domingo, 8 de fevereiro de 2009

Discurso de apresentação d'O Poço na Escola Secundária Miguel Torga - Bragança


Os obrigados da praxe. A todos os presentes. E à Marina e à professora Cecília por ter sido tão amável. E aos membros do conselho executivo da escola – uma palavra de apreço a todos e ao professor Carrapatoso.
E uma desculpa a todos porque limitar-me-ei a “desembrulhar” as palavras escritas e orquestradas de véspera. Sinto-me muito mais confortável dessa forma. Doutra forma não me pareceria tão correcto. Quando me ouvem lêem o meu livro. Aquele que eu aqui venho apresentar. E sobre o qual não vou falar. A esse respeito todos ouviram a Marina e eu não saberia acrescentar nada mais.
“Se um homem é livre, quando pensa, quando imagina, quando fantasia, dando existência a coisas que não existem não há governantes, não há reformador que possa colocar-lhe travões” estou a citar Henry David Thoreau. E faço-o porque estou a falar para uma audiência de mulheres e homens livres. Antes ainda, falo para uma audiência de professores. Livres pensadores! Com toda a responsabilidade que isso acarreta! Mais…homens e mulheres que forjam consciências. Professores. De cabeça levantada, de alma e matéria, combatentes, responsáveis, conscientes, educadores.
É engraçado que já Thoreau tenha sentido necessidade de aclamar o que sempre foi a fraqueza do homem. Sabendo tão bem que essa fraqueza se pode revelar como a sua maior vontade. Que ninguém tenha dúvidas. O professor é um entusiasta. É um comediante em qualquer palco improvisado. E um confidente. Trabalha no fio da navalha porque forma os homens de amanhã. E com estes não pode haver mansas concórdias. Se a sociedade lhes pede tanto, deve o professor responder com mais ainda. Da aula para dentro os alunos são meus. São os meus formandos que ali estão. E eu surjo-lhes enquanto gigante. O meu lugar é o do gigante ou o da formiga. Não haverá meio-termo. E então não posso falhar porque o que me foi confiado foi uma missão. Sob este ponto de vista não há missão mais arriscada. Mas também não há missão mais dignificante. Entenda quem quiser. Ouçam-me os espíritos livres. Ouçam-me os gigantes. Ouçam-me os calcados. Sejam aves. Sejam livres. Sejam capazes. Sejam. Não se resignando à poeira do que tem sido atirado a terreiro. Não se curvando. Se é verdade e cada vez mais verdadeiro que a vida está a caminho do poço obscuro e castrador também é verdade que nos fizeram professores. E um professor é um eleito. Da minha aula para dentro não há reformador. Não há travões. Porque o professor é um fantasista. É um obreiro. Constrói mentes. Molda-as. Influencia-as. Não se pode demitir. Esse é o erro capital. Esse erro é o intuito deles. Pode quebrar mas não deve desistir. Deve empunhar a bandeira da liberdade onde quer que se encontre. Mesmo que para tanto tenha que caminhar sobre um deserto sem fim.
Aos professores sempre foram agitadas as águas do desterro e as cores do desânimo. A isso parecemos fadados. Esse é quanto a mim um dado adquirido. Mas a classe sempre soube resistir. À classe têm sido impostos os maiores desafios. E contudo sempre prevaleceu. E eu vejo tantos tão bons professores. E esses serão para sempre bons professores. Porque não há legislação que ameace a obra de criação de uma vida. E por outro lado lado eu vejo uma sociedade em sangue. Um rastilho de pólvora. E os nossos alunos perdidos num mar imenso de dúvidas. Eu vejo alunos à míngua e famílias destroçadas. Gritos surdos de socorro. Conheço uma instituição que avança e os protege. Eu vejo professores que acorrem sôfregos amparando o aluno. Quando tenazmente se revoltam. Vejo o caminho da missão e o outro caminho, o caminho da força e da união. Vejo gigantes. Moinhos de esperança. Com um sorriso escarninho na minha face eu olho em frente e encaro o futuro. Porque essa é a minha forma de me orgulhar. Interessa que a classe não ceda. Até que a nossa mensagem passe. Até que os sinos dobrem. Porque eles dobrarão. Não há injustiça que prevaleça.
Mesmo em meio de injustiça e duma sociedade infestada delas não há injustiça que prevaleça. Exactamente porque a docência é uma área charneira. Exactamente porque a perseverança prevalece. Quanto a isso o que importa é manter a união. Mesmo sabendo que árduo será o caminho. E porque cem mil sufragaram o terreiro do paço. Assustados terão ficado. Não poderão caminhar desavindos por muito mais tempo. Sabem que os pobres do lixo, os labradores do esgoto, esses todos Zé Povinho acordam por vezes. De vez em quando acontecem fins de ciclo. Sabem que as agruras da vida vão marcando e que dum descontentamento global e do fecho das fábricas nasce um desejo imparável. E sabem que Portugal é do povo. Sabem que Portugal é do agricultor que não tem a quem vender o que tira da terra. Ou do pescador que não sai para o mar e tem que pedir fiado. Ou do pequeno comerciante a quem lhe fecharam a loja. Sabem que o povo não vive só de migalhas. Sabem que doravante não poderá ser para sempre a angústia de viver sem respirar.
