domingo, 1 de fevereiro de 2009

O Poço - Bertrand - Porto


Chegou o dia em que ela chorou. Duns olhos de súplica, do fundo negro desses olhos que me olhavam assustados soltavam-se pedidos de socorro, soltavam-se demais sarças em fogo. Chorou sem lágrima saída do fogo. Chorou enquanto tão ao meu perto eu vi aqueles olhos que se transformavam em mar imenso, um tudo-nada salgado. Esse choro contido foi a forma dela pedir ajuda. E os lábios tremeluzentes. Todo aquele conjunto de face congestionada olhava-me enquanto berrava em surdina uma ajuda na qual já nem ela acredita. De volta de mim alunos. Ela em frente a mim. uma linha de borda de água salgada projectava-lhe o olhar muito para além dos montes e das nuvens. Sem poder sequer sair dali. E eu que nada fiz olhei intensamente para ela julgando que lhe poderia emprestar das forças que também não tenho. E cresce em mim a revolta e apago em mim esta violência que é esta vida. Dessa vez não fui capaz de a fazer rir. E então culpei-me eu talvez sentindo que dessa forma lhe apagava os nãos que lhe marejavam os olhos. Chegará o dia em que tu também chorarás. Restar-te-á a fortaleza que em ti possas conter ou a presença de algum amigo. Se o choro resulta da solidão a amizade calca-o e apaga-o. Estou tão farto de anjos negros que nos polvilham com miséria. Estou tão cansado do homem esquecido vilipendiado.
De volta de mim ela parou e chorou. E por instantes nela eu vi toda a nação. Enxovalhada e ridícula, húmida e desconfortável, vilipendiada e maltratada. Nela eu vi barcos negreiros e todos os nossos trabalhadores desiludidos. Nela eu vi crianças em sangue, pais profundamente perdidos e olheiras negras como se simbolizassem todos os poços ou o milhão de poços minúsculos. E confesso que não sei quanto mais lágrimas teremos para chorar. Confesso-me, em meio de deserto, em meio de ruínas, em meio de flores tombadas. sinto que estou baralhado. Perdido em alto mar e de pulmões a rebentar. E culpado porque não lhe soube fazer estancar as lágrimas. E não a soube fazer rir. Não sei como responder a essa guerra surda e arredia que se instalou na mente das pessoas. Não lhe consigo responder. Sei apenas que a voragem da vida nos sufraga a todos. Impele-nos para o escuro à velocidade da luz e nas antigas caravelas em demanda do cabo tormentoso. É o mesmo choro que me impede de dormir. É o choro que nos molda o semblante e que nos arrasta para o meio da nuvem. Da discórdia.
De volta de mim ela estancou e ali ficou, rodeada de alunos e a chorar. E arrastou-me consigo, creio que lhe terei dito que se não importasse porque tudo passaria. Culpo-me agora, porque talvez lhe tenha mentido. Talvez ela tenha acreditado e tivesse ficado na esperança de que algo fosse melhorar. Quanto eu daria para acreditar na mudança. É que eu não sei se me basta acreditar que a mudança chegará. Preciso senti-la.
Há uma guerra surda na mente dos homens. Há muitos homens demasiado depauperados. Há demasiados homens demasiado magros. Exauridos como escravos. Arrastados pelas ruas da descrença e da desconfiança. Quem fez do meu país este balde de impropérios? Quem transformou esta jangada numa nova barcaça de escravidão! Sei agora, soube-o sempre, sinto-o agora que nada mais nos resta senão mentir. Mentir na esperança, mentir na nova vida, mentir no homem. A redoma fecha-se e congrega-se para que se consuma por fim. Quando e sempre que os caminhos faltarem. Dessa guerra surda morrem milhares esquecidos. Fecham-se as fábricas e os lares. Forjam-se adultos à pressa e transtornam-se milhares de novos jovens sem emprego. O homem vive hoje no fio da navalha. Restar-lhe-á o caminho tão estreito do gume cortante da faca que não corta o fogo. Como pudemos ser tão vis? Como nos pudemos deixar arrastar para isto. Então que faremos se o caminho que tomamos é o da faca incapaz de cortar o fogo. Deixaremos que o fogo nos consuma. E que se faz contra essa sarça ardente? Chore-se. Um choro profundo e nasalado que congregue águas imensas capazes de nos purificarem.
