quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A filha de Jesus Cristo verterá filhos e lodo para esta terra


Enquanto lá fora, nas ruas, os ventos outonais arrancaram as primeiras folhas, surgiam os tons vermelhos e acastanhados, numa espécie de absolvição da vida ou confronto com a terra, ei-la, à consagração e ao altar; foguetório em surdina , nessa noite descerraria a estatuária e se manteria, alargada e bruta zombando dos olhos.
( em alguma casa modesta alguém afirmará tão tarde na noite, há um escultor que suplantará todos os outros)
Os pés vazios mantinham-se numa angústia por detrás das vidraças da casa, suados, esquálidos olhavam a cidade envolta nesse outono, detinham-se no cabelo encharcado e no vulto dos castanheiros que se inclinava incerto. E nessas alturas, por que não poderiam as mãos destrancar as portadas e abandonar o éden? Sim, quantas e quantas vezes, a filha de Cristo, a dona desses pés esquálidos quisera atirar essa batina ao chão e, abraçando o anti-cristo, viver alagada, cruzando os tons vermelhos de sangue e do Outono, até carregar no ventre, até à saciedade.
( o anticristo virá fecundar a terra com milagres, alguém o dirá numa casa modesta )
Nesses dias, cruzados de chuva e vento, nas noites em que, zombeteira, se vestia com uma batina preta, deixando os pés vazios, vagueava pelas ruas monumentais tacteando as cores e as texturas das pedras, nesses dias, dorida, ergueria uma babel de livros… Por vezes, de noite, cruzando com olhos de outras etnias, algum castanheiro a interpelava ao caminho e a beladona, com um esgar de mão o afastaria, logo depois mudasse de passeio. Outras vezes, estacada, era capaz de fechar os olhos e sorver o ar, carregado como estaria desse primórdio dos tempos; a pouco e pouco embruteceria, da terra no ar, desse sabor de nudez.
(os lobos do fim da rua enovelam-se numa algazarra do cio)
Acordada do sonho e lambendo ainda a seiva da terra molhada ouviria ao longe os alvores do circo, havia uma batina preta que a encerrava e esquecidos e tombados, ao fundo das pernas esguias, os pés esquálidos que lhe traçavam o caminho.
O “meu reino é apenas deste mundo” dirá o anti-cristo, se alguma vez a abraçar. Este é o mundo que toca e foge, a verter humores, sempre a verter humores, nas breves risadas e telas vazias…

Nuno Monteiro

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“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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