quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Colo enfeitado com medronhos

Em certas madrugadas, encontro dias que se suicidam quando, de rompante, eles se deixam sufragar em mágoa cinzenta de chuva leve. Ao escuro da noite, lá no ponto cardeal, desponta uma luzita que és tu e então digo Bom dia pequenita mulher, como estás! E a madrugada é só arrebatamento, uma irrequieta passarita que pavoneia. Corre o tempo, devagar, tão depressa. Eu? Estou bem muito obrigado e logo ruboriza, um rubor escarlate como cabelos de poesia, como uma madrugada com seis horas, olhos atentos, bulidores, ainda vencedores. Fica muito espantada, a pequena sereia quando eu lhe digo que também eu, não sou como os outros. Eu sei que dentro dela há muitas vidas, há enormes vagões que se lambuzam vagareiros por essas estradas de montanha. Sei também que a madrugada, ao crescer, cedo a avisará que se deverá decidir por um caminho… Súbito crescem as nuvens e o fio de cabelos esconde. É o prenúncio. Uma breve luta e a moça agora sente medo. Não tenhas medo, sê tu própria, mas a moça qual quê, o medo cresce e abunda-a, ignora-a enquanto a torna prenha. A madrugada está perdida. Tem apenas lugar uma mecha de tempo, durante o qual a mão, pequena, redonda, raspa por um medronheiro e tira cinco ou seis desses frutos. Em vez da ciganita que poderia ter sido, sufraga pelas areias do deserto. A madrugada despontará dia, cinza chumbo e haverá uma moça, de tantas que poderia ter sido, uma quedar-se-á, cabelo escondido, apanhado em caracol, E se essa escolha ocupar lugar, uma mais como tantas, dentro dos olhos dela, morrerão esses mirones verdes sonho com que um dia, cedo na madrugada, se quis insinuar…

Nuno Monteiro

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Vidros derretidos


Haverá um dia, seja um dia de chuva, uma espécie de Outono miúdo, e então acontecerá, a ventania cravejar-se-á contra a tua porta como punhal e tu cavarás um poço de medo, bem no centro de ti,
(por toda a vida corre uma tinta de desgaste um fiozinho de lágrima)
rodeia-te a escuridão e o desassossego apesar das cores e das pétalas, tragar-te-á, esse poço e tu ditarás gritos mudos para uma espécie de papiro antigo, um livro inútil, uma espécie de literatura falhada que te iludirá, que te comandará, que te ditará uma única lei. Foge. Vive uma vida de fuga, de deambulação, de tristeza melancólica, fecha os olhos, senta com ela, a estátua dos teus sonhos, olha-a nos olhos e cinzela-a com tuas mãos nuas, prenhas. Enquanto foges. Sê breve, curto, surreal. Sai pelas ruas, em agonia, cumprindo etapas, apanhando do chão as cores vermelhas da morte.
( a humana urbe um local vazio, pendente, ofegante)
E então serás um descrente, uma luz intensa que desapareceu no breviário da noite. Do poço, bem do lodo do fundo gritarão em turbilhão todas as maldades do homem e todas te atingirão, como freios, vermelhos de dor, nessas manhãs invernais donde sairás jamais.
(Já me não lembro do último comboio…)

Nuno Monteiro

domingo, 26 de setembro de 2010

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Os homens que teimam em não acordar às quatro da manhã


Quatro horas, dentro em pouco acordaria, levantar-se-ia, estaria sozinho em casa, um lúgubre casebre e sabia que nada haveria para comer e nada haveria que escrever, sabia incessantemente que ninguém haveria para conhecer, sabia, fora de tempo, que nunca apertaria a mão a estátua alguma, não conversaria em castelhano com poeta algum, não visitaria pintor esquálido ou qualquer artista de circo.
Quatro horas, acordasse?, ligaria a luz, não!, não a ligaria, não adiantaria pois ela não acenderia, não pagara a conta da luz, há quanto tempo deixara de ter dinheiro?, por dentro dele, a solidão e a fome e o frio. A santíssima trindade… Não serão as três a mesma página? Em meio deste Outono, não consigo vender um único texto, não consigo vender palavras então por quê escrevê-las, talvez por casmurrice, ou talvez por sorriso, infortúnio, desprezo.
Quatro horas, que mania de escrever o que nada alguma vez haveria para escrever. Talvez por isso, talvez por se ver inclusive despojado de princesas e de momentos de alegria, talvez por se ver cercado de frio e fumo, talvez, ou talvez não.
Cinco para as quatro horas, é o filho de Pedro Páramo quem com ele priva, és tu que insistes em viajar até Paris? És tu quem insiste em mendigar em Paris? És tu quem insiste em fugir com uma ciganita de longos olhos com cor de caramelo? És quem se faz passar por Homem mais Forte do Mundo? És quem quer matar meu pai, o ignominoso Pedro Páramo?
Não para todas as questões, sim para todas as questões, um minuto para as quatro da manhã e os telhados da minha amada cidade estão imóveis, aguenta-os uma neblina maldita que não é mais que o sustento da sagrada família. Em que mundo julgas que vives? Não saberás que há muito aconteceu a minha morte? Olha, esgotou-se o teu minuto. Afinal não és eterno. Todo o pasto dos homens está em chamas. Há apenas um carreiro e esse está ocupado a ferro e fogo pelos arcabuzes em ferrugem, fugidos dos céus azuis, pintalgado como um balão remendado por lendas de folclore e teatro de rua.
Não, por favor, não te vás ainda, ainda te não disse meu nome

