segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Por enquanto mama, o filho de Cristo


De dentro da caleche, sumptuosa, olhava-se de uma maneira indigente os campos de trigo. Há já uma hora, corriam, à velocidade, os caminhos dos campos, infindos, monótonos, do trigo. Tudo pertença da propriedade. E diz a matriarca
(falando para se fazer ouvir, talvez incomodada com a ausência)
um dia, herdarás tudo isto… e logo um silêncio, prolongado, tomava conta do espaço. Lá por fora, o cocheiro, aprumado, impecavelmente vestido de limos e gomos, arribatava os cavalos Os donos estão com pressa… E diziam os cavalos ora! O que eles querem é passar os campos, onde mora tanta abastança e onde as mulheres vão parir às traseiras, de pé, sem largar da mão as panelas e a esfregona… medo! Já que dos campos amiúde se levantam almas mortas, como insurreições, impossível contê-las.
Lá dentro, de novo na caleche, o patriarca, saturnino, escondia uma pequenita pistola e pretenderia fazer-lhe colar a vida, muito embora roubasse tantas, tão desgraçadas… olhava o filho, com uma mistura de ares que iam desde o snob, das roupas cuidadas, ao imbecil, que lhe advinha do lábio caído e do olhar apagado. Explodia! E pensava para ele que não teria a quem deixar administrar tanta terra, o pequeno nem as letras aprenderia… a matrona, sentada do lado dele, completava o pensamento… mas que vergonha, que dirão dele as outras famílias!
(Oh pai, pois compreendo que te amedrontes! Não se matam as almas mortas)
E contudo, os cavalos, alados, puxavam a caleche ao fundo do vento… suados, protegiam-se, na primeira malaposta manda a mensagem, o trigo está já maduro! O filho de Madalena já nasceu. É um latagão bonito, saudável que já caminha pelo seu pé. E não sente medo das trovoadas.
Aparentemente afastado de tudo isto, o cocheiro, esse condutor, olhava os cavalos e sabia que eles conversavam, pois sabia, mas escondia e em silêncio sorria…
A tarde, desse amendoado odor, recolhia, da mesma forma que o caminho, a estrada púrpura, sedosa, ameaçava parar, cessar, cortar, para dar voz ao poder… essa espécie de poesia do trabalho, que convida, sem convidar.

Nuno Monteiro

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“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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