O que fazes com as palavras? Clara move os olhos rápidos, trémulos. Guardo-as! Adormecem comigo. Essas palavras são as minhas bonecas. Que queres de mim? As palavras não são para ser ditas. Ouço-as e deito-as comigo. Apenas isso… tudo o mais é pó. Pó que cai das estrelas… E na noite, na noite clara e estrelada, construo os meus caminhos… sonho as minhas asas… bico as tuas galhas…
Clara está deitada na praia. São nove da noite dum dia de Agosto. Nada a liga ao bulício da cidade. Nada a liga à liberdade dos falsos. Por ora, entretém lavando os pés pequeninos e as pernas de veludo. Salpicam-na da espuma branca das ondas e esperam-na já os Meros, lá ao fundo, na calma da noite. Está escrito por todo o imenso mar…
Nuno Monteiro
quarta-feira, 30 de junho de 2010
terça-feira, 29 de junho de 2010
Pubs...
Por vezes olho atrás e vejo a mim com os meus olhos de então, os meus olhos dos meus College Years. Those were the days em que eu, vi e senti, quis e fiz, sobrevoei a amizade. Não pela metade, nem parei, nem me molhei. Os meus dias e as minhas muito queridas noites… Era apenas eu, um pequenito menino enfiado (dentro dentro dentro) de uma guitarra. Na minha mão esquerda vivia uma garrafa mágica que me embriagava. E na minha mão direita um volante, que quando me levava pela estrada, dizia a todos os meus amigos. A todos os meus amigos. Eram, então, toooooodos oooos meus amigos. De tal forma que, juro, então, eu não via senão noite! E estradas que dançavam. And bars and pubs… algures deve haver uma fotografia… algo segurará algures uma fotografia. Que me agarre dentro dela. Pois anseio tornar a ver as estrelas, tal como elas eram, sem disfarces… sem traições.
As minhas amizades de então, deverão ter galgado estradas fora e desapareceram. Outras, felizmente, ficaram. Malditas estradas…
Mas há décadas de amizades que não as levam as estradas. Ficam por perto e cristalizam minhas irmãs. E fazem da minha terra a minha estadia e do meu lar a irmã que eu nunca tive.
Em meio de flores, veria talvez uma aflição enorme. Clara usou esse dia para chorar. Ela é o que é. E o que é não será nunca pouco. Teria sido tudo um engano da sorte. Mas Clara ainda não o sabia.
Nuno Monteiro
segunda-feira, 28 de junho de 2010
Poema do gato
Quem há-de abrir a porta ao gato
quando eu morrer?
Sempre que pode
foge prá rua
cheira o passeio
e volta para trás,
mas ao defrontar-se com a porta fechada
(pobre do gato!)
mia com raiva
desesperada.
Deixo-o sofrer
que o sofrimento tem sua paga,
e ele bem sabe.
Quando abro a porta corre para mim
como acorre a mulher aos braços do amante.
Pego-lhe ao colo e acaricio-o
num gesto lento,
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele olha-me e sorri, com os bigodes eróticos,
olhos semi-cerrados, em êxtase,
ronronando.
Repito a festa,
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele aperta as maxilas,
cerra os olhos,
abre as narinas,
e rosna,
rosna, deliquescente,
abraça-me
e adormece.
Eu não tenho gato, mas se o tivesse
quem lhe abriria a porta quando eu morresse?
António Gedeão
quando eu morrer?
Sempre que pode
foge prá rua
cheira o passeio
e volta para trás,
mas ao defrontar-se com a porta fechada
(pobre do gato!)
mia com raiva
desesperada.
Deixo-o sofrer
que o sofrimento tem sua paga,
e ele bem sabe.
Quando abro a porta corre para mim
como acorre a mulher aos braços do amante.
Pego-lhe ao colo e acaricio-o
num gesto lento,
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele olha-me e sorri, com os bigodes eróticos,
olhos semi-cerrados, em êxtase,
ronronando.
