terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Aura de cansaço


Chegou com a fúria que sempre lhe assistiu e disse como se pela primeira vez – pudéssemos nós ser livres e tudo voltaria imediatamente ao início dos tempos. E após retirou-se com a ansiedade que sempre o assolara, retirou-se e enjaulou-se defronte do espelho, com a fúria latente engolida havia tanto tempo, com o verbo para sempre calado e um hálito ácido do alho com que se banqueteara ao fim da manhã, durante o almoço. Nem aí pudera ser livre. Fora um almoço espartilhado por todas as convenções sociais de que há memória. Todas as convenções ali confluídas para o fazer suar, para o engaiolar e para o fazer corar, obrigando-o ainda por cima a discursar coisa que detestava e ele sem nada para dizer – quão horrível é não ter o que dizer. Sem ter nada para dizer.
Pudéssemos nós ser livres e tudo voltaria imediatamente ao início. Livres de quê? Livres de quê! Livres da soberba que nos move, livres dos medos que nutrimos, livres da falta de dinheiro e livres dos patrões, livres dos empregos e das regras sociais. Livres das cores dos baptizados que todos nos impingem, livres das moléstias e dos cansaços do final dos dias, livres das horas de sono e de vigília.
Pudéssemos nós ser pássaros e tudo voltaria ao início, ao denominador comum da vida sem homens, a ausência de transformações da era dos homens nesta nossa esfera de caos e um mundo dominado por pássaros. Os pássaros do paraíso e todas as florestas em cada um dos seus lugares, todos os recifes de coral em cada um dos seus oceanos, todas as montanhas altaneiras que se transformam em bastiões, todas as insígnias realmente simbólicas num simbolismo sem homem. E homem sem igual.
E aquilo foi quanto bastou para que toda a humanidade lhe caísse em cima. Jorraram críticas de todos os sectores, brotaram sevícias de todos os quadrantes e embora houvesse alguns tímidos que o tivessem percebido, esses tão poucos tímidos assaz inteligentes, esses foram sufragados por uma urbe inquieta em constante penúria, uma montanha urbana de intenções e insinuações que de uma leva só, qual tempestade de areia ou ciclone de grau oito os tivesse dali varrido e quem medrou foram os vitupérios e os escandalosos sacrílegos da ofensa vã, os merdas miudinhos incapazes tamanhos. Esses gigantes que medram sempre e que dominam ardentes os altares da ignomínia e que asfixiam, os gigantes calçados assolapados que dum pranto só, cobrem de vergonha os poucos letrados que tanto pedem para trabalhar.
E que têm esses contra a justeza de uma liberdade autêntica. Têm tudo porque para todos serem livres teriam eles que abdicar das mordomias que os elevam como se navegassem sob balões de outros entes transformados de vidas humanas. E como haveriam esses tão poucos de viver então, na ausência de criados e no precipício de ter que cozinhar e de ter que trabalhar para ganhar algum.
Pudéssemos nós ser livres para agirmos como seres humanos. Deixássemos nós de ser formiguinhas de trabalho para outrem e então perder-se-ia a humanidade mas ganhar-se-ia de novo a condição de homem. Da forma como tudo está hoje conta apenas o sofrimento de uma condição humana que é nada mais que servidão humana.
E a fúria que todos lhe conheciam e a ansiedade que todos lhe negavam diziam-me apenas aquilo que eu queria ouvir – que o sujeito era um semelhante e que se cansava muito mais porque olhava para lá do mundo para os campos de uma outra matriz ideológica onde todos fossem tidos como iguais. As rugas e os cabelos brancos provavam o resto. E o homem que ali se escondia era mais um pequeno privilegiado. Um pássaro privilegiado porque irmanava dele uma aura de invencibilidade que nem a olheira funda da sua visão de águia cansada conseguia suprimir.

Nuno Monteiro

Por vezes o que por fim faria...


Se dentro de mim se erguessem de súbito todos os castiçais
Se de dentro brotassem todos os sons de todos os músicos de todos os países
E se de mim saltassem todos os quadros de todos os prados de todos os museus de todos os cantos
E se de mim se acercassem todos os livros de que há memória
E então…
E depois
Enlouqueceria
E depois
Depois de enlouquecido
Que me farias?
Como me falarias?
De que forma me tocarias?
Como me tratarias?

