domingo, 15 de fevereiro de 2009

Desafio


Tenho uma vaga lembrança
De uma história que se conta
Em certa velha lenda espanhola
Ou numa crónica antiga

Foi quando o bravo rei Sancho
Morreu às portas de Zamora
À qual o seu grande exército montava cerco
Acampado na planície.

Don Diego de Ordonez
Apresentou-se sozinho diante de todos
E gritou bem alto o seu desafio
Aos que defendiam as muralhas da cidade.
A todos os moradores de Zamora,
Aos nascidos e aos que estavam para nascer,
Desafiou como traidores
Em tom desdenhoso e altivo.

Insultou os vivos nas suas casas
E os mortos nas suas campas
As águas dos rios
E o vinho, o azeite e o pão.

Há um exército bem mais poderoso
Que nos assalta de todos os lados
Um exército infindo e faminto
Que luta em todas as portas da vida.
Os milhões que a pobreza oprime
Que vêm disputar o nosso pão e vinho
E nos acusam de traição
Nós, os que estamos vivos, e os mortos também.

E sempre que me sento à mesa do banquete
Onde a festa e as canções não têm fim
No meio da alegria e da música
Ouço os seus gritos terríveis,

Vejo os seus rostos tristes e descarnados
Fitando o salão iluminado
E as mãos exangues estendidas
Para apanhar as migalhas que caem.

Dentro de casa há luz e abundância,
No ar pairam bons odores,
Mas lá fora, reinam o frio e a noite,
A fome e o desespero.

E no acampamento faminto
Ao vento, ao frio e à chuva,
Cristo, o grande senhor dos exércitos
Jaz morto na planície.

Longfellow, in O povo do abismo, Jack London

Sem comentários:

“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

Prémio Histórico - Filosóficas