Repito a festa,
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele aperta as maxilas,
cerra os olhos,
abre as narinas,
e rosna,
rosna, deliquescente,
abraça-me
e adormece.
Eu não tenho gato, mas se o tivesse
quem lhe abriria a porta quando eu morresse?
António Gedeão
Pó
Morre o homem. Finda a caminhada no deserto. Queda-se muda, doravante, a voz inquieta. Uma enorme lucidez e uma vontade tenaz. Morre um cacto, na ilhota larga, livre, infinda. Talvez agora, liberto para sempre do crucifixo que o golpeava, completas que estão as cerimónias fúnegres e para sempre transformado em Cacto ou em Oliveira, possam os outros homens, os que ficaram, sentar e abrir um livro, para ler.
Porque…
O homem que morreu:
Foi um andarilho que num assomo de felicidade o prendeu a escrita
Foi um livre pensador que nunca se deixou calcar
Foi um ser humano que nunca desistindo tocou a liberdade.
E porque
Esse homem que não findou:
Ousou ser e querer
E por isso lutou
Desgraçados os homens que o queiram julgar. Quem julga que pode condenar um escritor? Esses, os que o quererão calar, bem lá no fundo saberão, ainda que tarde, que se não corta o pensamento e se não matam os cactos… e se, bem sei, haverá sempre desertos, haverá sempre cactos crescendo devagarinho, tresandarilhando e procurando caminhos…
E,
Até as oliveiras, essas magníficas páginas
Ibéricas como ele,
Sugar-lhe-ão o pó das estrelas
Estrelas que pulsam num lento restolho e que encerram o combustível da vida. Mas há estrelas mais brilhantes, há estrelas resilientes
Apetece-me talvez afirmar:
Que o herói não morreu! Não, o pintor das almas pode ter calado, mas a obra fica! A noite clara, límpida, fria, quase austera, é uma carapaça rígida e triste onde se vêm as estrelas, e onde, por vezes, chove, uma água limpa e clara, que lava o cacto e lhe dá alento.
Encontrei, quase por acaso, Clara, ajoelhada, chorando, defronte de uma Oliveira, peregrinando as palavras acima transcritas...
Nuno Monteiro
sábado, 26 de junho de 2010
Sensação
No azul das tardes de verão, irei pelos caminhos
Tracejado pelos trigos, pisar a erva tenra:
Sonhante, sentirei a meus pés sua frescura.
Deixarei o vento banhar-me a cabeça nua.
Não falarei - pensarei em nada:
Mas um amor infinito subir-me-á na alma, e eu
Irei longe, bem longe, como um cigano, feliz
Pela Natureza -, na companhia da mulher sonhada.
Arthur Rimbaud in. "O Rapaz Raro" relógio d'água
retirado de: http://ocafedosloucos.blogspot.com/2006_05_01_archive.html
Tracejado pelos trigos, pisar a erva tenra:
Sonhante, sentirei a meus pés sua frescura.
Deixarei o vento banhar-me a cabeça nua.
Não falarei - pensarei em nada:
Mas um amor infinito subir-me-á na alma, e eu
Irei longe, bem longe, como um cigano, feliz
Pela Natureza -, na companhia da mulher sonhada.
Arthur Rimbaud in. "O Rapaz Raro" relógio d'água
retirado de: http://ocafedosloucos.blogspot.com/2006_05_01_archive.html
Salpicos de chocolate
Sábado,
vertiginosa queda a de Clara. Acordara em sobressalto e aclareara por dentro de um casulo cinza, pouco espaçoso. Despida, via a corrente fria de um rio. O último rio. Habitara os pés por dentro das águas. E por dentro das águas não havia o casulo cinza. Habitava-se à água e a pouco submergia… acimava-se do fundo pedregoso… curvava-se sobre as águas… pousava pouco a pouco no ventre silencioso. O romance que acabaria por escrever chamar-se-ia “por dentro das lágrimas” e o herói seria um gato oleiro.
