quarta-feira, 25 de agosto de 2010

A Pátria não quer mais filhos


Era noite, era quase um fim de tarde em chamas vermelhas… Em um centro de vila clamava-se justiça, sossego, sono, Só a tarde se ia embora, a noite, as flácidas luzes, as bandeirinhas, o palco, os ciganos, os artistas, todos esses, cómodos, convencidos, chegavam. Trazidos das carroças, fumando, tagarelando, rindo, bebiam, arruaças, Fechem as janelas, protejam o sorriso… orquídeas deambulavam pelos cabelos pretos delas, violões e acordeões pousados aos joelhos deles, as chinelas sorrindo, os vestidos curtos, as pernas escuras, os olhos lacrimejando, o suor, correndo em bica, do palco. Um fumo, um riso, um esgar, um dedilhar de cordas, uma dança, um rio, um cortejo ruidoso, aniz, fundo, fibra, músculo.
Anita, ali surgida, caminhava, envolvida…
Mais noite, as portadas da vila que se tornavam transparentes, os candeeiros que deixavam sombras por entre os vivos, por entre as melodias, por entre as vozes, essas sombras, que se erguiam e convidavam, os dedos nas cordas, os lábios, as nádegas, a música que afastava as sombras, os latidos, grasnidos, elas, as ciganas, a pele, os olhos, a lástima, o encanto, o escuro da pele, a França que acorda, a fraternidade, a igualdade,
Anita, francesa, mui bela donzela, ali acorrida, gostaria, amaria…
Noite sob as estrelas. Um canto cigano, o folclore, as luzes e as cores, os artesãos, as mãos, pernas e pés, todas as palavras, as carroças moviam em círculo, o bulício que cortava o ar fresco… uma porta que se abre, uma moça que surge, uma camisa de noite… os velhos músicos que rangem, belicosos, atoardas, vénias, cumprimentos, água, A bela francesa que move o pequenino pé, tomada de pânico, cede à virtude da música, cabelo loiro, quase branco, sob as estrelas, a frança, sob a bastilha…
Anita, diplomata, vem para a beira da pequena francesa e ensina a dançar …
que é como se se movesse o sujo do palco e … antes que a noite acabe… a pequenita francesa cresce, pinta as unhas das mãos, entrança o cabelo louro, pinta a tatuagem de um gato, dança e sua, olha as flácidas luzes e beija-o, cobre-se com a bandeira, descobre o seio, franco, púlpito, sagrado, o cabelo loiro ataca as janelas e as portadas, o suor entranha-se e beija-o uma segunda vez, as matronas riem, os velhos músicos redobram,
Anita retira-se, sai de cena dissoluta em nuvem…
A França enruga, mórbida, púrpura, retira-se e expulsa, A moça, já de manhã, ainda envolta na bandeira, fuma, sorri e ante a polícia entoa a marselhesa.

Nuno Monteiro

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“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

Prémio Histórico - Filosóficas