Nuno Monteiro

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A filha de Jesus Cristo verterá filhos e lodo para esta terra


Enquanto lá fora, nas ruas, os ventos outonais arrancaram as primeiras folhas, surgiam os tons vermelhos e acastanhados, numa espécie de absolvição da vida ou confronto com a terra, ei-la, à consagração e ao altar; foguetório em surdina , nessa noite descerraria a estatuária e se manteria, alargada e bruta zombando dos olhos.
( em alguma casa modesta alguém afirmará tão tarde na noite, há um escultor que suplantará todos os outros)
Os pés vazios mantinham-se numa angústia por detrás das vidraças da casa, suados, esquálidos olhavam a cidade envolta nesse outono, detinham-se no cabelo encharcado e no vulto dos castanheiros que se inclinava incerto. E nessas alturas, por que não poderiam as mãos destrancar as portadas e abandonar o éden? Sim, quantas e quantas vezes, a filha de Cristo, a dona desses pés esquálidos quisera atirar essa batina ao chão e, abraçando o anti-cristo, viver alagada, cruzando os tons vermelhos de sangue e do Outono, até carregar no ventre, até à saciedade.
( o anticristo virá fecundar a terra com milagres, alguém o dirá numa casa modesta )
Nesses dias, cruzados de chuva e vento, nas noites em que, zombeteira, se vestia com uma batina preta, deixando os pés vazios, vagueava pelas ruas monumentais tacteando as cores e as texturas das pedras, nesses dias, dorida, ergueria uma babel de livros… Por vezes, de noite, cruzando com olhos de outras etnias, algum castanheiro a interpelava ao caminho e a beladona, com um esgar de mão o afastaria, logo depois mudasse de passeio. Outras vezes, estacada, era capaz de fechar os olhos e sorver o ar, carregado como estaria desse primórdio dos tempos; a pouco e pouco embruteceria, da terra no ar, desse sabor de nudez.
(os lobos do fim da rua enovelam-se numa algazarra do cio)
Acordada do sonho e lambendo ainda a seiva da terra molhada ouviria ao longe os alvores do circo, havia uma batina preta que a encerrava e esquecidos e tombados, ao fundo das pernas esguias, os pés esquálidos que lhe traçavam o caminho.
O “meu reino é apenas deste mundo” dirá o anti-cristo, se alguma vez a abraçar. Este é o mundo que toca e foge, a verter humores, sempre a verter humores, nas breves risadas e telas vazias…

Nuno Monteiro

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A Óscar Málaga Gallegos


Vive nas asas de glória de uma tenda tuaregue. E porque é eterna a infância, houve um sorriso e um beijo, um abraço trocado; crescido, as asas e um vento dali o levaram, hoje, um grande senhor, um homem garboso, esta é uma noite, estrelada, ao deserto, ele revive enquanto chora. Tem rugas no rosto embora por dentro ainda seja criança, o vento empurrou-o para uma mágoa de ter crescido…
No dia seguinte partirá, afrontará a distância e levará as saudades para um qualquer outro local, enriqueceu; que interesse para mim tem todo este ouro?, ainda que tivesse mãos de artesão e com elas pudesse trabalhar o rosto da minha princesa, ainda que assim fosse, não seria o rosto da minha princesa, porque o ouro, do brilho intenso, não sorriria incerto como o rosto dela. Bebia dum trago e num sufoco decide; batendo as mãos, madrugada, de imediato vinham até ele dois lacaios, lacaios! Ouvi bem, mandai homens com cavalos, na direcção dos pontos cardeais, procurai a minha amada, mandai ditar prosas pelo chão, dizei avisos, eu esperarei eternamente, a minha tenda, preta de dor, viverá à deriva, nas areias salgadas e ardentes…
Pois que a encontrem, então, por esse mundo fora. E que se não deixem abater, os valorosos cavaleiros do senhor, já que a tenda, a casa, vive de saudade, vive de cantigas, vai constantemente ao encontro de outras paragens, deambulando como louco, vazio e arenoso, calado ausente.
Os olhos pousam nos outros olhos e sempre que esses outros olhos apagam, Pedro, que é Rulfo da parte do pai, crê-se a ele próprio vivo pois que as asas que o impelem, cegas, não têm lugar num mundo como este… sobrevive escondido por detrás das túnicas pretas do deserto, num desassossego de tragafogo.
(Há tantas pequeninas histórias de saudade), olhai, lá parte o comboio, mas, embrulhada num livro, eu bem a vi, o que é que a mim me escapa, eu bem vi, Maria Romaninoff, a pequena princesa russa, embarcando, dona de um vestidinho de lantejoulas brancas, a via láctea pontilhada, carregada ao colo como só ela entrega de mamar ao filho.