(um burrico salteador, um carreiro longo e estreito e a já citada escultura em barro)
Domingo,
resplandesceria de fé, numa seara qualquer. O burrico dera-lhe a conhecer o mundo mágico de Blimunda.
Nuno Monteiro
sexta-feira, 25 de junho de 2010
Vagar na noite
“batera a porta da casa com estrondo e desde então, vagueava pelas ruas despidas. Noite quente e abafada sem um pio. Lembra-se de quando chegou à avenida Nevski e sentiu uma espécie de nudez que a corava. Uma espécie de vergonha de se apresentar ali, naquele palco, tão magra, tão expectante… Todos os prédios e todas as casinhas e todas as bonecas dormiam ao soslaio de deus. A treva dá abrigo a uma espécie de sono pálido e farto. Encostou o ouvido ao tronco duma dessas tílas que vestiam a rua e não lhe ouvia vivalma. Dormia também. Esta noite parece morta! E contudo ela será viva muito para além da minha própria morte. Súbito um barulho, dali de perto, do chão… pôs-se à coca! Um pequenino roedor que empurrava uma bola de alimento. Um andarilho russo… Clara pensa, contrariamente ao pequenito eu não sinto fome! Nem mesmo este passeio pela noite me é capaz de sugerir fome… e como o olhasse nos olhos e lhe visse a inquietude pensou de novo para ela engraçado, também não sinto medo! Ainda não avistara ninguém… dormiam todos, talvez! Então porquê? O que os conduziria a eles a um sono perfeito. Emagrecida. Aliara-se à noite e quisera aprender um pouco mais com ela. Tentara senti-la. mas, à semelhança da fome que não conseguia palpar, não fora capaz de ver a noite. E pensava estranha esta minha vigília... onde estão as águas dos rios?
E então consentira num amanhecer ténue, lento. Como os passos que ia calcorreando pelas ruas. Olhava-os. Via-os. Mas não se lembra de os ouvir! Foi como ela passou por essa noite… de olhos postos no chão, aqui e acolá vendo os dedos dos pés… teria passado algum tempo desde que batera com a porta de casa…”
Os primeiros laivos de luz trouxeram-lhe ecos… cheiros a especiarias. Deixara de ser noite e, talvez por isso, soprasse algum vento. Afundou-se num banco de jardim. Encafuou as mãos entre a cabeça e num jorro, pensou para ela… tanto para agora chorares! Devias saber que esse fascínio, esse delírio supremo finda como finda a beleza e a jovialidade. E depois? Ao fim do éter sobram farripas de cheiros, sentidos que cristalizaram numa espécie de vazio, no vagar da noite…
Clara lembra-se de pensar como é linda a noite, como eu quase me perdi nas tuas vagas…
Nuno Monteiro
quinta-feira, 24 de junho de 2010
O ruído dos pássaros
Viste? Por que não abrandaste? Esborrachaste a porcaria do pássaro…
(tanto por causa de um mísero)
Silêncio súbito! Perde-o da vista e
Tanto por causa dum mísero…
Enquanto mandava arriar as velas e lançar âncora, sujeitinhos doidos perdiam-se por esse mundo fora pensando mas que porra valerá a vida de um pássaro. Num palco ali por perto um montículo de ciganos erguera um acampamento e tendo já os miúdos a dormir, preperavam-se para as cantigas…
Clara diz, uma vez mais! Olha… sabes que eu não acredito que aqueles ciganos matassem o pássaro. São homens como tu mas as asas que os transportam são de anjo! E dito isto deixou que o vento lhe enfunasse as velas e a afastasse ao largo…
Nuno Monteiro
Carícia
Uma perna esguia ao fundo da qual
Um pé
Espreitava
E duas mãos
Que o acariciavam
E gentilmente concediam
Ao pé
E à perna
Um travo
Fastio
Convulsão
Feitio
Uma perna funda ao esguio da qual
Uma língua
Tacteava
Enrubescia
Encandeada
Acobreada
Essa serpente
Emplumada…
Que cortava a onda ao de leve
E se entregava
Subtil
Ao jogo
Do amor
Nuno Monteiro
Um pé
Espreitava
E duas mãos
Que o acariciavam
E gentilmente concediam
Ao pé
E à perna
Um travo
Fastio
Convulsão
Feitio
Uma perna funda ao esguio da qual
Uma língua
Tacteava
Enrubescia
Encandeada
Acobreada
Essa serpente
Emplumada…
Que cortava a onda ao de leve
E se entregava
Subtil
Ao jogo
Do amor
Nuno Monteiro
quarta-feira, 23 de junho de 2010
Escrever
Antes que seja tarde, devo dizer que considero o acto de escrever pouco saudável.
