quinta-feira, 13 de novembro de 2008

O renascer do medo


No reino renasceu o medo. Ou rejubila. Não estou certo que dele alguma vez se tenha ausentado. Repitamo-lo para que não haja desentendimentos, vivemos tempos de medo. Como se em cada esquina se postasse algum caminheiro que na realidade não está lá a caminhar. Não está a caminhar. Arregala muito os olhos e logo após vai contar pois dessa forma julga que assegura os míseros tostões as míseras migalhas com que come repastado o camarão que falta à minha mesa. Mas eu que me não importo. Nem com o camarão nem com o caminheiro. Que vivam imersos em nébula e que para mim sejam inconcebíveis. Ou ainda invisíveis. É, assim mesmo a todos os que ainda queiram ler. Porque esse é outro dos grandes problemas dos nossos tempos. Por medo, ou por descrença, quiçá as duas, também cessou a leitura. Já da escrita eu nem falo. Para quê se eu escrevo cada vez mais para mim mesmo. Ler-me-ão os meus alunos? Isso queria eu. Mas nessa já eu não caio. Uma quase descrença como uma mão que toca o desperdício ou um olhar que roça o infinito. Ou então falamos dialectos distantes que se não tocam. Ou que muito tenuemente como se fosse código de luz lá longe na penumbra do horizonte de um mar encapelado. E então entre nós todos o mar encapelado que impede a comunicação. O mau tempo do canal alargado a todos e cada um de nós. E todos e cada um abandonado ao seu canto. Um inferno em vida. Estamos cada vez mais próximos da realidade sombria dos menos afortunados. Se não há falta de dinheiro então faltam afectos, se sobram os afectos então fará falta o dinheiro. Ou então também encontro, debaixo da ponte e nas grandes urbes tantos sem dinheiro nem afectos. Os que passam fome. Todos os séculos após, ainda os que passam fome. E entretanto renasceu o medo. O medo de falar e de pugnar pelos direitos. Pudera. Numa sociedade onde a justiça emperrou, onde se graceja com o ano do término dos processos, num país onde os empregos se fecham a cada dia, num lugar onde a saúde vive gorda para os ricos. Num país onde os hotéis estão cheios de afamados de colarinho. Num país sem bandeira. Num país sem vergonha. Num país sem saudade. Neste lugar despido de homens. Onde renasceu o medo.
E que irei eu fazer doravante? Quando todos se calam e todos se tornam autistas. Quando se calam as canções e emudecem as vozes de protesto. Quando se instauram os comportamentos daninhos como se fossem a normalidade dos nossos dias. Viverei uma realidade de abnegação e de negação. Deixarei eu de sonhar? E a ter que sonhar, sonharei com quê? Sonharei com justiça onde? Sim, onde abunda essa tão preciosa? Para onde poderei olhar quando quiser olhar algo de verdade, alguma entidade verdadeira que me não queira enganar? Quem me quererá fazer companhia. Seremos ainda capazes? Ou morreremos todos autistas de olhos fitos no nosso próprio umbigo!
Alguns quererão sempre dizer que faz falta tempo. E a verdade é que falta. Se faz falta a alguns outros haverá que o tenham de borla. E que o tenham em doses duplas e triplas. E desses nunca rezará a história porque não sabem o que fazer com tanto tempo. E dos outros também não porque são formiguinhas que trabalham como escravos. Como escravos que o são cada vez mais. Eu, afirmo que o que mais falta é coragem. Coragem de união, coragem de fraternidade e de simplicidade. Coragem de homem. Vão fazendo falta as discussões fraternas e os entendimentos tão necessários. Porque os que nos querem enquanto escravos apostam tudo no nosso comportamento suicida e na nossa tendência para o malogro e a decepção. A decepção do meu irmão que me atraiçoou, a decepção do meu amigo que me denunciou. Porque essa decepção nos embebe em sono que nos fustiga devagar até que vergastados nos vamos transformando noutros novos milhões de espoliados e de defraudados. E o caminho que fecha e que se torna tão estreito e escorregadio.
Nuno Monteiro

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“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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