segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Aura de cansaço


Chegou com a fúria que sempre lhe assistiu e disse como se pela primeira vez – pudéssemos nós ser livres e tudo voltaria imediatamente ao início dos tempos. E após retirou-se com a ansiedade que sempre o assolara, retirou-se e enjaulou-se defronte do espelho, com a fúria latente engolida havia tanto tempo, com o verbo para sempre calado e um hálito ácido do alho com que se banqueteara ao fim da manhã, durante o almoço. Nem aí pudera ser livre. Fora um almoço espartilhado por todas as convenções sociais de que há memória. Todas as convenções ali confluídas para o fazer suar, para o engaiolar e para o fazer corar, obrigando-o ainda por cima a discursar coisa que detestava e ele sem nada para dizer – quão horrível é não ter o que dizer. Sem ter nada para dizer.
Pudéssemos nós ser livres e tudo voltaria imediatamente ao início. Livres de quê? Livres de quê! Livres da soberba que nos move, livres dos medos que nutrimos, livres da falta de dinheiro e livres dos patrões, livres dos empregos e das regras sociais. Livres das cores dos baptizados que todos nos impingem, livres das moléstias e dos cansaços do final dos dias, livres das horas de sono e de vigília.
Pudéssemos nós ser pássaros e tudo voltaria ao início, ao denominador comum da vida sem homens, a ausência de transformações da era dos homens nesta nossa esfera de caos e um mundo dominado por pássaros. Os pássaros do paraíso e todas as florestas em cada um dos seus lugares, todos os recifes de coral em cada um dos seus oceanos, todas as montanhas altaneiras que se transformam em bastiões, todas as insígnias realmente simbólicas num simbolismo sem homem. E homem sem igual.
E aquilo foi quanto bastou para que toda a humanidade lhe caísse em cima. Jorraram críticas de todos os sectores, brotaram sevícias de todos os quadrantes e embora houvesse alguns tímidos que o tivessem percebido, esses tão poucos tímidos assaz inteligentes, esses foram sufragados por uma urbe inquieta em constante penúria, uma montanha urbana de intenções e insinuações que de uma leva só, qual tempestade de areia ou ciclone de grau oito os tivesse dali varrido e quem medrou foram os vitupérios e os escandalosos sacrílegos da ofensa vã, os merdas miudinhos incapazes tamanhos. Esses gigantes que medram sempre e que dominam ardentes os altares da ignomínia e que asfixiam, os gigantes calçados assolapados que dum pranto só, cobrem de vergonha os poucos letrados que tanto pedem para trabalhar.
E que têm esses contra a justeza de uma liberdade autêntica. Têm tudo porque para todos serem livres teriam eles que abdicar das mordomias que os elevam como se navegassem sob balões de outros entes transformados de vidas humanas. E como haveriam esses tão poucos de viver então, na ausência de criados e no precipício de ter que cozinhar e de ter que trabalhar para ganhar algum.
Pudéssemos nós ser livres para agirmos como seres humanos. Deixássemos nós de ser formiguinhas de trabalho para outrem e então perder-se-ia a humanidade mas ganhar-se-ia de novo a condição de homem. Da forma como tudo está hoje conta apenas o sofrimento de uma condição humana que é nada mais que servidão humana.
E a fúria que todos lhe conheciam e a ansiedade que todos lhe negavam diziam-me apenas aquilo que eu queria ouvir – que o sujeito era um semelhante e que se cansava muito mais porque olhava para lá do mundo para os campos de uma outra matriz ideológica onde todos fossem tidos como iguais. As rugas e os cabelos brancos provavam o resto. E o homem que ali se escondia era mais um pequeno privilegiado. Um pássaro privilegiado porque irmanava dele uma aura de invencibilidade que nem a olheira funda da sua visão de águia cansada conseguia suprimir.

Nuno Monteiro

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“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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