segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Capelo de andanças


Lá ao longe…ainda ao fim do mar…enquanto esfrego os olhos … nevoeiro baixo e um frio que me entorpece. Tu, só tu, estarás para sempre comigo. O mar é um capelo de andanças. Eu sou tão pouco pecador. E tu, só tu, sacas das tuas armas e envolves-me suavemente. Se por um momento apenas pudéssemos conhecer o sabor das castanhas dessa Lisboa antiga. Se por um instante apenas…lá ao longe…no fim do mar. Para quem terei eu nascido?
Lá ao longe entre a neblina aquela és tu. Aquela canhoeira de projécteis vazios e infundados. A cabeleira tão preta da enfermeira que me tirou sangue hoje de manhã. Que frio dormia do meu lado da cama. Que buraco de inconstância. Que sede de poder. E que sorriso o teu. Se por um momento só outros pudessem ver de que forma tu fumas o teu cigarro. E como curtes as tuas zangas.
Lá ao longe entre a neblina de trovoada, aquela és tu. Minha inveja. A minha caudalosa torrente, a minha infame lâmina, a minha cantiga tão piedosa. Não há ninguém maior que tu. Como, com tempo de chuva te podes despir e dançar, te podes esconder e adormecer, como, em tempo de sol és capaz de voar, vaga e etérea sobre os campos de trigo e as florestas de carvalhos. Como, em tempo sem tempo és capaz de fumar. Como, em tempo de inconstância, poderás caminhar navegando, poderás ser alva errante, conseguirás ser tornado e redemoinho.
Lá longe…ainda ao fim do mar…ainda e sempre a fronteira do mar, tu sem seres tu, tu nunca aqui, tu sempre numa eternidade maior que a minha. Pois fica aqui escrito entre nós…não te deixarei morrer…farei voar esses teus cabelos de fogo…impregnarei este papel do teu cheiro…de cada vez que te irritas, quando pedes um café curto…que fronteira intransponível, que vida melodiosa, que vaga de calor quando colas tua cara à minha.
Aqui ao perto nós os dois na mesma sala sentados no mesmo sofá olhando os mesmos avisos partilhando os mesmos momentos. Enquanto fada encantada…tudo o que fica por dizer… o céu azul e a fronteira da terra. Uma Terra com o teu nome. Um lugar do teu feitio. Só que te não conheço. Esse lugar do demónio. E eu habito em todos os lugares. Esqueci-me da terra com o teu nome. Regá-la-ei. Arregalar-me-ei!
Aqui ao perto o mesmo livro aberto. A mesma folha a mesmíssima palavra. Aqui tão perto a palavra e o encanto. A beleza lírica que és tu. Que sempre foste tu. Aqui sentada ao meu lado a poesia. Nas tuas pernas de mulher. Pousada nas tuas coxas de saudade. Olhamos o mesmo livro aberto. Ouvimos a mesma melodia feita de intriga. Iguais. Que buraco de serenidade. Que cruel narrativa. Que sucessão de opressões.
Aqui ao perto a mesma lápide tumular. A mesma macieira. Dois ou três campos de trigo. Desavindos presos a um quadro minimalista. Encarcerados, um no outro, esperando o fogo lânguido da lareira. Engalfinhados e endemoninhados. Haverá quem mais me irrite? Haverá quem mais me contente? Poderá algum dia ser de outra forma? Até quando as questões? Não te deixarei partir nunca. Por isso lá longe não existe. Só o mar. Só a neblina onde és sereia. Só a terra onde és chuva. Só tu. Só tu. Arregalar-me-ei!


Nuno Monteiro

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“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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