Nuno Monteiro

sábado, 18 de setembro de 2010

Do que eu vou lendo...

(…) E o Homem Mais Forte do Mundo, docilmente, seguiu Dom José, que regressava à sua caravana.
- E qual é o seu milagre, Dom José?
- Saber falar, saber dizer as coisas no momento adequado, é esse o milagre mais importante do mundo, Homem Mais Forte do Mundo, aprende.
- Mas desculpe, Dom José, nisso das indulgências, do milagre, creio que o senhor mentiu.
- Dom José olhou seriamente para o Homem Mais Forte do Mundo, pôs-lhe a mão direita no ombro, sorriu.
- Recorda toda a tua vidinha, a verdade é apenas um problema técnico.

O Segredo da Trapezista, Óscar Málaga Gallegos, tradução de Jorge Fallorca

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

O alforge do Senhor


António, leva lá o vale à senhora e diz-lhe que é para mim, ela consegue ver-me lá do longe, mas se não, diz-lhe, diz-lhe que é para mim, e então diz o meu nome, repete aqui como terás de fazer lá, e ele dizia o nome, diz-lhe também que eu sou a tua mãe e que tu és o meu filho, e que tens que mostrar este cartão, não te esqueces, este cartão, este de plástico, e com isso calou-se, a senhora, enquanto olhava o filho que lá ia, rezava tanto quanto sempre havia feito, ele há-de ser capaz, ele terá que o conseguir um dia, e lá por dentro, preocupada, Jesus como eu estou velha, como será quando estas minhas pernas de velha não me deixarem vir aqui sozinha, como será a vida deste meu filho que não consegue sequer dizer o meu nome, que não sabe sequer que eu sou a mãe dele; quem a olhasse havia de ver a lágrima que não pôde reprimir, quem olhasse deveria ver a dor. Mas não, os que olhavam, viam apenas sujo, o borratão negro e amolgado.
Ao balcão, o menino, muito a custo, vinha levantar este dinheiro para a minha mãe… eu sou o António e aquela senhora acolá é a minha mãe, é velha e não pode mais dos joelhos, por isso venho aqui eu, por isso estou aqui eu, quer ver, olhe, este é o meu cartão, foi a minha mãe quem mo deu… um sorriso na face da senhora, não preciso, vejo daqui a tua mãe, olha arruma bem o dinheiro e dá um beijinho na tua mãe por mim e diz-lhe que tudo vai correr bem… o menino metia o dinheiro na algibeira mas logo de seguida, desgraçadamente, esquecia tudo, esquecia a mãe e o dinheiro e sem dar acordo de si, descia a rua em vez de a subir para onde estava a mãe; outro pingo de lágrima no olho, a pobre senhora, uma vez mais, gritava e corria e corria e gritava, o meu António, o meu António… e os que olhavam, que viam apenas sujo, um borratão negro, mais amolgado, afastavam-se para dar licença. Segredavam entre eles, coitada da senhora. Porque a casa não era a deles. Deus me livre e guarde. Era o que diziam todos…

Nuno Monteiro

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

A mexicana maior


Precisava de mais alguns centímetros! Deus não lhos concedera. A altura e mais uns quantos atributos. Dera-lhe a graça e a destemperança. Emprestara-a ao diabo e por lá a esquecera. A moça, recostada numa mesa de black jack, olhava a mesa e pelo canto do olho mirava-o. O seio arfava, desinquieto, por dentro do espartilho… pesava nas noites anteriores sem sono, cansada, habitava nela um truculento azedume, uma faca rútila, um leve rubor e um fervoroso clamor quando
(Arrancando os pés, empurrava as pernas, esticava-as, media-as, dependurada da cruz, julgando saber… oh deus que me empurraste para a tumba onde mora o diabo… a mão e os anéis, as unhas pintadas de voz, uma garrafa de mescal, uma cinta apertada e na coxa, folhas vermelhas dum Outono irreal )
Tenho medo quando me descubro ao espelho, deve ser afronta quando corro descalça e os cactos me bicam, Espelho meu, espelho meu, haverá alguma mais… há algum tempo se não sentia… interrogativa, nada sentia quando as mãos próprias a tocavam… e o seio mais ainda arfava, comprimido e suprimido ante uma inesperada agudeza do real, num golpe de dor, sombreava os olhos e bebericava os lábios, mordiscando-se piscava-o, surda, ofendida, enforcada. E agora,depois de tantos anos, quando para sempre lhe faltavam uns centímetros, ali na mesa, senhora dum fado viúvo, fortuito, ilharga dura e bamba, que lhe importava se perdesse, se o moço que ela trazia em vista lhas mirasse e as revolvesse, com mãos ambas, de prestidigitador.
Ao diabo o que é do diabo e eu, quadro meu, sei bem o que sou.

