Ofuscar-me-iam sempre pois eu estava morto. A partir da minha maioridade, houve algo que se quebrou dentro de mim e daí em diante a minha convivência sã com todos os outros irregularizou-se… Vivia vidas roubadas dos outros e refugiava-me por dentro dos livros e por detrás da escrita. Mas veio o dia em que deixei de querer escrever. E veio o dia em que deixei de querer ler. Depois foi a revoada. Não havia quem me falasse. Judas. E depois eu pensei o que poderia fazer um homem que nada sabe fazer. Pois que os outros também me não aceitavam. Deixei, tão ao de leve, de aparecer. Foi um dia, foram dois dias, ao fim três dias, ao cabo duma semana e ao cabo de duas. Ninguém estranhou. Talvez ninguém estranhe a ausência de ninguém mas eu nascera e vivera sentindo que sim. Ter-me-ei enganado. Quando finalmente deixei de conversar, e quando finalmente me habituei a viver apenas comigo, horas e horas parado dentro de mim apenas para satisfazer as minhas mais básicas necessidades, quando finalmente me consegui manter a viver do mínimo, quando larguei o sono e a patetice da fama, quando finalmente me libertei dos enjoos da inveja e da maldade e quando, acima de tudo, senti que estava tão leve que podia voar, começou a chover. Foi por altura de Macondo, chovia a cântaros e toda aquela água encanou para dentro de mim. Quis sentar na sala de estar mas todo esse espaço estava já tomado. As minhas penas ensoparam tanto que eu me tornei também não qualid«ficado para o voo… Saí para a rua e tacteava à procura da companhia de circo. Viviam num autocarro e eram as pessoas mais caritativas que eu havia conhecido. Eram todos palhaços e faziam bem a todos pois faziam todos rir. Quis ser como eles. Mas até então falhei. Contudo não me disseram que me afastasse. Nem me disseram que eu nunca viria a ser como eles. Reuniram para decidir o que iriam fazer de mim. À saída disseram olha, tu, tu que nunca te manifestas, vais ser o nosso homem morto. Aceitas? Eu nada disse. Era a revoada. E todos eles eram o universo de macondo. Eu devo ter enlouquecido. Eu quem sou? isso não importa pois o que eu sei é que tens a face pejada de olheiras. Por vezes é bom ser-se atracção do circo. Eu ficava ali parado olhando o povo que passava e de vez em quando algum pequeno puxava a mão da mãe e dizia, olha mamã aquele homem está morto. E nem uma moedita me deixavam de modo que entre os do circo, pão pão queijo queijo e só me não deitaram fora nalgum barranco porque pretendiam comigo ganhar o céu. Ofuscar-me-iam sempre com fumo de vela porque nunca poderiam saber há quanto eu estava morto. Secretamente acalentavam a esperança de que eu fosse uma espécie de santo, as gentes do circo têm destas coisas, julgam ver santos onde os outros nem cinza. Pelo sim pelo não uma avé maria. Cá vai. Em silêncio.
Nuno Monteiro
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