Nuno Monteiro

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Desafio


Tenho uma vaga lembrança
De uma história que se conta
Em certa velha lenda espanhola
Ou numa crónica antiga

Foi quando o bravo rei Sancho
Morreu às portas de Zamora
À qual o seu grande exército montava cerco
Acampado na planície.

Don Diego de Ordonez
Apresentou-se sozinho diante de todos
E gritou bem alto o seu desafio
Aos que defendiam as muralhas da cidade.
A todos os moradores de Zamora,
Aos nascidos e aos que estavam para nascer,
Desafiou como traidores
Em tom desdenhoso e altivo.

Insultou os vivos nas suas casas
E os mortos nas suas campas
As águas dos rios
E o vinho, o azeite e o pão.

Há um exército bem mais poderoso
Que nos assalta de todos os lados
Um exército infindo e faminto
Que luta em todas as portas da vida.
Os milhões que a pobreza oprime
Que vêm disputar o nosso pão e vinho
E nos acusam de traição
Nós, os que estamos vivos, e os mortos também.

E sempre que me sento à mesa do banquete
Onde a festa e as canções não têm fim
No meio da alegria e da música
Ouço os seus gritos terríveis,

Vejo os seus rostos tristes e descarnados
Fitando o salão iluminado
E as mãos exangues estendidas
Para apanhar as migalhas que caem.

Dentro de casa há luz e abundância,
No ar pairam bons odores,
Mas lá fora, reinam o frio e a noite,
A fome e o desespero.

E no acampamento faminto
Ao vento, ao frio e à chuva,
Cristo, o grande senhor dos exércitos
Jaz morto na planície.