Nuno Monteiro

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

As estátuas famintas nas ruas de Paris



Numa das nossas inúmeras deambulações… numa das nossas divagações… (é muito difícil situar o espaço da acção – uma vez que tanto poderíamos estar por esse mundo fora como embevecidos em casa esperando os louvores de um copo de embriaguez) seja como for, em uma das nossas preambulações deparámos com um banco de madeira puída e bastante mal tratada que se erguia só e abandonado em meio de praça. Nisto há um sujeito pequenino barba burlesca e roupas puídas que dele se acerca… a humanidade tem sopros de genialidade… da mesma forma que a literatura a humanidade não tem preço nem lisonja. A humanidade perde a noção de tempo – e nós… bem nós estacámos e observámos: o que dali saiu. O que dali saiu foi a alma inteira do pequenino raquítico – foram os humores do homem que se espraiaram num discurso pessimista anarca. Ouçamo-lo então:
“Sabes o que é um rei?! Para além dos mantos púrpuras e dos pratos de faisão… para muito depois dos decretos e dos ditames… num reino cercado de arames… Deixe que explique… a natureza é de um virtuoso bêbado… as palavras são mera verborreia – atiçadas ao vento como se fossem da noção da antimatéria… diarreia – um travo de bílis que tosse enquanto solfeja ao ar… sabes agora quem é o rei! Pois sei que sim… sei que sabes… então voltando à carga – qual é a questão seguinte? Como se comporta o homem perante o rei?! A figura da autoridade, a noção de disciplina, a fonte do mal, o poço do diabo, os olhos enternecedores de um pobre diabo dono de uma personalidade insofismável mas em concreto um imbecil, um estúpido, um falhado…há dois tipos de homens… há os felizes pobres! Alvíssaras escravizados imbuídos de um espírito de religiosidade que os calca quantas vezes necessárias… esses arrastam as mãos em concha gaguejando por pequenas migalhas!... aqui e acolá dão os seus tristes e zombeteiros pequenos ou grandes golpes “que bom enganei-o!” sem sequer saber que ele sabe que ele o enganou! Até disso vive o rei… esses são os miudinhos da vida. Os eternos patetinhas… podem atirar aqui e acolá uma sarça mas que não será nunca perene. Falam muito alto. Gesticulam muito e as palavras saltam como enormes pedregulhos sem atingir ninguém. Comem muito. Vivem de barrigas fartas e morrem ao fim de pouco tempo com um acidente de váscula – ups! o azar e o fado, que terra de diamentes!... Destes nada falar. Sabemos como se comportam estes perante o rei. São espezinhados sem que nada de importante volteie em meio… são a alma de deus e dos anjos. O retrato daguerreótipado de minúsculos pontos nitrato de prata! E beras! Encarniçam-se e deitam pequeninas bolhas de sal pelo canto dos lábios! Ou então berram - eu mato-o! Se esse ladrão entrar em minha casa eu mato-o! Eu mato-o! Eu mato-o! Eu mato-o! Ou pelo menos concretizam a ilusão de felicidade do classicismo católico -romano. A beatitude da porta da igreja e da sede do púlpito. A bonança da transmutação das palavras do “pater”, Vivem num “continuum” espácio-temporal animado e benfazejo… vivem num fedor de casco… infelizes os que comungam… O outro tipo de homem é adaga. Punhal. Cala-te e observa. Sente o pulsar da vida. Basta um aguaceiro golpe de espada! Deves ter reparado que agora estou a falar para ti. Sabes se é o rei quem comanda?! Raro. Tem a ilusão de que o faz. Cala-te e observa. E ilumina o teu caminho. Através do caminho do poder – esse poderoso estimulante. Desenreda-te. És actriz. Sê actriz. O teu desejo de palco está a chegar… atrás dos tempos estão tempos. Das derrotas e das quase mortes! E das ressurreições. É para isso que vive entre nós o diabo. É para te conceder essa graça. Tens que decidir do medo que esse Lúcifer te poderá instilar. E esse medo é de eternidade!... a eternidade é a salvação que a figueira te saberá ofertar. Sabes o que é um rei. É um espantalho que serve para meter as hordas em ordem. Sopra medos e mortes mas deixa que o arrebanhem porque é, por si só, um pequenino imbecil. Arregimenta as tropas em parada. Mas é o espírito do pedreiro livre que trabalha nos bastidores. São as luzes da genialidade que lhe dão cor e vigor! Vivem do fogo pálido que irradia. Não. O jogo do poder não se mostra sob a forma de luz, Jaz soturno sob a forma de escuridão no poço da montanha. Revolta. Pára e lê à tua volta. Só tens que viver. Deixa que a adrenalina te sulque as veias. Muito sincero! Sempre que o navio sangra ouve-se um salvo que é o do capitão. Se esse silvo te atormenta então só o sossego te salvará. Se convives com o desassossego então… de nada te salvará fumar faboradas e faboradas de um mufo estéril… São os ditadores que afastam os abutres. Quando espreitam procurando… e o fazem a medo… sugam do medo o momento da morte que infalivelmente os espera. Ninguém precisa dos generais e dos marechais pois esses são os fantoches ao serviço da governação. Ao serviço dos arautos. O rei da nação vai só e os alicerces estão corroídos e podres. Vem vento e borrasca. Em última aragem vingarão os espíritos com aura de espectro. Os alvos a abater. Que acumularam sumo e seiva. Então as asas não lhes escaparão. Os olhos de pássaro intimidam e arregimentam… e tu?, como te comportarás! Como te disporás ante a viragem, Haverá quem te empalideça em governo e voragem? Questão que será a última. Vai ao espelho! Olha para ti. Encontra se faz favor o espectro demoníaco que é a tua aura de espírito. Não vejas a mulher. Procura além do medo para lá dos sons guturais de Maldoror… só então almejarás encontrar. Só então almejarás encontrar…”
Estas e todas as outras estradas foram dali feitas grito e som. Da pequena grande madeira de bancada puída naquele canto naquele minúsculo naquele sortilégio… dali saímos envoltos em “mist” e se por fora praguejávamos por dentro irados e pensativos. Por dentro ruminávamos. Por dentro elefantes ou bois ou algo do género.