E gostaria que o tom fosse considerado como um desabafo, e não confessional.
Decorrido meio século de existência, aprendi a coabitar comigo mesmo.
Quer essa relação se assuma como um comovido flash back, ou um severo ajuste de contas.
Felizmente, sobra-me mais tempo para esquecer do que para emendar.
Decorrido meio século de existência, li e escrevi o suficiente para considerar a escrita – como qualquer outro acto criador – antropófaga até à vileza.
Ninguém se surpreenderá se afirmar que a minha geração superou esse objectivo.
Excedendo-se no show off, ou no striptease onanista, onde um predisposto auditório se reconhece e excita.
A leitura das gerações que me precedem, em nada tem contribuído para perturbar, ou abalar, este assumido preconceito.
Os Pessoa, Kerouac, Ginsberg, Hemingway, Michaux, Aquilino, Cardoso Pires, o exaltante Saint-John Perse, ou o inevitável Herberto, todos me recusaram uma escrita límpida e saudável.
Até mesmo em O Sorriso aos Pés da Escada, o único Miller que conservo, a beleza é perversa e sublinhada por um fio de pus.
Todos eles me envenenaram uma predisposição que começou por ser saudada na escola, e onde a família se conformou em depositar esperança de que continuasse a ser bonita.
E, sobretudo, que tivesse futuro.
Antes que seja tarde, devo esclarecer que ainda hoje tenho relutância em considerar o futuro, e que me reservo o maior desprezo pelo presente.
Sem pretender a honestidade que, dificilmente, reconheço nos outros, arrisco que a escrita – como qualquer outro acto criador – precisa de vítimas.
E alimenta vítimas.
Jorge Fallorca, frenesi, 2004
Usos secretos...
"os seios, outrora (na ideia desse ingénuo ancião que os formou, que fabricou o mundo, e de quem uma inimizade secular me veda de pronunciar o nome), eram destinados à nutrição augusta da humanidade; sossegue porém, teodoro; hoje nenhuma mamã racional os expõe a essa função deterioradora e severa; servem só para resplandecer, aninhados em rendas, ao gás das soirées, – e para outros usos secretos."
in o mandarim, eça de queirós (da leitura diária)
Retirado de: http://contosexemplares.blogspot.com/
in o mandarim, eça de queirós (da leitura diária)
Retirado de: http://contosexemplares.blogspot.com/
Vento
A Clara é uma espalha brasas… fala muito alto, pelos corredores, mas bem lá no fundo tem medo. Tem medo de ir embora. Por isso é que, sempre que sai de casa, traz com ela duas velas de vento. Um vento horrendo que, quando fecha, a atira doente com uma crise qualquer…
Nuno Monteiro
Nuno Monteiro
segunda-feira, 21 de junho de 2010
Vrummmmm...
Vrummmm…
Clara! Serás capaz de me dizer, porque te cansas a escrever, quando te podias divertir, olhando as flores e os campos distantes, conversando de par em par sobre os mais diversos assuntos, sobre a lentidão da vida, sobre o sol e as praias, enfim… Clara distraída, olha por cima do computador, e indecisa, remete-se ao silêncio. Então ele volta à carga… Por que definhas Clara, nesse enorme pranto do qual não pareces conseguir sair. E de novo ela, distraída, tacteia o ar em busca de uma palavra, uma frase, algo que a sustente. Durante um pequenino tempo longo, entre eles, o ar parado, uma espiral de fumo, as olheiras na cara dela, na cara de Clara… e quando ele perdia as esperanças de se ver respondido… eis que Clara se manifesta, apenas para delirar!
