Foi já ao anoitecer que ela abriu o baú e retirou de lá de dentro a carta que leria, de lágrima ao canto do olho… era um desses dias quentes de verão, abafado, um céu com nuvens brancas altas, surgindo por cima das montanhas como enormes cogumelos, como enormes explosões… estava confortavelmente sentada no alpendre da montanha. Ali tão próximo do céu… a aldeia não registava vivalma… o tempo tinha passado e até Clara, outrora viçosa… Essa carta, agora impregnada dum papel amarelecido, gasto, rezava baixinho…
“toco os teus dedos dos pés! Tão ao de leve como papilas enquanto tu, deitada, fechados os olhos, me mostras a barriga, branca, lisa, argila. Um cordame de costelas que lembra as descobertas, a manhã da vida. Os sinos tocam a rebate mas tu não ligas. Do céu estão caindo flores que tu não queres. Chega à aldeia o primeiro carro que te não liga nenhuma. Murmuras por entre as nuvens! O mundo mudou.”
E enquanto o mundo se ocupava mudando tu rias de mansinho. Tinhas quase quarenta anos. Ao fim desse tempo todo sabias, porque sabias ora então, eras robusta e bastante inteligente e por isso sabias que haveria sempre argila. E uma espécie de inocência ao olhar. Sabias como enganar o mundo. Quando no adro, montavas a tua capa de durona. E golpeavas “nada nunca muda – tudo é obra do diabo!” eco ensurdecedor libertando o odor do medo… porque tão óbvio…
De volta de ti, todos os outros, ratos, miúdos, moviam os braços como quem soletra o sinal da cruz.
A montanha, coberta de um cinzento escuro de chuva, trazia-a de volta de cada vez que derrubava trovões que inauguravam a noite. Clara, agora idosa, deixava a janela aberta e entretinha-se a olhar os clarões súbitos…
Nuno Monteiro
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