Nuno Monteiro

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Do valor das palavras...

"Aos paramilitares que estavam a cometer crimes e a matar pessoas, o meu pai sempre opôs as palavras. As que dizia nos seus discursos e as que escrevia no jornal. Eu também não posso vingar-me de uma maneira física, tomar as armas e ser como eles. Só me resta o que me ensinaram a viver em casa: o valor das palavras. É a única vingança admissível.»
Héctor Abad Faciolince, em entrevista ao Jornal de Letras (Abril 2009)

A casa inquieta, a José Donoso


Quando acordou, ainda mais cansada, logo estranhou a ausência de ruído. Esteve um esgar de tempo com o olho esquerdo aberto e a orelhita à escuta, após o qual, já amedrontada, ergueu a cabeça. E o gato, por onde estaria? Destapa-se e cobre o corpo com o robe, este silêncio, querem ver que o mundo comeu todo o ruído? Da janela que abria dava para ver lá ao fundo a estrada que, àquela hora já corria ufana na chusma de automóveis. Pois bem! Não é que nem um. Atravessou-a um momento de medo intenso, agonia, sentar-se-ia e restabelecer-se-ia. Cinco minutos, cinco dias, quem haveria de saber dizer quanto tempo!… chega à porta da rua e na rua, as árvores, frondosas, floridas, um cheiro que inundava o espaço, barulho das abelhas, nada, barulhos vários, népias, apreensão. A mão dá para pegar no telefone e, quando o descobre mudinho da silva, vê, na rua, Wenceslao, o crítico perigoso, derrubar com um tiro certeiro o ardina. Estranha que não ouça o silvo dos carros da polícia. Estranha não ter ouvido a bala, estranha que a tenha visto, estriada, a caminho. Então lembra “o legado de ruínas de Don Adriano”. Fechou a porta da rua à chave, correu a correr as persianas e no escuro calmo da selva, estranhou; chegou o reino das trevas. Permanece atenta, sob ameaça, deixa que o tempo passe, envelhecida, esfomeada, ouve Tomás, lambendo-lhe a mão, aninhado, os olhos arregalados, a cauda quieta.

