Talvez aquelas chamas sejam ideias. Florestas em lugar de mesopotâmia! Pequenos lustres de fogo coroando toda aquela magreza.
Sim! quanto daquele sorriso! Não é bocado que falta no meu e no teu…

Nuno Monteiro

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“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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