segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

a paganização do vulcão

Ao tempo era apenas eu e o vulcão! Era um chapéu rubro, as minhas mãos nuas e uma caixa negra, um pequenito obturador, pequenita, feita ali ao sopé, dos restos duma caixa de chá darjeeling. Ao tempo, ouvia-te ainda. Dizias, e eu não mais me esqueço, esquece o mundo, enviúva-te e eu ficava pensando no que dizias, procurava uma pedra de basalto, pousava a lata e enfiava-lhe um papel químico de revelação. E ficava à espera. Imagens difusas, um empedrado de minúsculos cristais e aquilo era tudo, um céu cinza e o topo. A crista ali tão perto. E eu pensava que com pés nus lhe poderia um dia chegar. E tu despias os teus cabelos e parecias uma gazela espadaúda e ferida que se engalanava por entre as pedras. Ao fim do dia recolhias à casinha de madeira e eu seguia-te. Cozíamos batatas de montanha, pequeninas e retortas, tu sorrias e deixavas que eu te penteasse. A cabeleira negra ondeava livre… Mascávamos tabaco para combater o mal das alturas. Adormecias para lá das duas e eu admirando o silêncio dos teus seios redondos.
Ao tempo era apenas o vulcão! Na manhã frenética eu via quando o sol surgia e o cume ali tão perto, imponente sem que dessemos por inverno ou outono. A cabana estava acima do mais comum dos mortais. Lembro que coleccionei mais de duzentas fotografias, todas do mesmo cume, todas às mesmas pedras. Isto durou muito tempo, imenso tempo, e tu vivias lá comigo e não havia frio nem fome, não havia feridas nem ressentimentos. A pouco e pouco o cume ia ficando nítido dentro de mim, havia uma baba mirífica que me sustinha.
Chegou um dia em que fatalmente me disseste quero descer, tenho saudades; tens saudades de quê? Saudades do dia seguinte e eu imediatamente percebi que te cansaras de ser imortal. Foi quando deixei de te ouvir. Acusaste-me a mim de voltar as costas ao mundo e eu de imediato te retorqui, já tu descias, foste tu quem abandonou o vulcão e então não percebi porque estavas voltando as costas ao teu deus pagão…

Nuno Monteiro

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“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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