quinta-feira, 17 de junho de 2010

Calçada de fome



Clara descia a calçada. Moça jovem de rosto largo e cabelo muito preto… Deambulava com fome. Sangrava. Enquanto isso, em sentido contrário, havia outros que se enfartavam. Esses nada faziam, também nada significavam para Clara. Algumas moscas na ventania…. Deles, nem uma cantiga reteria. A calçada exibia pequeninas casinhas e gente pulava de lá de dentro. Diziam: Ó ti maria! Já que vai à venda, traga graxa para os sapatos e mande meter na conta cá de casa . E enquanto os ricos subiam, Clara descia -a. Preocupada mas que irei fazer quando chegar lá abaixo? Onde irei? Com quem falarei? Sentia fome. Outros ocasionalmente lhe diziam, Clara fazes sempre perguntas a mais… assim não pode ser. Muito magrinha. Era sempre uma correria essa vida dela. E quando escorregava ou lhe salpicavam os olhos com a brancura do calcário. Toleimava e pestanejava para não cair… nessa Lisboa tão cara! Quando fora que comera a última côdea de pão? Um dia, dois dias. Como Clara se sentia fraca… os olhos prendiam-se-lhe aos pormenores. Olhava, por exemplo, para as mãos sapudas dos homens que saíam dos carros caros. E tentava enganar-se pensando… também eu um dia comprarei um desses pares de sapatos de salto alto, com anilhas que se enfeitam pela barriga da perna… e esboçava um sorriso… lá no fundo, Clara sabia que nunca poderia vestir caro… bem lá ao fundo Clara saberia que só a vista do Tejo a acalmaria. Nunca um par de sapatos. Mas a dor de barriga… a fome, essa puta velhaca não a poderia desafiar menos…
Erguia-se ante Clara a Biblioteca de Babel… uma colossal construção livresca. Ao topo, como um mastro, reinava Borges. Esse mítico. Clara não podia evitar que uma nuvem a toldasse. Era a fome. Essa velhaca. A que a não deixava escrever. A que a imbecilizava. Era a fome. Tinho sido a fome toda a vida. Apesar do apelo de Borges. Apesar da calçada que se estendia lânguida até ao enorme Tejo. Clara possante nada podia.
Só no mundo dos sonhos Clara poderia finalmente ser clara…
Então tropeçaria… e ampará-la-iam dois braços fortes raçudos. E ela diria! Quem és… já de olhos fechados, já no mundo dos sonhos… e então a farta cabeleira deixar-se-ia trespassar de poesia…

Nuno Monteiro
ilustração - Maluda

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“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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