Nuno Monteiro

terça-feira, 7 de setembro de 2010

En garde


Anita é bonita de olhar, especialmente à noite, enquanto as estrelas zunem e ela se desatralaçava e esticava as mãos para o céu, como se as tocasse. Tocava-as, oh se as tocava porque ficava envolta numa claridade de alegria, era embarcar em Anita e era mágica a noite que, com Anita, olhávamos o céu. Então dizíamos sobre o mundo e sobre a idade adulta, então era tudo belo, sem frio ou pedras ou ainda poços, era tudo fácil e reluzente, como farei quando esquecer, já velho e só, as noites e os fins de tarde, na praia, com Anita. O modo como ela sorria e apartava areia entre os deditos, o modo como esticava as pernas até se quedar imóvel, entre a imensidão.
Certo dia, fim da tarde, chegou-se com a seguinte… che, porque não acreditas nos vivos! Eu fiquei embasbacado olhando-a… isso é mesmo teu Alice! Olha, estás a ver estas ondas de mar que te enrolam os pés… diz-lhes que cessem! Tenta. Não posso, o mundo perderia metade do gozo, não sabes que as pequenitas borbulhas de mar me massajam… És impossível, as ondas do mar por uma massagem aos pés? Uma massagem até eu ta fazia… não, o que eu queria dizer, é que a preia mar e a maré vaza, existem, tal como o caminho dos homens… então mas que tem isso a ver com os vivos? Pois, que mais queres que te diga, como acreditarei em vivos que se comportam como se a vida não fosse responsabilidade deles… Então Alice mete-se de pé à minha frente, flecte um pouco as pernas e hasteia o braço direito, como se empunhasse uma espada ou um florim… en garde! Não sou eu quem te desafia, é a minha espécie, profundamente zangada com a tua… depois rebolou na areia e por toda ela, ficaram coladas milhares de areias de quartzo que reluziam ao sol. Viajou até mim, mirabolante, a imagem de uma terra de mil e um pirilampos, uma auréola perfeita, doce algodão doce, os cabelos ruivos da pipi anunciando tanta coragem… não Che! Não acredites, eu não sou assim tão coragem. Mas ainda assim, vamos rasgar caminho e cheguemos a nado, ao farol. O mar é meu amigo e nada receies pois a uma palavra minha, não só faço parar a maré como a vazo até lá longe, à luz onde só bule, rodopiando, essa luz Alexandria, que se lê folha a folha…

Nuno Monteiro

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Escutar, reflectir, (agir)



Ouvido e retirado daqui: http://wwwmeditacaonapastelaria.blogspot.com/

Por enquanto mama, o filho de Cristo


De dentro da caleche, sumptuosa, olhava-se de uma maneira indigente os campos de trigo. Há já uma hora, corriam, à velocidade, os caminhos dos campos, infindos, monótonos, do trigo. Tudo pertença da propriedade. E diz a matriarca
(falando para se fazer ouvir, talvez incomodada com a ausência)
um dia, herdarás tudo isto… e logo um silêncio, prolongado, tomava conta do espaço. Lá por fora, o cocheiro, aprumado, impecavelmente vestido de limos e gomos, arribatava os cavalos Os donos estão com pressa… E diziam os cavalos ora! O que eles querem é passar os campos, onde mora tanta abastança e onde as mulheres vão parir às traseiras, de pé, sem largar da mão as panelas e a esfregona… medo! Já que dos campos amiúde se levantam almas mortas, como insurreições, impossível contê-las.
Lá dentro, de novo na caleche, o patriarca, saturnino, escondia uma pequenita pistola e pretenderia fazer-lhe colar a vida, muito embora roubasse tantas, tão desgraçadas… olhava o filho, com uma mistura de ares que iam desde o snob, das roupas cuidadas, ao imbecil, que lhe advinha do lábio caído e do olhar apagado. Explodia! E pensava para ele que não teria a quem deixar administrar tanta terra, o pequeno nem as letras aprenderia… a matrona, sentada do lado dele, completava o pensamento… mas que vergonha, que dirão dele as outras famílias!
(Oh pai, pois compreendo que te amedrontes! Não se matam as almas mortas)
E contudo, os cavalos, alados, puxavam a caleche ao fundo do vento… suados, protegiam-se, na primeira malaposta manda a mensagem, o trigo está já maduro! O filho de Madalena já nasceu. É um latagão bonito, saudável que já caminha pelo seu pé. E não sente medo das trovoadas.
Aparentemente afastado de tudo isto, o cocheiro, esse condutor, olhava os cavalos e sabia que eles conversavam, pois sabia, mas escondia e em silêncio sorria…
A tarde, desse amendoado odor, recolhia, da mesma forma que o caminho, a estrada púrpura, sedosa, ameaçava parar, cessar, cortar, para dar voz ao poder… essa espécie de poesia do trabalho, que convida, sem convidar.

Nuno Monteiro

sábado, 4 de setembro de 2010

Eu hei-de amar uma pedra, poemários


Nas tuas mãos duas um coração. Poucomaisqueanelembasalto. E as praias que borbulham segredos ao fim da tarde, as vidas que enlaçam como círculos, num nunca mais parar de costa… É do mar que vem um enorme espelho? É do mar que chega um sonoro sopro? Um bafo de escadas ao fim das quais a língua de areia que te espreita as pernas. Uma praia escrita poema. Tal como a luz. E por força dos olhos, a foto. Um pungente abraço. A água fria que cristalina a epopeia e torna escuro o chapinhar vermelho, de tuas algas, de teus cabelos. Esse coração de xisto, preso entre teus dedos deambulara, perdido, antes e depois do tempo. Guardaste-o? Gosto. Gosto do coração que segura as mãos. A foto que fecha a foto é isso mesmo, uma moldura de basalto com forma de Marão. Milhões de anos antes…