Mas por que razão chorava ela. Porque razão choras tu. Porque sente que a república a abandonou. Porque sente que deita trabalho fora. Porque não tem instituição que a ouça. Porque não há justiça. Porque sente que a máquina é poderosa demais e a corta em tiras todos os dias. Porque faltou cumprir-se o homem e ela tão bem o sente. Construíram-se estradas e pontes, casas e piscinas, escolas e hospitais, linhas férreas e aeroportos. Mas desgraçadamente esqueceram-se de construir homens. Morreu a formiga no carreiro. Morreu o carreiro. Esqueceram-se os homens uns dos outros. Esta foi a voragem da vida. Estas são as nossas sarças ardentes. Os violentos entrarão primeiro. Na força alimenta-se da força e então quase nada resta para ti. A república só se lembra do eleitor quando ele tem que pagar os impostos. A máquina fria e escura é poderosa demais e substitui-se à força aos antigos rituais de vida. Apague-se o sorriso da face dos milhões de poços minúsculos e certifiquem-se que serão mexilhões para sempre. Mexilhões para sempre. Injustiçados os homens livres para que se lhes quebre de novo o ímpeto. Para que esses também se movam involuntariamente, de acordo com os ditames e as regras. Partam-se-lhe a esses também o espírito.
Vi, naqueles olhos em água, naquela água que lhe debruava o espírito a salga que retira todo o oxigénio e que lhe impõe um só caminho, com o qual ela se não identifica e que é contrário à identidade humana e que contrário à humanidade. Aquele choro, aquela face, aquele pedido de auxílio mostrou-me a fragilidade do homem e a grandeza do mesmo. Porque ninguém julgue que o homem está morto. A surpresa espreita à esquina. E o homem é sempre mais forte que a máquina que o oprime. A humanidade prevalecerá sempre.
Deixem-me concluir por favor. Em cada homem há um gigante. Que se revela por vezes. Se cada vida é una e livre, se sofre acorrentada, a qualquer momento se solta para se erguer acima de todo o poço e se atirar voando pelos céus da eternidade. Cada vida pode semear e plantar. Toda a vida semeia e planta. Foi isso que eu aprendi e sei que é isso que vai acontecer. Dentro de ti ninguém mexe. Não há máquina que me vença. E quando a ocasião espreita eu reajo de acordo comigo e com a minha consciência. Eu reajo salvando. Ainda bem que fizeram de mim um professor. Ainda bem que tudo corre tão mal nas escolas. Ainda a chorar a professora caminhando pelas escadas sentiu uma mão duma menina que a puxava. E que se contraía com dores e chorava ainda mais. E nem foi preciso mais nada. Pegou a menina pela mão e conduziu-a ao hospital. Professora e aluna. E das mãos do médico saiu um sorriso da boca da menina. Saiu um obrigado da boca da menina. E pegava-lhes pela mão como se fossem pai e mãe. E quando a menina já sorria, quando pedia para voltar para a escola, foi o médico quem fitou a professora e lhe disse deste modo. Não se importe com aquilo que incautos lhe obrigam a fazer, sabe dar valor à vida e esse tanto para mim me basta. Foi como se lhe pregasse uma medalha ao peito. Virá o dia em que estes actos serão reconhecidos. Por enquanto a professora continua a chorar. Por enquanto a professora vive ainda num inferno privativo. Mas depois do inverno chegará a primavera e saberá o homem cultivar as flores e embelezar os campos. Saberá o homem olhar de frente o sol que o alumia e sorrir das aventuras pequenas que o agigantam.

O estado da nação é o estado de um choro crónico e pronunciado. Cabe a cada homem saber agir de acordo com a consciência livre e humana. Cabe a cada homem aproveitar cada instante para se aproximar dos justos. Para que o céu não seja propriedade exclusiva dos violentos. Cabe a cada homem o trabalho da formiguinha, a reconstrução dos antigos caminhos. Por vezes um rebuçado apaga o fogo. Há um travão que vê a graça. Por mais pequena e infinda. Há um caminho. Há sempre um homem novo.
Desta feita deixei os agradecimentos para o fim. Lanço-os agora a todos os que aqui estiveram. Quanto ao livro, ele aí está, para que o leiam e para que o julguem. Fundamentalmente para que o julguem. Porque quando o fazem estão a construir mais um pequenino caminho.
Muito obrigado a todos por terem vindo e por terem partilhado este momento comigo.

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“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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