Longfellow, in O povo do abismo, Jack London

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Fragmentos - poesia


Discurso de apresentação d'O Poço na Escola Secundária Miguel Torga - Bragança


Os obrigados da praxe. A todos os presentes. E à Marina e à professora Cecília por ter sido tão amável. E aos membros do conselho executivo da escola – uma palavra de apreço a todos e ao professor Carrapatoso.
E uma desculpa a todos porque limitar-me-ei a “desembrulhar” as palavras escritas e orquestradas de véspera. Sinto-me muito mais confortável dessa forma. Doutra forma não me pareceria tão correcto. Quando me ouvem lêem o meu livro. Aquele que eu aqui venho apresentar. E sobre o qual não vou falar. A esse respeito todos ouviram a Marina e eu não saberia acrescentar nada mais.
“Se um homem é livre, quando pensa, quando imagina, quando fantasia, dando existência a coisas que não existem não há governantes, não há reformador que possa colocar-lhe travões” estou a citar Henry David Thoreau. E faço-o porque estou a falar para uma audiência de mulheres e homens livres. Antes ainda, falo para uma audiência de professores. Livres pensadores! Com toda a responsabilidade que isso acarreta! Mais…homens e mulheres que forjam consciências. Professores. De cabeça levantada, de alma e matéria, combatentes, responsáveis, conscientes, educadores.
É engraçado que já Thoreau tenha sentido necessidade de aclamar o que sempre foi a fraqueza do homem. Sabendo tão bem que essa fraqueza se pode revelar como a sua maior vontade. Que ninguém tenha dúvidas. O professor é um entusiasta. É um comediante em qualquer palco improvisado. E um confidente. Trabalha no fio da navalha porque forma os homens de amanhã. E com estes não pode haver mansas concórdias. Se a sociedade lhes pede tanto, deve o professor responder com mais ainda. Da aula para dentro os alunos são meus. São os meus formandos que ali estão. E eu surjo-lhes enquanto gigante. O meu lugar é o do gigante ou o da formiga. Não haverá meio-termo. E então não posso falhar porque o que me foi confiado foi uma missão. Sob este ponto de vista não há missão mais arriscada. Mas também não há missão mais dignificante. Entenda quem quiser. Ouçam-me os espíritos livres. Ouçam-me os gigantes. Ouçam-me os calcados. Sejam aves. Sejam livres. Sejam capazes. Sejam. Não se resignando à poeira do que tem sido atirado a terreiro. Não se curvando. Se é verdade e cada vez mais verdadeiro que a vida está a caminho do poço obscuro e castrador também é verdade que nos fizeram professores. E um professor é um eleito. Da minha aula para dentro não há reformador. Não há travões. Porque o professor é um fantasista. É um obreiro. Constrói mentes. Molda-as. Influencia-as. Não se pode demitir. Esse é o erro capital. Esse erro é o intuito deles. Pode quebrar mas não deve desistir. Deve empunhar a bandeira da liberdade onde quer que se encontre. Mesmo que para tanto tenha que caminhar sobre um deserto sem fim.
Aos professores sempre foram agitadas as águas do desterro e as cores do desânimo. A isso parecemos fadados. Esse é quanto a mim um dado adquirido. Mas a classe sempre soube resistir. À classe têm sido impostos os maiores desafios. E contudo sempre prevaleceu. E eu vejo tantos tão bons professores. E esses serão para sempre bons professores. Porque não há legislação que ameace a obra de criação de uma vida. E por outro lado lado eu vejo uma sociedade em sangue. Um rastilho de pólvora. E os nossos alunos perdidos num mar imenso de dúvidas. Eu vejo alunos à míngua e famílias destroçadas. Gritos surdos de socorro. Conheço uma instituição que avança e os protege. Eu vejo professores que acorrem sôfregos amparando o aluno. Quando tenazmente se revoltam. Vejo o caminho da missão e o outro caminho, o caminho da força e da união. Vejo gigantes. Moinhos de esperança. Com um sorriso escarninho na minha face eu olho em frente e encaro o futuro. Porque essa é a minha forma de me orgulhar. Interessa que a classe não ceda. Até que a nossa mensagem passe. Até que os sinos dobrem. Porque eles dobrarão. Não há injustiça que prevaleça.
Mesmo em meio de injustiça e duma sociedade infestada delas não há injustiça que prevaleça. Exactamente porque a docência é uma área charneira. Exactamente porque a perseverança prevalece. Quanto a isso o que importa é manter a união. Mesmo sabendo que árduo será o caminho. E porque cem mil sufragaram o terreiro do paço. Assustados terão ficado. Não poderão caminhar desavindos por muito mais tempo. Sabem que os pobres do lixo, os labradores do esgoto, esses todos Zé Povinho acordam por vezes. De vez em quando acontecem fins de ciclo. Sabem que as agruras da vida vão marcando e que dum descontentamento global e do fecho das fábricas nasce um desejo imparável. E sabem que Portugal é do povo. Sabem que Portugal é do agricultor que não tem a quem vender o que tira da terra. Ou do pescador que não sai para o mar e tem que pedir fiado. Ou do pequeno comerciante a quem lhe fecharam a loja. Sabem que o povo não vive só de migalhas. Sabem que doravante não poderá ser para sempre a angústia de viver sem respirar.