Pirilampo ou borboleta! Quem acompanhará Ulisses, o meu Ulisses. Quem?
E ele, pernas inchadas na banheira, água espuma que lhe cobria os mamilos, grita! Vruuuuuummmmmmm enquanto acompanha o movimento com a mão direita… uma lâmina de água esvoaça da banheira e espalha pelo chão de pedra… não tens ninguém no mundo para ler essas tuas merdas…
E de súbito, Clara, esquecendo que está de pijama e de pés descalços, abandona a escrita e sai para o passeio. Um estrondo da porta enche o interior da casa. E logo após, um imenso silêncio.
Nuno Monteiro
Clara! Serás capaz de me dizer, porque te cansas a escrever, quando te podias divertir, olhando as flores e os campos distantes, conversando de par em par sobre os mais diversos assuntos, sobre a lentidão da vida, sobre o sol e as praias, enfim… Clara distraída, olha por cima do computador, e indecisa, remete-se ao silêncio. Então ele volta à carga… Por que definhas Clara, nesse enorme pranto do qual não pareces conseguir sair. E de novo ela, distraída, tacteia o ar em busca de uma palavra, uma frase, algo que a sustente. Durante um pequenino tempo longo, entre eles, o ar parado, uma espiral de fumo, as olheiras na cara dela, na cara de Clara… e quando ele perdia as esperanças de se ver respondido… eis que Clara se manifesta, apenas para delirar!
Pirilampo ou borboleta! Quem acompanhará Ulisses, o meu Ulisses. Quem?
E ele, pernas inchadas na banheira, água espuma que lhe cobria os mamilos, grita! Vruuuuuummmmmmm enquanto acompanha o movimento com a mão direita… uma lâmina de água esvoaça da banheira e espalha pelo chão de pedra… não tens ninguém no mundo para ler essas tuas merdas…
E de súbito, Clara, esquecendo que está de pijama e de pés descalços, abandona a escrita e sai para o passeio. Um estrondo da porta enche o interior da casa. E logo após, um imenso silêncio.
Nuno Monteiro
domingo, 20 de junho de 2010
Pirilampos
Quando eu era pequenino, por vezes, organizávamos saídas, eu mais os meus amigos, e deambulávamos pelos campos, noite dentro, a olhar os pirilampos. Que pulavam em bandos, incoerentes, incongruentes, mas vivos. Quão vivos. As casas eram por ali perto e os amigos eram os do bairro, eram um magote de pés rapados… abertas as mãos e saltaricando, até cansar, até vir o sono…
Mas o que eu quero realmente dizer é que:
Os pirilampos gostavam que nós os fôssemos visitar! Por isso riam enquanto saltitavam insanos;
Eu não podia deixar de pensar que era uma corrida à desfilada, essa corrida nossa, muito pura, muito pueril…
Ontem!
Saí de casa eram quase dez horas. Avizinhava-se uma noite abafada quente. Igualzinha às noites da minha infância. Nem um! Por onde andariam?