Nuno Monteiro

Casa de campo - José Donoso

(…) Vais para o torreão?
- Vem comigo.
- Não.
- Porquê?
- Porque a tua voz treme.
- Parece-me que tenho motivos de sobra.
- Por causa daquilo a que as pessoas chamam esperança?
- Sem dúvida.
- Não creio que gostasse de sentir esperança, se isso me tornasse tão vulnerável como te torna a ti.
- Se uma pessoa não sente esperança, Arabela, fica fria e só durante toda a vida e quando chega a idade de se entregar a alguém ou a alguma causa, não consegue fazê-lo.
- Eu entreguei-me à causa de os afastar daqui e no entanto desconheço a emoção que te embarga.
- Pergunto-me se um rancor como o teu, móbil em si respeitável porque bem fundado, pode ser cimento da esperança.
Arabela não precisou de pensar para responder:
- Não, mas ao impulsioná-los, por rancor, a empreenderem esta excursão e a perderem-se nesta miragem, junto-me à tua esperança sem partilhar o teu projecto. (…)

Casa de Campo, José Donoso, Cavalo de Ferro, tradução de Sofia Castro Rodrigues e Virgílio Tenreiro Viseu

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Ouma (personagem pedida emprestada a J.M.G Le Clézio)


Ouma nasceu indígena da ilha grande das Maurícias… fez-se mulher morena, de longos cabelos lisos, que lhe escondiam a face e que floresciam ao vento. Nunca aprendera a escrever nem a ler! Nunca aprendera a falar (o dialecto do homem branco, convém que nos entendamos!) Vivia, quando não ventava perigosamente do mar, sob a falésia, alta, olhando-o, tacteando-o que chegavam e partiam vapores, foi e é assim desde sempre…
Porém, Ouma, única, pois era só ela que conduzia o rebanho para a falésia. Algo a queria ali. Algo a não tolerava ali. Garatujava num linguajar muito parecido com o vento e os murmúrios da ilha, houve um dia, um dia em que o mar estaria excepcionalmente calmo, houve um dia em que Ouma se atirou da falésia. Morresse, as cabras dariam selvagens pois já pouco lhes faltaria. Salvasse, e nadasse, teria algum barco que a recolher e teria algum homem que lhe dar de comer. Aprenderia a falar (esse dialecto banco!).
Muito tempo se passou e Ouma não morreu e Ouma encontrou o tal barco e Ouma cabelos vagos de porcelana, navegasse…
Vento
Noite
Vento e noite…
Vinte anos mais tarde, bem vestida e bem instalada, já dona de uma caligrafia de princesa e de uma casa ilustrada, Ouma recordaria o dia em que mergulhara nas águas do oceano. E então, tendo já passado pela vida, estaria arrependida, sentindo saudades… se pudesse uma vez mais ouvir relatos da falésia, nas Maurícias, e pergutasse às cabras, por certo, nos dias tempestuosos, quando por dentro do ar há uma redoma de calma, ficando a culpa e a maldade postas de parte, haveria de olhar e ver, não as rugas e a pele quebrada mas os cabelos soltos e os pés de aluvião…
Mais vento
Mais noite
Dor
Demasiado tempo se passou e Ouma, mulher morena, pálida, acabaria por perder a vida entregue a um delírio, desgosto de falta de mar e de sol. Terá sido, talvez, o diabo quem a tentou aquando do salto A água, bebere-a do poço e os candelabros, os candelabros envidraçavam os quartos e a banheira Ouma, morena, era frequentemente vista ao longe, muito alva, enlouquecida, nua do seu rebanho.

Nuno Monteiro

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Madalena no comboio de mercadorias


Caída a noite e estabelecido o silêncio, a serra acomodar-se-ia por detrás da vida e os olhos, os olhos dele voltariam ao escuro, rápido, do fundo… há madrugadas que levam olhos mais além, curtos manifestos de amizade, pequenitas lembranças e estradas secundárias, os lugares vagos, a serra sabe-o tão bem. Louros? Em meio de noite calma propicia reprodução. Pirilampos dançam para aí aos molhos anunciando as grávidas. Vagar. Dantes, por detrás do meu quintal, passavam comboios de mercadorias, comboios que, por instantes me arrastavam entristecido. Hoje esses comboios transmutaram-se em serranias pedregosas, nas madrugadas fundas e nas barrigas das grávidas. Lentamente, cresce o bulício aos lados do nascente, ao horizonte. Querubins do senhor. Lentamente ela, uma pálida personagem, afasta o mundo com a mão e conduz o bando de latidos com o cajado. Ele, ermitão, deitar-lhe-ia um beijo ao saco. E esse tanto é tudo pois que nem um céu por entre a terra nem a terra entre o céu. Até os querubins o sabem. Cristo, se vagueando entre as estradas secundárias, deveria procurar Madalena, a morena alta e cigana, a dos pés bonitos.

