sábado, 19 de fevereiro de 2011

Certas noites com luar

Era o tempo das noites tenras e eu estava muito na moda; havia ainda ruas inocentes e os edifícios, em lisboa, andavam a passo num vago lúgubre. Estivessemos próximos do sol e eu não escolhia, tergiversava mesmo sem querer e sugava dessas noites quentes e salitres. Era também próprio da idade e aos cafés, fumávamos todos da mesma mão. Já ninguém escreve assim. Tudo mudou tanto. Rasparam o salitre das ruas estreitas e foi a eito, meteram-lhes uma merda duma cor que acinzenta tudo, enterraram a fotografia antiga e drenaram o tejo. Acomodaram-no dentro de um espartilho que tudo cobre, que tudo esconde. Se o tecido tem cores e quanto essas cores não falam, se o espartilho tem textura e palpação, o tejo solto, a auréola do mamilo e a confluência com a anca deixaram de estar ao alcance da mão. As fachadas não têm marcas, não esmolam, ainda caem as folhas mas já não permitem esse Outono bravo e ventoso, já não temos pintores e muito menos homens mágicos. A cor com que pintaram o mundo e a luz branca com que o apertam são espartilhos que deformam o colo e o metem muito a direito como se me proibissem de fumar. Acontece que então eu ia pela rua com um inebrio quente e suave, uma existência que pendurava da balaustrada do céu e chegava ao bar, à minha casa e encontrava-os lá todos, a esses extraordinários belzebus e perguntava Quem já escreveu hoje e logo ali defronte de mim, enrolavam um cigarro e espiralavam fumo pelas páginas e matraqueavam as palavras pelo ar corrido desse tempo espesso. Leve, tão leve quanto o sentido da liberdade… e quanto mais tabaco corria, mais noite se abatia e lá de cima, da balaustrada, chegavam roncos de trovão; deveriam ser seis da manhã e eu ia a pé pela linha costeira e era rara a noite em que a não encontrava, à minha ninfa de berma de bar. E eu então dizia-lhe, vá, já cumpriste a tua noite, desatralaça lá o espartilho e logo de imediato, deitando abaixo as cores, botando lá a mão, semeava carne pelo meio da carne. Houve um tempo em que eu passeava pelas ruas muito magro, muito tísico, nada do mundo se assemelhava comigo e eu não queria nada com a pessoa inteira, cheirava-lhe o verniz das unhas ou olhava-lhe fixamente para os olhos sem nada pigarrear, baliam dentro de mim as saudades das Acácias em flor, havia dentro de mim um ronco irmão que me impedia de subir ao palco. Talvez tenha sido por isso que, numa noite em que não encontrando a carteira, tendo perdido a minha biblioteca e tendo encontrado o corpo da minha ninfa profanado eu, saltando da janela, ainda calhei de procurar em volta mas já não saltimbanco algum. Esse cúmulo terá sido a minha única experiência. Depois alguém me apagou.

Sem comentários:

“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

Prémio Histórico - Filosóficas