Rodeado de grades. Sentia tanto inverno dentro dele. Queria estar fora do mundo. Olhava ao longe o mundo a conversar. As gargalhadas inclementes. Os corredores e as portas da vida. Sorria mas só por vezes. Sempre conseguira segurar as forças. Sempre arranjara forças para segurar as suas forças. Agora nem o papel. Agora nem a chuva. Nem a água. Era como se procurasse ser banhado mas não quisesse realmente ser banhado. Ou como se procurasse a luz mas lhe não interessasse a luz. Estava farto de tantos corredores, sufocado de mentiras e de faces. As mil e uma faces da traição. Bem sabia que os homens não passariam nunca de homens mas era essa a utopia. Era essa a montanha. A montanha mais elevada a que ele não conseguia escalar. Os bocados de montanha que ele, covarde, via serem levados por outros. A montanha coberta em sangue e sugada por ervas daninhas. A mágoa de viver. O horrível ensejo de subir a montanha sem, no entanto, nunca o conseguir. O vão desejo de pedir ajuda a um alguém que nunca viria. Que nunca existirá! Que nunca cá estará! Um desejo projectado num sujeito eterno, num sujeito perfeito. Essa montanha! Que nunca cá estará.
Rodeado de grades. Todo o inverno deglutido jazia dolente morando dentro dele. Sem saber a que porta bater. Odiado por todos. Menosprezado por todos. Odiando todos. Menosprezando todos. Um inferno em vida. As chamas num frio torpe! Homens com mil faces. Pequeninas bonomias e sorrisos podres.
Rodeado de grades. Para sempre detestando as pequeninas conversas. Ninguém o escutando. Ninguém o enaltecendo. Não escutando ninguém. Não enaltecendo virtude alguma?! O que existirá para além da traição? O que fazer quando se destapar a traição por detrás do homem? Que instante seguir?! A que porta bater?! Javalis com face de gente! Aos tiros. Aos tiros.
Alguém que nunca virá e então para quê pedir ajuda! Alguém que nunca te conhecerá e então para quê pedir trabalho! Alguém que te nunca abraçará e então para quê! Agora nem a chuva. Agora nem o papel. Agora nem o livro. Que agonia. Que entorpecimento.
O que fazer quando sabes que os dias te escorrem por caminhos esconsos. Quando os dias se sucedem a vertiginosas velocidades. Quando sovado enxovalhado. Quando a tua cândida luz já não alumia. Quando sabes que não escreverás nunca palavras nem frases. Quando sabes que de ti não sairá, vez alguma, obra alguma. Este é o desespero. Esse é o momento. Esta é a minha vida desvendada. Todos muito amigos quando são muito amigos. Todos tão quentinhos quando os dias estão quentinhos. Todos cuspindo aleluias. Todos tão humanos.
Rodeados de grades. Eu atiro o meu olhar ao longe. Mas não caminho o caminho. Não invento romances. Não os vivo sequer. Não faço de conta. Não pretendo ouvir o que não ouço. Não fecho os olhos à maldade. Não deito fora a minha velhacaria. Não conheço ninguém. Ninguém me conhece a mim.
Atiro-me de bruços nos braços da minha avó!
E acordo do outro lado. Do lado da minha infância. Na casa da minha avó. E revivo instantes. Momentos. Revivo e vivo dessas minhas visões. Sempre sozinho. Revivo das luzes que eram na casa da minha avó. Revivo dos cheiros da sala e do quarto e da cozinha e do sótão da casa da minha avó. Do sótão dos medos e dos baús de África. Do natal e da Páscoa e dos meus tempos de estudante. Da minha infância eterna. De quando eu era eterno. Pois. Acordo do outro lado. Gostava muito de contar estórias de África, a minha avó. Gostava muito de ver novelas, a minha avó. Gostava muito de perus e de natais, a minha avó. Havia um corredor e umas escadas de madeira quase preta, numa das casas da minha avó. E um buraco para o sótão, na casa da minha avó. Era um buraco que subia. Por umas escadas. E tinha lá o açúcar e o pão ralado e a farinha. Ao lado das escadas havia umas prateleiras com as comidas. E coisitas mais pequenas como os fósforos. E uma ou outra vela. Havia uma luz. presa do fio do tecto. uma lâmpada bojuda. incandescente. queimava se lhe tocassemos. claro que lhe toquei. e claro que me queimei. claro que por vezes. quando o anseio era tão grande. a escada balanceava. e então foi quando eu caí...foi onde eu caí quando era pequeno. Julgo que terei desmaiado. Lá, na casa da minha avó. Mas não me importei. Eram só tombos. E eu, então, era eterno…
Assim, por vezes, quando não encontro motivos em parte alguma da vida… volto a ela, à minha avó. É para isso que servem os avós. Bem… nem todos os avós. Mas esta minha avó sim.
Fico na casa da minha avó durante uma hora e já está! Já posso retornar. Já posso voltar ao trabalho. Pelo menos a minha avó. Uma vez telefonei-lhe. Mas não foi a mesma coisa. O telefone quebra o encanto. E a minha avó passa sendo outra pessoa qualquer. Não como a minha avó.
Mas na casa da minha avó Nunca me senti rodeado de grades. Pena que a casa da minha avó! Seja tão pequenina. E não dê para nós dois. mas ainda hoje eu penso. e se eu lá tivesse ficado agachadinho. sem fazer barulho. será que me esqueceriam lá?!
Na verdade este texto devia ser partido em dois. Porque se a minha avó é luz eu sou escuridão.
Nuno Monteiro
1 comentário:
Não és escuridão. Tens medo. Todos temos medo, em algum momento. Todos somos pequeninos, em algum momento. Todos no encolhemos,em algum momento. Todos queríamos voltar ao útero, em algum momento, ou a casa, aos braços, às palavras da avó. Mas o tempo passou. E também a nossa avó... Passou, mas deixou a sua luz em nós. A tua avó deixou a sua luz em ti. E a dela com a tua, fazem com que não sejas escuridão, ainda que estejas na escuridão. Viaja... Até à infância, até ao sótão, até às escadas... E sobe. E quando chegares ao cimo, encontrarás a alguém com uma lâmpada bojuda nas mãos, alumiando o caminho, ainda que se queime.
Já agora, vais escrever sobre?...
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