Clara! Talvez tu me possas dizer onde se refugiam os pirilampos… sabes, já compreendeste o que sinto… para além de muito bonita e corajosa, também és inteligente…
Nuno Monteiro
sábado, 19 de junho de 2010
Anoitecendo na montanha
Foi já ao anoitecer que ela abriu o baú e retirou de lá de dentro a carta que leria, de lágrima ao canto do olho… era um desses dias quentes de verão, abafado, um céu com nuvens brancas altas, surgindo por cima das montanhas como enormes cogumelos, como enormes explosões… estava confortavelmente sentada no alpendre da montanha. Ali tão próximo do céu… a aldeia não registava vivalma… o tempo tinha passado e até Clara, outrora viçosa… Essa carta, agora impregnada dum papel amarelecido, gasto, rezava baixinho…
“toco os teus dedos dos pés! Tão ao de leve como papilas enquanto tu, deitada, fechados os olhos, me mostras a barriga, branca, lisa, argila. Um cordame de costelas que lembra as descobertas, a manhã da vida. Os sinos tocam a rebate mas tu não ligas. Do céu estão caindo flores que tu não queres. Chega à aldeia o primeiro carro que te não liga nenhuma. Murmuras por entre as nuvens! O mundo mudou.”
E enquanto o mundo se ocupava mudando tu rias de mansinho. Tinhas quase quarenta anos. Ao fim desse tempo todo sabias, porque sabias ora então, eras robusta e bastante inteligente e por isso sabias que haveria sempre argila. E uma espécie de inocência ao olhar. Sabias como enganar o mundo. Quando no adro, montavas a tua capa de durona. E golpeavas “nada nunca muda – tudo é obra do diabo!” eco ensurdecedor libertando o odor do medo… porque tão óbvio…
De volta de ti, todos os outros, ratos, miúdos, moviam os braços como quem soletra o sinal da cruz.
A montanha, coberta de um cinzento escuro de chuva, trazia-a de volta de cada vez que derrubava trovões que inauguravam a noite. Clara, agora idosa, deixava a janela aberta e entretinha-se a olhar os clarões súbitos…
Nuno Monteiro
sexta-feira, 18 de junho de 2010
A prisão e paixão de Egon Schiele
Trazias no peito a ferrugem líquida dos relógios. Arrancava-te as horas como pregos. Depois ficávamos deitados a observar os animais brancos.
Não sabíamos nada. Não tínhamos nada.
Apenas soprávamos a cana da loucura — e tremíamos.
Vasco Gato, in "A prisão e paixão de Egon Schiele" & etc, 2005
fotografia:
http://olhares.aeiou.pt/c_i_t_y___h_a_l_l_2_foto3770060.html
A maioridade
Clara erguia acima dos pés. Curtos pró pequenito. Belos. Por vezes voraz, assistia sem parar, ao vulcão que a bordava. Toda ela era magma. Escarlate da cabeça aos pés, por vezes viúva, outras vezes vozeirão, quase sempre menina, encantada pese embora, suave e ausente, como só o sabe ser, quem está sempre presente… e chegava e dizia! Trago um presente… e quando a gente vai ver, não é senão um cândido, lume, quase ausente. Porém, Clara, paciente, ousava despir e dizer! Vem… saber quem sou! como faço aqui… ou então, quase insolente… Clara pedindo… move meus ombros… mistura a minha vida… dispa as minhas calças!
