terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Mulher sentada ao piano

Esguia e de pés grandes, calças coçadas cinza e um pequeno palco, olha com bravura para o guitarrista que a acompanha e pede mais e mais folk e eu penso, já não vivemos de modinhas, já não há quem faça da rua a sua guarida e depois miro-a mais e melhor e assombro-me, cabelo longo, liso, cortado muito rente aos olhos, em franja. Eu sento e fico assim, olhando, vendo-a tocando ao de leve no piano acompanhada da voz rouca, funda, amarga, e enquanto assim me fico, olhando-a, uma enorme cascata retumba por fora e por dentro de mim e nesse instante nada nem ninguém me deitariam fora daquele piano, daquele olhar intemporal. Voam, acima de mim as luzes de néon com que se instala o pub e chegam até mim as vozes e os barulhos da confusão, os copos a retinir e as mãos em bátega, o suor sem cheiro, as pernas bolotas, maciças… Há mulheres com um olhar impemporal, como se não envelhecessem jamais, acontece apenas às minhas borboletas e só após muito bar e imensa gargalhada. Adoro-a. Toda a figura, imensa mulher erguida do chão envolta em roupas negras, cinzas, fumando e bebendo, toda ela e ainda um chapéu de palha com que acompanha o refrão, “he was a friend of mine” ou em palco, apontando toda a gente e rindo… como se a vida lhe não pesasse, como se não houvesse amanhã ou como se toda ela bebesse do palco, da noite, da possessão, Deus sabe que ela é não apenas a imagem do pai mas também a estrada e a vida, tudo empilhado e condensado numa figura mítica de mulher grande, castanha, rotunda… e penso, finalmente, ao som da via-láctea, que ainda há modinhas e que ainda há quem lute por ideais, por um som lá do fundo, da luta, da selva.

Nuno Monteiro

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“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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