terça-feira, 28 de setembro de 2010

Vidros derretidos


Haverá um dia, seja um dia de chuva, uma espécie de Outono miúdo, e então acontecerá, a ventania cravejar-se-á contra a tua porta como punhal e tu cavarás um poço de medo, bem no centro de ti,
(por toda a vida corre uma tinta de desgaste um fiozinho de lágrima)
rodeia-te a escuridão e o desassossego apesar das cores e das pétalas, tragar-te-á, esse poço e tu ditarás gritos mudos para uma espécie de papiro antigo, um livro inútil, uma espécie de literatura falhada que te iludirá, que te comandará, que te ditará uma única lei. Foge. Vive uma vida de fuga, de deambulação, de tristeza melancólica, fecha os olhos, senta com ela, a estátua dos teus sonhos, olha-a nos olhos e cinzela-a com tuas mãos nuas, prenhas. Enquanto foges. Sê breve, curto, surreal. Sai pelas ruas, em agonia, cumprindo etapas, apanhando do chão as cores vermelhas da morte.
( a humana urbe um local vazio, pendente, ofegante)
E então serás um descrente, uma luz intensa que desapareceu no breviário da noite. Do poço, bem do lodo do fundo gritarão em turbilhão todas as maldades do homem e todas te atingirão, como freios, vermelhos de dor, nessas manhãs invernais donde sairás jamais.
(Já me não lembro do último comboio…)

Nuno Monteiro

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“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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