Sabes ao que venho! À casa dos budas…
E um sorriso belo, calmo, sabia ao que sabia! Clara totalmente. Como sempre! Quase ausente…
Nuno Monteiro
Sabes ao que venho! À casa dos budas…
E um sorriso belo, calmo, sabia ao que sabia! Clara totalmente. Como sempre! Quase ausente…
Nuno Monteiro
José
quinta-feira, 17 de junho de 2010
Calçada de fome
Clara descia a calçada. Moça jovem de rosto largo e cabelo muito preto… Deambulava com fome. Sangrava. Enquanto isso, em sentido contrário, havia outros que se enfartavam. Esses nada faziam, também nada significavam para Clara. Algumas moscas na ventania…. Deles, nem uma cantiga reteria. A calçada exibia pequeninas casinhas e gente pulava de lá de dentro. Diziam: Ó ti maria! Já que vai à venda, traga graxa para os sapatos e mande meter na conta cá de casa . E enquanto os ricos subiam, Clara descia -a. Preocupada mas que irei fazer quando chegar lá abaixo? Onde irei? Com quem falarei? Sentia fome. Outros ocasionalmente lhe diziam, Clara fazes sempre perguntas a mais… assim não pode ser. Muito magrinha. Era sempre uma correria essa vida dela. E quando escorregava ou lhe salpicavam os olhos com a brancura do calcário. Toleimava e pestanejava para não cair… nessa Lisboa tão cara! Quando fora que comera a última côdea de pão? Um dia, dois dias. Como Clara se sentia fraca… os olhos prendiam-se-lhe aos pormenores. Olhava, por exemplo, para as mãos sapudas dos homens que saíam dos carros caros. E tentava enganar-se pensando… também eu um dia comprarei um desses pares de sapatos de salto alto, com anilhas que se enfeitam pela barriga da perna… e esboçava um sorriso… lá no fundo, Clara sabia que nunca poderia vestir caro… bem lá ao fundo Clara saberia que só a vista do Tejo a acalmaria. Nunca um par de sapatos. Mas a dor de barriga… a fome, essa puta velhaca não a poderia desafiar menos…
Erguia-se ante Clara a Biblioteca de Babel… uma colossal construção livresca. Ao topo, como um mastro, reinava Borges. Esse mítico. Clara não podia evitar que uma nuvem a toldasse. Era a fome. Essa velhaca. A que a não deixava escrever. A que a imbecilizava. Era a fome. Tinho sido a fome toda a vida. Apesar do apelo de Borges. Apesar da calçada que se estendia lânguida até ao enorme Tejo. Clara possante nada podia.
Só no mundo dos sonhos Clara poderia finalmente ser clara…
Então tropeçaria… e ampará-la-iam dois braços fortes raçudos. E ela diria! Quem és… já de olhos fechados, já no mundo dos sonhos… e então a farta cabeleira deixar-se-ia trespassar de poesia…
Nuno Monteiro
ilustração - Maluda
quarta-feira, 16 de junho de 2010
O Vitral
Clara é capaz de despertar a flor
Quando, contigo ela se mostra num mar de azáleas
E, sem pudor, te pede…
Mel (logo o sol se esconde por detrás de um rubor de infância)
E tu, alienado
Sussurras
ao fim da montanha…
Pois Clara é também capaz de odiar a noite
Quando, contigo, ela se some num moinho de mentes
E, sem temor, abana a cauda
E grita!
Sorriso…
Ao largo um tempo verde, ternurento, move o capim do campo numa pista de dança…
Clara, como uma raposa
De orelhas muito moucas, observa o deserto
E ausculta além da moita
O Pequenino Escorpião
Que a beija e adormece, na canção que esbanja a cor de rosa…
Clara, enfrenta, enfim, sem temor, o caminho que é o dela
Sem conhecer o cardo, a vindima ou a levada
Clara é todo o mundo (o instante em que o cinza se torce de pequenino)
Sabe, doravante
Que das tuas abas de fogo se soldam céu e terra,
Certeza, porém, incendiária
Que nela é funesta, é essa
Linha de água (olhai além das janelas e vede o azul que polvilha o céu)
Onde a amizade se banha dum luar esganado, envidraçado, dissolvido em amarelo escarlate
Nuno Monteiro
imagem - Salvador Dali - muchacha en la ventana
terça-feira, 15 de junho de 2010
Perlimpimpim
Uma flor, deitada na esteira da primavera
Espera paciente pelo fim
A água, alegre, canta enquanto rebola
Sons que se desfazem como chocolate
Havia um azul lá ao fundo
Que pintava de vermelho as unhas dos pés dela…
E na flor
Acocorou-se uma abelhita
Que pouco tinha de bonita