Nuno Monteiro

Porque vivemos demasiado o nosso castelo

Sá de Miranda

Desarrezoado amor, dentro em meu peito
Tem guerra com a razão, amor que jaz
E já de muitos dias, manda e faz
Tudo o que quer, a torto e a direito.

Não espera razões, tudo é despeito,
Tudo soberba e força, faz, desfaz,
Sem respeito nenhum, e quando em paz
Cuidais que sois, então tudo é desfeito.

Doutra parte a razão tempos espia,
Espia ocasiões de tarde em tarde,
Que ajunta o tempo: enfim vem o seu dia.

Então não tem lugar certo onde aguarde
Amor; trata traições, que não confia
Nem dos seus. Que farei quando tudo arde?

- Sá de Miranda -

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Amanhã amanhecerá cinza

Há barricadas nas estradas da minha terra, estão a matar pessoas, estão a matar crianças, e eu aqui tão longe, e eu aqui chovendo, são os pobres os que perdem primeiro o futuro, são os países pobres os mais pobres dos pobres, a minha terra em chamas, o meu chão em chamas, e eu que envelheço e eu que envergo luto e eu que falo sem que alguém me ouça, será agora noite na minha terra, será agora noite escura pintada de vermelho de balas, eu, por enquanto, encolho os braços e recolho a voz, porque, lá tão longe, as mortes, as crianças e os berros, não os ouço. Amanhã amanhecerá cinza, uma cinza de vergonha, nos olhos e nas mãos.

Que a tua mãe te fugiu

Dei-lhe cabo do canastro… E cirandou pela suja rua. Acompanhêmo-lo pois que deu um pontapé na bolita verde ali esquecida dalgum outro miúdo.
(A minha mãe…)
Seguia descendo a avenida! Pára um carro, presa fácil, do carro abrem as portas e, num instante, cá fora, o estupor que lhe batia. Edgar via. Correu a pegar numa pedra.
(A minha mãe?)
E depois uma nuvem, pousaria a pedra e choraria, encharcar-se-ia de afectos e de cigarros… a mulher jazia inanimada, corpo mole, grassado, negro em bocados redondos… Quando parou de chorar, adormeceria, vazio, uma vez mais fumando, cessando
(A minha mãe?)
A escura dor diria a tua mãe fugiu-te.

Nuno Monteiro

O túnel


Os homens estão cá todos? Todos. Todos têm com que trabalhar? Bem, então que comecem… a partir de hoje só se pára a empreitada ou quando estiver completa ou quando algum morrer e mesmo neste último caso, pára apenas durante as exéquias. Temos que reunir os homens, Homens: vamos estabelecer um horário de trabalho, Que seja com a conveniência de todos, para que seja com os braços e os pulmões e a fraternidade. Então o túnel fazer-se-ia. Operários. Donos deles próprios. Esmagados ante o peso das pedras e dos martelos… toc, toc, toc, toc… Moreno era o capataz… os homens confiavam… suportavam-no… era Jeremias o segundo comandante… os homens pediam-lhe de beber, quando estavam esquálidos de sede, pediam-lhe de comer, quando se sentiam esquartejados de fome, os homens enfarripavam as mãos uns dos outros, perdiam menos sangue, e assim foi durante mil anos, mal passavam a ombreira do túnel, ele deixava de ter tempo, lá dentro, nem os homens envelheciam, nem a pedra partia… só o sangue e as lágrimas corriam a rodos como se numa festa corresse cerveja. Mas não. Os homens não estavam numa festa. Antes Moreno, à boca do túnel, para Jeremias! Sabes como era Moisés? Lembras? Atendia a todos. E como morreu? Sozinho enfiado no catre, só deram com ele quase uma semana depois, o homem já fedia… tenho medo, embrenhamo-nos na terra e mais fundo na pedra, e se andamos lá por baixo às curvas, perdidos? Pior, e se lá embaixo, damos de caras com esse valdevinos desse belzebú? O que diria Moisés se aqui estivesse? Ora o que diria? Que cavassem fundo, ora o que diria, foi assim que ele morreu? Há sacrifício maior que a morte, eu cá não conheço. Apagaram-se os cigarros e os dois homens ficaram no escuro da noite. Ao fundo, sentiam os cães latir e milhares de vozes, excitadas, que os avisavam. Lá bem no fundo, aqueles dois homens saberiam que a abertura do túnel, mais do que a eles, iria libertar os mortos, as almas clementes que não conseguiriam nunca outro caminho para a salvação. Isso é o bastante ou não Jeremias…
Os carvalhos haviam deitado fora a folha e na penumbra, surgiam como fantasmas que rangiam… ninguém lhes tinha medo, os dois homens voltaram-lhes as costas e, já no caminho do fundo buraco, toc, toc, toc, num compasso de eternidade.

Nuno Monteiro
“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

Prémio Histórico - Filosóficas