Portugal tem sido reino de injustiças e o drama dos professores é apenas um. Portugal não tem sabido dar guarida aos nossos jovens nem recém-licenciados. Portugal não é para Jovens. Também não tem sabido dar guarida aos mais velhos entre os quadros. E já nem falo dos velhos atirados para paupérrimas habitações de um frio e uma vida cinzenta. Portugal também não é para velhos. E enquanto falha o trabalho falha o dinheiro e de falha em falha chegamos ao fim do caminho. Chegamos ao reino do faz de conta. Ou à falta de reino. Chegamos ao fim do caminho. E não há angústia maior do que um homem sem caminho.
Mas se os sinais são omnipotentes e se o fim do caminho está já à nossa vista, que ninguém espere que sejam os outros a desempenhar essa tarefa. Se o mexilhão espera ao sol seca e definha. Pelo que urge agir. E então se todos temos a capacidade de pensar a questão é agora saber de que forma se atenderá às necessidades da nação. E daí que eu retorne às minhas palavras iniciais. Para que fique aqui bem escrito que cabe a todos a missão de redesenhar o futuro. Se o cidadão comum não for também um cidadão interveniente então deixará que outros lhe mostrem que caminho traçar. E não há caminho que se trace sem inúmero esforço. Mas nessa intervenção tem que transpirar o humanitarismo. Quanto a mim temos apenas dois caminhos. Ou o da escravidão ou o do humanitarismo. O da reinvenção do potentado do homem. Se o primeiro não precisa da escola deitará os professores fora pois tornar-se-ão obsoletos. Se o segundo é o caminho das dificuldades é o que deverá ser trilhado para que os novos homens encontrem uma terra mais igualitária e mais significativa. Mais alegre e mais competente. Mais aprazível.
Foi intenção minha vir aqui a esta escola dizer estas palavras. Ditas de chofre como se o tempo urgisse e todo o devir devesse ser antecipado. Como se a catástrofe estivesse tão próxima. Quis que aqui fossem ditas pela primeira vez. Porque é a primeira vez que uso este livro em meio escolar. E fi-lo porque julgo que o meio escolar tem sido do mais espezinhado. Tem sido solo profanado. Por políticas que desconhecem o professor. Por políticas. Que esquecem o homem e o aluno. Nem sei se não deva usar o termo desprezam. Esta será a maior crítica que poderei fazer a estas políticas. Esquecem o professor enquanto educador e forjam uma sociedade ainda mais injusta. Não pode ser isso que a escola quer.
Da mesma forma que a restante sociedade, a escola tem sentido também as agruras dos tempos que correm. Não sei se tem sabido lutar contra elas. Sei até se será humanamente lutar. Sei que se não poderá desistir. Daí que eu considere o solo da sala solo sagrado. Dentro prevalecerá a visão do professor. Dentro da sala como dentro da mente do professor. Tudo em prol do aluno, tudo em prol da formação do aluno, tudo em prol da educação. Sabendo que por vezes dói. Sabendo que por vezes nos julgamos derrotados. Tantas vezes saio de uma sala de aulas completamente derrotado. E quantas vezes não consigo adormecer sem encontrar uma saída! E que avaliação me farão os sujeitos que passaram uma noite descansada! Porque o meu solo sagrado é a minha sala de aula. E a minha presença interessa sobretudo aos alunos. Desta escola guardo testemunhos imperdíveis. Encontrei aqui alunos que eram autênticos homens. Encontrei aqui colegas inexcedíveis. E desta vez, porque tantas foram as vezes que ao longo de oito anos, eu a visitei para actividades extracurriculares, encontrei uma estrutura exemplar, uma biblioteca escolar viva e sadia, que me permite aqui estar. Poderei eu desacreditar? Poderá alguém querer desacreditar esta estrutura?
Também não consinto que se ponham em causa os alunos. Porque ao fazê-lo estaríamos a dar razão àqueles que nos querem açoitar. E bem sei quão sensível é este ponto. Mas da mesma forma que eu me coloco à chuva, ao centro do poço, também cada docente, a cada instante, se deverá deixar encharcar até perceber se a questão também não passará por erro seu. Erro seu na forma como tratou determinada situação relativa a determinado aluno. A admissão do erro faz parte da auto-avaliação de cada docente. Aliás a admissão do erro faz parte da sã convivência entre os homens. E a dessacralização do erro também.
Acabo, como comecei. Livre. Apresentando um livro. Que lhe chamei “O Poço”. E que é um triste relato desta violência a que se convencionou chamar vida. É um relato dos meus últimos três anos. Não o pintei de rosa nem lhe chamei romance. É pesado como a vida. Escuro como estes dias de inverno. Abro-o e deixo-o à vossa consideração e ao vosso juízo. Não poderia ser de outra forma.
E deixando aqui um ponto final nesta narrativa que já vai longa. Não sem antes evocar José Luandino Vieira naquilo que há de mais puro:

Operário não pode sonhar, Quinzinho, não pode. A vida não é para sonhos. Tudo realidades vivas, cruéis. A luta com a vida.…A tua mãe já não chora, Quinzinho, não chora porque é forte. Já viu morrer outros filhos. Nenhum morreu como tu. Despedaçado pela máquina que te escravizava e que tu amavas.


Muito obrigado por terem aqui estado. Muito obrigado por terem vindo.

Sem comentários:

“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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