Portugal tem sido reino de injustiças e o drama dos professores é apenas um. Portugal não tem sabido dar guarida aos nossos jovens nem recém-licenciados. Portugal não é para Jovens. Também não tem sabido dar guarida aos mais velhos entre os quadros. E já nem falo dos velhos atirados para paupérrimas habitações de um frio e uma vida cinzenta. Portugal também não é para velhos. E enquanto falha o trabalho falha o dinheiro e de falha em falha chegamos ao fim do caminho. Chegamos ao reino do faz de conta. Ou à falta de reino. Chegamos ao fim do caminho. E não há angústia maior do que um homem sem caminho.
Mas se os sinais são omnipotentes e se o fim do caminho está já à nossa vista, que ninguém espere que sejam os outros a desempenhar essa tarefa. Se o mexilhão espera ao sol seca e definha. Pelo que urge agir. E então se todos temos a capacidade de pensar a questão é agora saber de que forma se atenderá às necessidades da nação. E daí que eu retorne às minhas palavras iniciais. Para que fique aqui bem escrito que cabe a todos a missão de redesenhar o futuro. Se o cidadão comum não for também um cidadão interveniente então deixará que outros lhe mostrem que caminho traçar. E não há caminho que se trace sem inúmero esforço. Mas nessa intervenção tem que transpirar o humanitarismo. Quanto a mim temos apenas dois caminhos. Ou o da escravidão ou o do humanitarismo. O da reinvenção do potentado do homem. Se o primeiro não precisa da escola deitará os professores fora pois tornar-se-ão obsoletos. Se o segundo é o caminho das dificuldades é o que deverá ser trilhado para que os novos homens encontrem uma terra mais igualitária e mais significativa. Mais alegre e mais competente. Mais aprazível.
Foi intenção minha vir aqui a esta escola dizer estas palavras. Ditas de chofre como se o tempo urgisse e todo o devir devesse ser antecipado. Como se a catástrofe estivesse tão próxima. Quis que aqui fossem ditas pela primeira vez. Porque é a primeira vez que uso este livro em meio escolar. E fi-lo porque julgo que o meio escolar tem sido do mais espezinhado. Tem sido solo profanado. Por políticas que desconhecem o professor. Por políticas. Que esquecem o homem e o aluno. Nem sei se não deva usar o termo desprezam. Esta será a maior crítica que poderei fazer a estas políticas. Esquecem o professor enquanto educador e forjam uma sociedade ainda mais injusta. Não pode ser isso que a escola quer.
Da mesma forma que a restante sociedade, a escola tem sentido também as agruras dos tempos que correm. Não sei se tem sabido lutar contra elas. Sei até se será humanamente lutar. Sei que se não poderá desistir. Daí que eu considere o solo da sala solo sagrado. Dentro prevalecerá a visão do professor. Dentro da sala como dentro da mente do professor. Tudo em prol do aluno, tudo em prol da formação do aluno, tudo em prol da educação. Sabendo que por vezes dói. Sabendo que por vezes nos julgamos derrotados. Tantas vezes saio de uma sala de aulas completamente derrotado. E quantas vezes não consigo adormecer sem encontrar uma saída! E que avaliação me farão os sujeitos que passaram uma noite descansada! Porque o meu solo sagrado é a minha sala de aula. E a minha presença interessa sobretudo aos alunos. Desta escola guardo testemunhos imperdíveis. Encontrei aqui alunos que eram autênticos homens. Encontrei aqui colegas inexcedíveis. E desta vez, porque tantas foram as vezes que ao longo de oito anos, eu a visitei para actividades extracurriculares, encontrei uma estrutura exemplar, uma biblioteca escolar viva e sadia, que me permite aqui estar. Poderei eu desacreditar? Poderá alguém querer desacreditar esta estrutura?
Também não consinto que se ponham em causa os alunos. Porque ao fazê-lo estaríamos a dar razão àqueles que nos querem açoitar. E bem sei quão sensível é este ponto. Mas da mesma forma que eu me coloco à chuva, ao centro do poço, também cada docente, a cada instante, se deverá deixar encharcar até perceber se a questão também não passará por erro seu. Erro seu na forma como tratou determinada situação relativa a determinado aluno. A admissão do erro faz parte da auto-avaliação de cada docente. Aliás a admissão do erro faz parte da sã convivência entre os homens. E a dessacralização do erro também.
Acabo, como comecei. Livre. Apresentando um livro. Que lhe chamei “O Poço”. E que é um triste relato desta violência a que se convencionou chamar vida. É um relato dos meus últimos três anos. Não o pintei de rosa nem lhe chamei romance. É pesado como a vida. Escuro como estes dias de inverno. Abro-o e deixo-o à vossa consideração e ao vosso juízo. Não poderia ser de outra forma.
E deixando aqui um ponto final nesta narrativa que já vai longa. Não sem antes evocar José Luandino Vieira naquilo que há de mais puro:

Operário não pode sonhar, Quinzinho, não pode. A vida não é para sonhos. Tudo realidades vivas, cruéis. A luta com a vida.…A tua mãe já não chora, Quinzinho, não chora porque é forte. Já viu morrer outros filhos. Nenhum morreu como tu. Despedaçado pela máquina que te escravizava e que tu amavas.


Muito obrigado por terem aqui estado. Muito obrigado por terem vindo.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Poesia - pedaços


Cantiga de amigo


Em meio de mim
Enovelam-se tuas mãos
Surges tu
Como parte da floresta
E enfeitiças
Sorris
Fumas teu cigarro
Sou de todo o mato que te tem cativa
E te dá guarida
Sou do ar que respiras
Da miragem que tu não és
Da melodia que tu instilas
E dos cheiros que me inebriam
Sou da terra que pisas e
Dos cumes que te vislumbram
Onde surges
Por fim
Alva e hercúlea
Enquanto azálea
Altaneiro castelo e muralha
Da rosa da tua janela

Nuno Monteiro

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

The Wrestler - Bruce Springsteen


Have you ever seen a one trick pony in the field so happy and freeIf you've ever seen a one trick pony then you've seen meHave you ever seen a one legged dog makin' his way down the streetIf you've ever seen a one legged dog then you've seen me(Then you've seen me) I come and stand at every door(Then you've seen me) I always leave with less than I had before(Then you've seen me) but I can make you smile when the blood it hits the floorTell me friend can you ask for anything moreTell me friend can you ask for anything moreHave you ever seen a scarecrow filled with nothing but dust and weedsIf you've ever seen that scarecrow then you've seen meHave you ever seen a one armed man punchin' at nothing but the breezeIf you've ever seen a one armed man then you've seen me(Then you've seen me) I come and stand at every door(Then you've seen me) I always leave with less than I had before(Then you've seen me) but I can make you smile when the blood it hits the floorTell me friend can you ask for anything moreTell me friend can you ask for anything moreThese things that have comforted me I drive away (anything more)This place that is my home I cannot stay (anything more)My only faith is in the broken bones and bruises I displayHave you ever seen a one legged man tryin' to dance his way freeIf you've ever seen a one legged man then you've seen me

Bruce Springsteen

Para os meus alunos - uma lição de humanidade!


O mundo enfuna as velas de um sorriso inócuo e caminha em frente, desgarrado do seu passado e tão imune quanto obcecado. Num autismo desgraçado. Vivendo ou sobrevivendo numa dualidade tão vincada - sintoma de alguma patologia grave. O homem não consegue viver sem a sua indústria colosso de soberba num iate que não poderá singrar vivendo dela. Daqui, deste facto que se insurge cada vez mais como certeza, sai um homem cabisbaixo, desapiedado, egoísta, ignóbil. Senão vejamos:
que dirás tu dos grandes desastres ambientais a que temos de forma tão incólume e que tanto prejuízo e dolo têm causado num mundo que nos gerou e nos mantém!;
que dirás tu das fortunas colossais e dos pobres colossais que pululam por esse mundo feito abismo;
que dirás tu da perda de valores e da dessacralização da vida a que os últimos cem anos têm tão fatalmente assistido?;
O mundo empurra as velas e parte em busca de mais e mais uma pegada que engolirá terras e mares e cedo procurará novos mares. Parece não ter fim a ânsia de soberba. Parece sem fim o ego humano.
Nesse contexto o aquecimento global é uma das faces de uma moeda tão especial – caracterizada por isso mesmo – ter tantas faces mas que radicam no estilo do homem. O eterno desejo do homem de ter mais, de sentir mais, de ver mais, numa espiral que cedo se concluirá bastarda, surge já denunciado na literatura e na música. Como sempre, primeiro as artes. E como quase sempre, enquanto nas artes, haverá ouvidos de desatenção e olhos descrentes. Haverá cegueira. Vacuidade e inocuidade. Quão perniciosa. Especialmente para ti que não nasceste ainda. Ou ainda para ti que te não formaste ainda.
E esta é uma carta dirigida a todos os homens que não terão percebido ainda quão dura será a vida depois do ouro negro. Depois do fim. A todos os zelosos pagadores de impostos e a todos os cumpridores destas leis tão injustas. Sabei que nada fazer apressará o fim. Sabei que todos os nossos empregos se perdem por um e só um motivo. E esse motivo é um falso valor, um não valor. A descrença no simbolismo intrínseco da espécie. A única canibal de si mesmo. Que não olha a meios para atingir os fins. Devereis perguntar a vós próprios para que serve um carro que não anda ou um barco que não navega ou ainda um almirantado sem aviões. Ou para que servirá uma casa despida de gente! Devereis inquirir junto de vós próprios o que significa viver três vidas dentro de uma só. O que é desbastar três terras em vez do quintal que te deveria caber? Como te sentirias se te enfiassem resoluto num avião sem gasolina? Acaso julgas que planarias? Ou quão ignorante pensas tu ser na gestão do meio ambiente que desgarradamente te vai faltando e fugindo a cada nova chamada. Acaso julgarás que não tens tu também a tua quota-parte de culpa? Ou quererás com pundonor continuar culpando os outros? Em meio disto tudo calca omnipresente e omnipotente a ignorância de que todos somos feitos. O desconhecimento! A falta de educação! Que é tão necessário reconhecer. Doutra forma restará apenas o desalento. A desilusão e o choro. Pobres e mendigos e escravos e explorados. E mais pobres e paupérrimos junto de um futuro que fenece e de um presente sombrio cinzento dos dias que correm chuvosos. Será das alterações climáticas? Ou será do homem? Ou ainda dos desertos que te levaram a terra e a família? Ou das colheitas incertas e o lucro que não existe. A falta de dinheiro e o apodrecimento das hipotecas. E da falta de pagamento surge o primeiro banco falido. E depois do primeiro há todo um chorrilho de lamentações junto de mais e mais falências. E se os bancos não arrastassem as indústrias! Das indústrias à fome trava-se uma batalha tão pequenina. Fome! Essa triste canalha. Que condena ao infortúnio. Essa fome que forja do aço mais e mais escravos e abismos.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

