sábado, 13 de dezembro de 2008

Discurso de apresentação da obra O poço - FNAC de Braga




Para ler de forma muito pausada, como se te aquecesses à soleira do diabo:



Quero vir aqui falar do homem. Que outro assunto me queimará mais o pensamento. Esse majestoso nada que pede licença para entrar. E muito embora eu ainda não seja um descrente na espécie dir-se-á apenas que estou a meio caminho. E bem balanceado e caindo. Não porque ele seja insidiosamente mau, quantos o não serão, mas antes porque, sob múltiplos aspectos, o considero uma criatura surpreendente e desconcertante. É tão capaz do melhor quanto do pior. Mais capaz do pior que do melhor. Logo no instante seguinte do pior. É capaz de sonhar e de esquecer. É capaz de ovacionar e de maldizer. Encerra em si um desejo de mudança mas logo se acomoda. Berra irado quando a fotocopiadora encrava mas esquece ou ergue muros em volta de África e da malária e da cólera. E esta referência a África poderia ser também uma referência à Ásia, América do Sul, América do Norte. Os baluartes da boa vida desaparecem com a voragem dos tempos. De facto o ser humano ostenta permanente duas faces. A face do comodismo, um bem-estar aparente e ecologicamente pesaroso e a outra face a face da bonomia que distribui comida pelos bancos alimentares deste país. Que distribui migalhas pelos imensos pobres e necessitados deste país. Esta dupla face tem a ver com a dicotomia entre deus e o diabo. Se, nas nossas vidas haverá alturas em que nos sentimos tocados por deus, outras serão momentos de buraco ou de poço. Como se tu gritasses não me deixes cair nesse poço. Ou como se ouvisses o teu colega do lado suplicar por um instante de cordialidade e de serenidade. E tu ouve-lo amiúde. Só que lhe não respondes porque a vida te terá embrutecido. Porque não deixar que esse se afunde no poço se a mim tantos já me magoaram. As dificuldades da vida. As pretensas dificuldades que ao fim e ao cabo não são dificuldades nenhumas. O ser humano que ergue muros de indiferença com que se distancia dos penedos da discórdia tornando árdua a jornada da vida. Pensem comigo por favor – de que valerão as nossas pequenas invejas quando comparadas com o sofrimento das mulheres africanas que vêem morrer os filhos de fome? Vives ao abrigo de uma gigantesca bandeira que te assegura todos os teus caprichos – vives bem e então tendes a esquecer que a Terra não vive toda bem. Esqueces propositadamente que para tu viveres bem milhões de outros não podem ter acesso nem a água nem a comida. Clamas por mais e mais justiça sem que no entanto dês passos reais que te conduzam a ela. Não és revolução. A revolução morreu contigo. A revolução morreu em ti.
Vivemos mundialmente um tempo de mudança. Tempos agitados de ruptura. Tempos nublados e cobertos por uma fuligem que nos vai fechando os olhos e ouvidos. Tempos indutores do medo. Medo do desemprego. Medo das más relações sociais. Medo das invejas. Medo da fome. Medo do medo. Medo do amigo que senta a teu lado. Em cada homem uma nuvem de tempestade, a ameaça de um mar agitado. É esse medo que fomenta o desrespeito. Do desrespeito vive o homem actualmente. Da falta de valores. Da farsa dos valores. Da farsa da vida dos homens. Nada está bem entre o reino dos homens. Há muitos homens e demasiadas guerras.
Vivemos uma era de declínio da civilização ocidental. Injusta sob certos tantos aspectos. Injusta para ti e para mim. O inconcebível torna-se insuportavelmente concebível. Milhões de homens, esquecidos e ignorados morrem devorados por outros homens. Homens que comem homens. E que vivem bem e que tanto ganham com isso. Instituições falidas e conspurcadas. Valores dessacralizados. Um mundo de marionetas num palco de papel. Numa decoração leve de um tom róseo para não matar de susto as senhoras donas de casa. Numa promiscuidade avassaladora que inviabiliza, anula e cristaliza. A figura gigante da máquina emperrada porque não há quem se manifeste. Não há quem berre cultura pelos corredores fora. Não há já quem ouça. Não há ninguém. O homem cessou. Fala não falando ou não se fazendo ouvir, gesticula não gesticulando, olha não olhando, vê não vendo, escreve para não ser lido, olha impávido e derrotado o arco-íris da cor do cinzento. Normaliza tudo. Tornámo-nos todos iguais. E essa igualdade encerra uma perfídia que é filha do diabo. Desse ponto de vista todos somos poço. Todos iremos ao fundo. Afundar-nos-emos caso não nos refundemos. E não parecemos capazes de nos refundarmos. Depois de mim os meus filhos e esses que se amanhem.
Cessam paulatinamente as liberdades no nosso país. Na nossa Europa. Surgem messias. Obama é o proclamado messias. Não existem homens messias. Não existem profecias. Não existem sonhos. O homem sonha mas não age. Cristalizou num modus operandi inimigo da verdade e do altruísmo. Somos o que não deveríamos nunca ser. Temos receio de que algo mude. E na esteira do que não muda apodrecemos sem sequer darmos conta. Uma das verdades mais profundas do génio do homem é o da sua imutabilidade. A negação do desejo de mudança. Feliz natal e um óptimo ano novo. Nas bocas de milhões de bocas. Nas bocas tão iguais de homens tão iguais. Agora sejamos sinceros e verdadeiros. O pregão quer dizer que tenham um natal normal – normalizado – igual e um ano seguinte igual. Nem melhor nem pior. Igual. Se possível pior do que o meu. Que não chegues a passar fome. Mas que te não dê para passar avante e comprar carro melhor que o meu. O que passa despercebido pela maioria é que este sentido de existência tem como corolário uma vida consagrada à mediocridade e à tensão do poço apertado e deixa espaço de sobra para os abutres que se banqueteiam nos melhores restaurantes. Quem poderá julgar que o sentido do homem é um carro ou qualquer outro mal material?
Por isso mesmo cessam as liberdades no nosso país. Por isso as classes estão sob ataque. Longe de mim estar a introduzir qualquer segregação que se baseie na noção de classe. Aqui a palavra leva o sentido forte de profissão. Achincalham-se os professores recuperando-se velhos ódios para que se convertam em votos à boca da urna – nome sugestivo já que, uma urna é outro algo que noutras circunstâncias contém um cadáver; achincalham-se os médicos e os enfermeiros símbolos de outra classe para que se possam daí gerar votos. Votos que nascem da infâmia. Expliquemo-nos melhor. Imaginemo-lo como um dinossauro excelentíssimo que trata todos arrogantemente e que é capaz de denegrir as classes mais letradas para captar os votos da inveja e assim cavalgar o sentido de descrença perpetuando-se no poder à custa dos mais desfavorecidos. E pelo meio coarctam-se liberdades individuais e restringem-se as vozes dissonantes. Dá-se força ao pântano em que se vive. O homem no seu eterno sentido de desprezo pelo outro homem e caminhando vivamente para a berma do poço. Ou inversamente, de dentro do poço, tantos milhões olhando ofegantes as nuvens negras que os esperam quando e se dele conseguirem sair. Procuram-se manter milhões subalternizados por uma idolatria que é analfabetismo cruel para que esses milhões possam ser melhor manipulados e manietados. De vez em quando saem novelas e telenovelas para que se mantenham milhões entretidos. Ou tiros e carnaval de algum corso de vivas cores. O gigantesco mundo do entretenimento. Orwell e o triunfo dos porcos. Restará adiantar que de degrau em degrau é a República quem se fragiliza e a irresponsabilidade quem assalta os lugares.

