segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Os cães


Nas exéquias fúnebres, o moleiro, doente, na realidade muito doente vai chegar à beira do escritor e diz-lhe, por amor do cristo, despache-se homem, eu já não duro muito de modo que você, se lhe acha o sorriso bonito e se lhe interessa ficar aqui, então solte-se destas mortes e despose-a. Descosa-se e abrace-a. Depois disso fechou os olhos e todos o julgavam morto…
Levado para casa, quando viria o médico?, deitado na cama, o velho intervalava períodos de treva total com outros em que se fazia melancólico, dava a ideia que vinha ao lado de cá contar as novas do que estaria para lá da cordiulheira e ele acabara de visitar. Suava abundantemente. Abafavam.no, mandou embora a filha, Susana e mandou chamar o escritor…
Assim o viu, bom dia homem! então como vão os papéis?, ouvi dizer que desde que aqui chegaste não escreveste nem uma linha… olha vou dizer-te uma história que se quiseres, podes assentar. O escritor assim faria. Predispõs-se a ouvir. O velho foi começando com uns olhos muito vivos uns vagares muito fundos, foi na minha jovem idade adulta… julgava que era deus, não vivia aqui, eu não sou de cá, cheguei cá, tal como tu, mas alto lá, foi na minha idade dos vinte e um anos, deveria estar para fazer vinte e um anos… e parava, silenciado, recordava… no moinho passava a água lá ao longe e era a mó, o barulho do roçagar da pedra mó… o velho retomava… a mãe de Susana era uma mulher bela, o sorriso aberto, digno, julgo que terá sido através dela que eu terei visto para lá da magnífica vida… então ela estava grávida não de Susana do meu outro rapaz, o que acabaria por me voltar as costas, o que me chamaria cobarde e assassino, ainda hoje me doem, assim a peito, duas rochas ásperas, afiadas… um homem não pode com tanto… depois disso fui perdendo força, acobardei-me e fechei os olhos, recolhi-me cá detrás da cordilheira, essa sim, tem sido uma fiel aliada, uma parede erguida até ao céu, outro silêncio arrastado, prolongado… o escritor que tenta situar-se, a tarde que vai caindo e encharcando tudo de um calor suado, amolecido… contar-te-ei exactamente o que se passou elogo tu te dicidirás por quem, se por mim, se pelo meu filho, e se o fizeres pelo meu filho, então eu viverei sabendo que o fiz em pecado, que o afastei e que o nunca procurei por orgulho, então eu saberei morrer. Mas se decidires por mim, então nada em mim mudará, pois ele já foi embora há um ror de tempo, e e eu nada pude nem nada posso. Confio em ti, confio-te a minha Susana, como não haveria de confiar em ti… a coisa foi assim, lembro como se fosse hoje, o dia da minha sombra, o meu mergulho num escuro… era um dia lindo e luminoso, havia uma casita que era a nossa e era uma estradita que dava para o café, aí a duzentos metros. E ao correr da estrada duas ou três casitas, pobres como a minha. O velho agora dizia tudo de enfiada, não fosse o destino pregar-lhe mais alguma, eu peguei no rapaz pela mão e disse-lhe, rapaz, vamos ao café saber as notícias e enquanto isso, comes uma sandes de queijo, o rapaz anuiu, tinha doze anos, casmurro, tinhento, uns olhos grandes, foi comigo na conversa e nisto topo dois cães enormes, jingões, à desfilada, um preto, enorme, reluzente, e outro mais pequenito, não sei se cadela, que se metem à estrada aí a uns cinco metros de nós, à saíde de uma curva e vem um carro, trazia um pouco de embalo lá isso trazia, eu e o meu filho ficamos olhando aquilo, o carro acerta-lhe em cheio, um dos cães já não sai mais dali, eu creio que a grelha do carro fica partida, o outro é projectado e vem parar mesmo em frente do meu filho, eu vi a pata dianteira partida, levanta-se incrédulo, o cão estav incrédulo, parecia não acreditar que lhe haviam batido… já lhe botava sangue pela boca, o meu filho fica olhando para o cão, as portas do carro abrem-se e o condutor manda chamar o dono dos cães, o dono da casa em frente deita a cabeça de fora e a mulher aos berros lá por detrás dele, o cão mais pequenito que arfava encostado à berma, e o grande, de pé, ali defronte de mim e do meu filho, arfando, uma pata no ar, virada para fora, e da boca, uma gosma de sangue eu não sei o que me passou pela cabeça, levava comigo uma faca e a minha mão pegou na faca sem que eu lhe pudesse dizer fosse que fosse e espetei fundo a faca no cão, punhaleio no coração, umas duas vezes, o bicho fechou os olhos e morreu ali mesmo onde estava. No mesmo instante o outro cão expirava. Devem ter ido os dois para o céu… o meu miúdo, o meu miúdo, no instante seguinte salta para as minhas costas e desata-me aos murros e aos pontapés, num berreiro que durou quase uma semana… depois emudeceu, nunca mais lhe ouvi uma palavra e dali a dois anos, ele mais a minha mulher metem pela mesma estrada e passam avante do café, nunca mais os vi. Ficou em minha casa Susana, então com dois anos. Tinha nascido uns dias antes de tudo o que te contei…agora diz, matei o cão? Sou um tinhoso por isso. O cão estava morto, o cão olhava para mim e se falasse, ele dizia mata-me. Fui um assassino ou um misericordioso?
Logo depois fecha os olhos e mais uma treva, morto? Não. O coração batia… os olhos abertos, a cara sulcada de rugas, o escritor termina o dia, descanse avô, amanhã falamos… e toda a noite fica ali com ele. Entretanto Susana vem aninhar ali também com ele.


Nuno Monteiro

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“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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