sexta-feira, 25 de junho de 2010

Vagar na noite


“batera a porta da casa com estrondo e desde então, vagueava pelas ruas despidas. Noite quente e abafada sem um pio. Lembra-se de quando chegou à avenida Nevski e sentiu uma espécie de nudez que a corava. Uma espécie de vergonha de se apresentar ali, naquele palco, tão magra, tão expectante… Todos os prédios e todas as casinhas e todas as bonecas dormiam ao soslaio de deus. A treva dá abrigo a uma espécie de sono pálido e farto. Encostou o ouvido ao tronco duma dessas tílas que vestiam a rua e não lhe ouvia vivalma. Dormia também. Esta noite parece morta! E contudo ela será viva muito para além da minha própria morte. Súbito um barulho, dali de perto, do chão… pôs-se à coca! Um pequenino roedor que empurrava uma bola de alimento. Um andarilho russo… Clara pensa, contrariamente ao pequenito eu não sinto fome! Nem mesmo este passeio pela noite me é capaz de sugerir fome… e como o olhasse nos olhos e lhe visse a inquietude pensou de novo para ela engraçado, também não sinto medo! Ainda não avistara ninguém… dormiam todos, talvez! Então porquê? O que os conduziria a eles a um sono perfeito. Emagrecida. Aliara-se à noite e quisera aprender um pouco mais com ela. Tentara senti-la. mas, à semelhança da fome que não conseguia palpar, não fora capaz de ver a noite. E pensava estranha esta minha vigília... onde estão as águas dos rios?
E então consentira num amanhecer ténue, lento. Como os passos que ia calcorreando pelas ruas. Olhava-os. Via-os. Mas não se lembra de os ouvir! Foi como ela passou por essa noite… de olhos postos no chão, aqui e acolá vendo os dedos dos pés… teria passado algum tempo desde que batera com a porta de casa…”
Os primeiros laivos de luz trouxeram-lhe ecos… cheiros a especiarias. Deixara de ser noite e, talvez por isso, soprasse algum vento. Afundou-se num banco de jardim. Encafuou as mãos entre a cabeça e num jorro, pensou para ela… tanto para agora chorares! Devias saber que esse fascínio, esse delírio supremo finda como finda a beleza e a jovialidade. E depois? Ao fim do éter sobram farripas de cheiros, sentidos que cristalizaram numa espécie de vazio, no vagar da noite…
Clara lembra-se de pensar como é linda a noite, como eu quase me perdi nas tuas vagas…

Nuno Monteiro

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António Lobo Antunes

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