o povo do abismo


“Coitados dos inaptos e dos inúteis! Os miseráveis, os desprezados e os esquecidos são vítimas da degradação social, são os frutos da prostituição – prostituição de homens, mulheres e crianças, da carne, do sangue, da inteligência e do espírito; em suma, a prostituição do trabalho. Se é isto que a civilização tem para oferecer ao homem, então mil vezes viver no deserto e na brenha, no covil e na caverna, em vez de trucidado pela máquina e pelo Abismo”

In O povo do Abismo, Jack London, numa edição da Antígona.

Valsa egípcia


Do profundo azul nasceu a luz
Nasceste tu ébria mediterrânica … finura de tuas pernas todas azeitonas
E as terras dos teus solilóquios
Que tanto por ti falam como se te cuspissem egrégios correligionários
Ou da sorte da morte que te recobre os pés
Ou da alameda cigana de tão triste teia
A que te debrua e a que te insinua
Ninfa tão tágide de águas movediças
Como teus cachos de lúgubre mel
Adorno de tristezas
Suborno de pastoreio
Subsídios tacanhos de um altar em bronze

Há só uma sorte e a tua é de gato
Há todo um vento que te acabrunha o olhar
E um deus que te esqueceu
Em meio de frio e de vazio
Em meio de ti
Finura de ti
Figura de azeitona em lagar corroído
Olhos de fogo em um palanque de palhaço