Prenha de amor
E como era pequenita essa prenhe barriguita…
Essa flor, deitada na esteira das crianças
Espera paciente por mim
Chuva alguma, algum dia a tomará de febres
Num prado de cores, pequenita, sarapintada de alices
Espreita valente da sala dos anjos enquanto calça umas socas
Apenas mais um conto
Nessa campanha que é o campo
Ao fundo…
Os moinhos
Em mim…
As torgas
A abelha surgia do nada e gritava aplenos pulmões que o sonho se não fora ainda…
Nuno Monteiro
Espera paciente pelo fim
A água, alegre, canta enquanto rebola
Sons que se desfazem como chocolate
Havia um azul lá ao fundo
Que pintava de vermelho as unhas dos pés dela…
E na flor
Acocorou-se uma abelhita
Que pouco tinha de bonita
Prenha de amor
E como era pequenita essa prenhe barriguita…
Essa flor, deitada na esteira das crianças
Espera paciente por mim
Chuva alguma, algum dia a tomará de febres
Num prado de cores, pequenita, sarapintada de alices
Espreita valente da sala dos anjos enquanto calça umas socas
Apenas mais um conto
Nessa campanha que é o campo
Ao fundo…
Os moinhos
Em mim…
As torgas
A abelha surgia do nada e gritava aplenos pulmões que o sonho se não fora ainda…
Nuno Monteiro
Num estranho mundo, para Oliverio Álvarez
Na cinza alvorada do dia que se quis invernoso, cavernoso, dois pés, não exactamente iguais, encarquilhados um pouco, esses tantos, mais a vontade que os impelia, solfejavam ante o vento que os catapultava, que os ignorava sem que eles, esses teus dois, amordaçassem o Homem numa balaústrada de anil, de doce incongruência, sem que eles, esses pés teus, se misturassem com as marés e se salgassem, como se salga o ritmo, o discurso, a escrita, enfim, como se pintam os quadros, como se mostram esbeltas, as estatuetas da terra e do sol e da lua, esse gigante alado, capital embevecido da nossa razão, esse dinheiro que sempre foi antes do dinheiro, esse cão ignoto que foi esquecido ainda antes de o ser, ainda antes de te lamber, pilhéria pele dum franco alabastro sobre a qual o tempo não passa, num mundo estranho, num ponto qualquer do universo das flores, onde fica o umbigo do Homem, onde cresce a raíz das árvores, onde acontece o borbulhar das águas e furam os rios, claros inclementes desvarios em sangue, um vento que encerra as pedras e essa tua vontade, esse teu ignoto pundonor, essa tua sibila m moderna, esse pecado que brota da visão dos teus pés nús, mãos inclementes que seguram os rios e os aliviam das barcas os aligeiram das frondosas copas e que são afinal, apenas mais e mais chocolate, apenas uma vitrine, uma pequenina rua empedrada de amarelo, empedrada de pó e livro, enredada de bibliteca cercada de madeira onerosa, odorífica, saudosa e donde surgem, ou voando ou sonhando, milagres transtornos milhafres, iludindo o vazio, impiedoso bando de ciganos bramindo e multiplicando por mil, entorpecidos os pés, entontecidos os vagares dessa labareda acastelada, onde logo pela manhã, após um sumo de poética, abres, escancaradas as portadas vermelhas, que findam contra uma parede mofa, lânguida, velha, que sem perdão, julga o céu e a terra e Te nega ó cristo, ó malvado e diabólico, porque depressa morres dum aneurisma ou clemente serás , só as pegadas que marcas na areia ou o ruído da vaga que julgas sentir, à última batida, ou então essa arca, esse maldito mastaréu, que navega em círculos, circum-navegação, como quem arpoa um poço de gritos, onde tu estás, onde vivemos todos, onde teus passos se perdem, onde tu clamas, infinda, clara, teus seios, teus anseios, teus odores sabores, teus cabelos, horrores, suores, humores, duma cidadela marciana, ou dum sonho pacífico, qual bola de cristal, qual ovário inquieto, donde zarpam telhados, cidades esquírolas, noites brancas e frondosas avenidas, soltando vazios e palavras tais quais, eternidade, salvação, sentido, oceano, sabedoria, montanha, pedra, satisfação, claridade. É Clara quem se afasta ao longo da praia, nessa alvorada de inverno, nessa lentidão de marcha.
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