quarta-feira, 1 de setembro de 2010

O túnel


Os homens estão cá todos? Todos. Todos têm com que trabalhar? Bem, então que comecem… a partir de hoje só se pára a empreitada ou quando estiver completa ou quando algum morrer e mesmo neste último caso, pára apenas durante as exéquias. Temos que reunir os homens, Homens: vamos estabelecer um horário de trabalho, Que seja com a conveniência de todos, para que seja com os braços e os pulmões e a fraternidade. Então o túnel fazer-se-ia. Operários. Donos deles próprios. Esmagados ante o peso das pedras e dos martelos… toc, toc, toc, toc… Moreno era o capataz… os homens confiavam… suportavam-no… era Jeremias o segundo comandante… os homens pediam-lhe de beber, quando estavam esquálidos de sede, pediam-lhe de comer, quando se sentiam esquartejados de fome, os homens enfarripavam as mãos uns dos outros, perdiam menos sangue, e assim foi durante mil anos, mal passavam a ombreira do túnel, ele deixava de ter tempo, lá dentro, nem os homens envelheciam, nem a pedra partia… só o sangue e as lágrimas corriam a rodos como se numa festa corresse cerveja. Mas não. Os homens não estavam numa festa. Antes Moreno, à boca do túnel, para Jeremias! Sabes como era Moisés? Lembras? Atendia a todos. E como morreu? Sozinho enfiado no catre, só deram com ele quase uma semana depois, o homem já fedia… tenho medo, embrenhamo-nos na terra e mais fundo na pedra, e se andamos lá por baixo às curvas, perdidos? Pior, e se lá embaixo, damos de caras com esse valdevinos desse belzebú? O que diria Moisés se aqui estivesse? Ora o que diria? Que cavassem fundo, ora o que diria, foi assim que ele morreu? Há sacrifício maior que a morte, eu cá não conheço. Apagaram-se os cigarros e os dois homens ficaram no escuro da noite. Ao fundo, sentiam os cães latir e milhares de vozes, excitadas, que os avisavam. Lá bem no fundo, aqueles dois homens saberiam que a abertura do túnel, mais do que a eles, iria libertar os mortos, as almas clementes que não conseguiriam nunca outro caminho para a salvação. Isso é o bastante ou não Jeremias…
Os carvalhos haviam deitado fora a folha e na penumbra, surgiam como fantasmas que rangiam… ninguém lhes tinha medo, os dois homens voltaram-lhes as costas e, já no caminho do fundo buraco, toc, toc, toc, num compasso de eternidade.

Nuno Monteiro

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“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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