sexta-feira, 6 de novembro de 2009

O odor das Camélias...



Tão difícil mergulhar mais cedo nos olhos de mar daquela donzela. Mergulhar mais fundo nos olhos negros da donzela sossegada… dona das camélias. Tão árduo… olhar mais fundo nos olhos irados daquela alma vazia. À volta só Camélias. Só Outono. Pelo chão… invernia pelo chão. Difícil e árduo! O corpo inerte da donzela que fixava docemente o olhar nos portões fronteiros da propriedade. Chorava de saudades. Vazia ficara. Voltara costas à vida. Dentro dela não era Outono. Dentro dela não sentia o calor do verão. Dentro dela. Dentro () nada. Era a donzela sem sentido. Segurava nas mãos um pequenino crucifixo?! Mãos frouxas e bamboleantes. Dentro das mãos não havia sequer um minúsculo ponto de encontro. Segurava o crucifixo enquanto as gordas flores das camélias caíam de tão maduras. Bem zia-se quando algum pardalito piava ali defronte dela defronte do portão.


(maldita a madrugada em que o vento aziago o levara… para sempre…para sempre… para sempre)


Tão árduo quanto impossível porque a vida da donzela fechara qual botão qual flor que resistia ao passar das estações. Correntes de ferro tornavam-na órfã. E ela órfã ficava. Segurava o crucifixo entre os dedos. Dedos dormentes de resto como os olhos de resto como a boca. Boca donde não saíam palavras. Boca donde não saíam formosas…


(maldita a madrugada em que o vento aziago o levara… talvez para sempre… chorava um leve vento quando o imaginava para sempre… impelia-a um doce cheiro a camélia!)


“Não havia forma de conhecer no passado dela.” “Não havia forma de conhecer no futuro dela”. Porque a leve donzela não existia fora daquela sombra fria das camélias. Porque a donzela não tirava os olhos do portão vivo e saudoso. Ventos havia em que arrastava o seu olhar no sentido do horizonte! Dele esperaria sempre ver surgir algo mais… Dele esperaria sempre… algum pardal… alguma ave… enquanto maldizia as aves esperava ardentemente por elas. Uma alma inteira! Vazia e plena. Carcomida e cheia! As mãos frouxas encerrariam uma espécie de força incomensurável. Mas a não usava. Mas a não sentia. Mas a não queria. Ou melhor. As mãos nem dela eram. As mãos não comunicavam aquilo que o corpo pedia. As mãos pediam o que a saudade não deixava. A saudade queria o que as camélias não lhe podiam dar.

(maldita a madrugada em que o vento aziago o levara… teria sido o vento… teria sido o tempo… teria sido ela…)


“Não havia forma de conhecer no passado dela”. “Não havia forma de conhecer no futuro dela”. Porque a donzela levara consigo o seu olhar. Olhos abertos ao vento que se abriam só para ela. Só para dentro. só para o fogo. Consumir-se-ia no seu próprio fogo até quando? Consumir-se-ia no seu fogo. Fora dela, frio. Outono. Uma película de folhas e de flores mortas pintavam todo o chão.


(todos ouviram o vento soprar aziago enquanto dela se despedia e dela se apartava. Todos ouviram…)

O mais espantoso! A nobre donzela não queria que ele viesse! Chegava-lhe e sobrava-lhe a esperança que dele fazia. Erguia-se entre ela uma força irresistível – a da ausência. Era o domínio do sonho que a compungia. E lhe dava alento. Vivia duma força de nada. Impossível! Possível. Ali estava a nobre donzela. Ali vivia! Naquela espécie de eterna eternidade. Verdade? Possível! Simsimsimsimsimsim. Cada vez mais pequenino, passadas as estações.

(havia um invólucro de mulher velha por detrás daquela alma nobre)


E se havia perdido tudo! Perdera? Com quem falaria? O pintor desenhara-a como a alma gémea do medo. A tudo preferiria sempre a ausência. A Tudo preferiria sempre a funda fossa do frio. Interpunha-se entre ela e a vida. Frio. Não sentia frio. Medo. Sabia que sim. Medo. Arriscara-se a ter perdido tudo. Alguma vez possuíra algo? O quadro só fazia questões… a invernia era da mulher.


(aquela mulher nobre só era por detrás dum cavalo dum cavaleiro no mundo etéreo do sonho)


Tão difícil por vezes penetrar num quadro. Numa face. Tão demorada é a humanidade. Tão cheia de certos e de errados. Tão cheia de cheios e de vazios. Ao mesmo tempo tão coragem e tão fria. Ao mesmo tempo tão sangue e tão inocente. Nãonãonãonãonãonão. Todo um mundo que era um mundo dela se desenrolava bem por dentro da vida que era a vida dela. Todo o mundo. O dela. Tudo num quadro. Na imortalidade dum quadro. Tudo num tempo. E num espaço.


(e contudo. Tão perto daquela mulher. Ali pintada a óleo! Um cheiro intenso. Um sabor imenso. A Camélia. A Camélia)


A camélias sempre…
que seriam sempre suas e teriam sempre o doce aroma do dia em que, pela primeira vez, fora sua…
O seu aroma.
O aroma das camélias virgens de saudade e solidão.
Plenas de vida e de fragor.
Doces de gemidos e carícias.
Frescas de beijos e de carnes entumecidas.
Sem o frio do Outono e o cheiro seco das folhas caídas nas pedras do caminho que ficou por percorrer…

Saudade e vazio.
Odor a camélias.
Solidão…

Nuno Monteiro e Dina Cruz

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“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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