Palavras rudes num mundo rude. Palavras amargas num mundo amargo. Ideias indigestas. A cada um a liberdade de as julgar. A cada um a prerrogativa, central e inatacável de as aceitar ou não. Mas a cada um o dever de pensar. Porque foi para pensar que nasceu o homem. É no pensamento que ele se concretiza. É no pensamento que ele existe. Nada mais há senão palavras e ideias. Daí que elas me sejam tão caras. Em cada livro uma certeza que é também uma prova de humildade. Agitam-se as águas na certeza de que, cada um de vós não deixará de olhar esta ideia como uma mais sobre a qual julgarão.
Quanto a mim, a mim o papel que me coube. A mim a agonia da escrita. Agonia que não enjeito desde que vocês me leiam. Não vou nem poderei nunca mudar mundo algum. Mas poderei, caso assim vocês o entendam entrar dentro de vós e uma vez lá agitar-vos para que se possa aceitar o essencial da vida. Restará então saber o que é o essencial da vida. Não há questões simples. E muito menos resposta únicas.
Permitam-me então pescar uma ideia de José Saramago. Do discurso na academia sueca quando se referiu aos avós. Duas ideias, se me ajudarem. A primeira, a imagem do avô abraçado às árvores do quintal. A prova do que é realmente importante. E a segunda, nas palavras da avó que se despedia deste mundo louvando-o só porque ele é belo. Porque ele é belo. Porque ele é belo. Como se as palavras ecoassem. Quanta pena sentia de morrer porque se separaria deste mundo que era tão belo. Continua a ser belo. Por mais que o homem teime em afirmar o contrário.
Com receio de estar a maçar, e agradecendo uma vez mais as palavras que pude aqui deixar, agradecendo a vossa presença que tanto me felicita.

Muito obrigado!




Nuno Monteiro

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“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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