quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Colo enfeitado com medronhos

Em certas madrugadas, encontro dias que se suicidam quando, de rompante, eles se deixam sufragar em mágoa cinzenta de chuva leve. Ao escuro da noite, lá no ponto cardeal, desponta uma luzita que és tu e então digo Bom dia pequenita mulher, como estás! E a madrugada é só arrebatamento, uma irrequieta passarita que pavoneia. Corre o tempo, devagar, tão depressa. Eu? Estou bem muito obrigado e logo ruboriza, um rubor escarlate como cabelos de poesia, como uma madrugada com seis horas, olhos atentos, bulidores, ainda vencedores. Fica muito espantada, a pequena sereia quando eu lhe digo que também eu, não sou como os outros. Eu sei que dentro dela há muitas vidas, há enormes vagões que se lambuzam vagareiros por essas estradas de montanha. Sei também que a madrugada, ao crescer, cedo a avisará que se deverá decidir por um caminho… Súbito crescem as nuvens e o fio de cabelos esconde. É o prenúncio. Uma breve luta e a moça agora sente medo. Não tenhas medo, sê tu própria, mas a moça qual quê, o medo cresce e abunda-a, ignora-a enquanto a torna prenha. A madrugada está perdida. Tem apenas lugar uma mecha de tempo, durante o qual a mão, pequena, redonda, raspa por um medronheiro e tira cinco ou seis desses frutos. Em vez da ciganita que poderia ter sido, sufraga pelas areias do deserto. A madrugada despontará dia, cinza chumbo e haverá uma moça, de tantas que poderia ter sido, uma quedar-se-á, cabelo escondido, apanhado em caracol, E se essa escolha ocupar lugar, uma mais como tantas, dentro dos olhos dela, morrerão esses mirones verdes sonho com que um dia, cedo na madrugada, se quis insinuar…

Nuno Monteiro

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“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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