O Poço - Bertrand - Porto


Chegou o dia em que ela chorou. Duns olhos de súplica, do fundo negro desses olhos que me olhavam assustados soltavam-se pedidos de socorro, soltavam-se demais sarças em fogo. Chorou sem lágrima saída do fogo. Chorou enquanto tão ao meu perto eu vi aqueles olhos que se transformavam em mar imenso, um tudo-nada salgado. Esse choro contido foi a forma dela pedir ajuda. E os lábios tremeluzentes. Todo aquele conjunto de face congestionada olhava-me enquanto berrava em surdina uma ajuda na qual já nem ela acredita. De volta de mim alunos. Ela em frente a mim. uma linha de borda de água salgada projectava-lhe o olhar muito para além dos montes e das nuvens. Sem poder sequer sair dali. E eu que nada fiz olhei intensamente para ela julgando que lhe poderia emprestar das forças que também não tenho. E cresce em mim a revolta e apago em mim esta violência que é esta vida. Dessa vez não fui capaz de a fazer rir. E então culpei-me eu talvez sentindo que dessa forma lhe apagava os nãos que lhe marejavam os olhos. Chegará o dia em que tu também chorarás. Restar-te-á a fortaleza que em ti possas conter ou a presença de algum amigo. Se o choro resulta da solidão a amizade calca-o e apaga-o. Estou tão farto de anjos negros que nos polvilham com miséria. Estou tão cansado do homem esquecido vilipendiado.
De volta de mim ela parou e chorou. E por instantes nela eu vi toda a nação. Enxovalhada e ridícula, húmida e desconfortável, vilipendiada e maltratada. Nela eu vi barcos negreiros e todos os nossos trabalhadores desiludidos. Nela eu vi crianças em sangue, pais profundamente perdidos e olheiras negras como se simbolizassem todos os poços ou o milhão de poços minúsculos. E confesso que não sei quanto mais lágrimas teremos para chorar. Confesso-me, em meio de deserto, em meio de ruínas, em meio de flores tombadas. sinto que estou baralhado. Perdido em alto mar e de pulmões a rebentar. E culpado porque não lhe soube fazer estancar as lágrimas. E não a soube fazer rir. Não sei como responder a essa guerra surda e arredia que se instalou na mente das pessoas. Não lhe consigo responder. Sei apenas que a voragem da vida nos sufraga a todos. Impele-nos para o escuro à velocidade da luz e nas antigas caravelas em demanda do cabo tormentoso. É o mesmo choro que me impede de dormir. É o choro que nos molda o semblante e que nos arrasta para o meio da nuvem. Da discórdia.
De volta de mim ela estancou e ali ficou, rodeada de alunos e a chorar. E arrastou-me consigo, creio que lhe terei dito que se não importasse porque tudo passaria. Culpo-me agora, porque talvez lhe tenha mentido. Talvez ela tenha acreditado e tivesse ficado na esperança de que algo fosse melhorar. Quanto eu daria para acreditar na mudança. É que eu não sei se me basta acreditar que a mudança chegará. Preciso senti-la.
Há uma guerra surda na mente dos homens. Há muitos homens demasiado depauperados. Há demasiados homens demasiado magros. Exauridos como escravos. Arrastados pelas ruas da descrença e da desconfiança. Quem fez do meu país este balde de impropérios? Quem transformou esta jangada numa nova barcaça de escravidão! Sei agora, soube-o sempre, sinto-o agora que nada mais nos resta senão mentir. Mentir na esperança, mentir na nova vida, mentir no homem. A redoma fecha-se e congrega-se para que se consuma por fim. Quando e sempre que os caminhos faltarem. Dessa guerra surda morrem milhares esquecidos. Fecham-se as fábricas e os lares. Forjam-se adultos à pressa e transtornam-se milhares de novos jovens sem emprego. O homem vive hoje no fio da navalha. Restar-lhe-á o caminho tão estreito do gume cortante da faca que não corta o fogo. Como pudemos ser tão vis? Como nos pudemos deixar arrastar para isto. Então que faremos se o caminho que tomamos é o da faca incapaz de cortar o fogo. Deixaremos que o fogo nos consuma. E que se faz contra essa sarça ardente? Chore-se. Um choro profundo e nasalado que congregue águas imensas capazes de nos purificarem.
Mas por que razão chorava ela. Porque razão choras tu. Porque sente que a república a abandonou. Porque sente que deita trabalho fora. Porque não tem instituição que a ouça. Porque não há justiça. Porque sente que a máquina é poderosa demais e a corta em tiras todos os dias. Porque faltou cumprir-se o homem e ela tão bem o sente. Construíram-se estradas e pontes, casas e piscinas, escolas e hospitais, linhas férreas e aeroportos. Mas desgraçadamente esqueceram-se de construir homens. Morreu a formiga no carreiro. Morreu o carreiro. Esqueceram-se os homens uns dos outros. Esta foi a voragem da vida. Estas são as nossas sarças ardentes. Os violentos entrarão primeiro. Na força alimenta-se da força e então quase nada resta para ti. A república só se lembra do eleitor quando ele tem que pagar os impostos. A máquina fria e escura é poderosa demais e substitui-se à força aos antigos rituais de vida. Apague-se o sorriso da face dos milhões de poços minúsculos e certifiquem-se que serão mexilhões para sempre. Mexilhões para sempre. Injustiçados os homens livres para que se lhes quebre de novo o ímpeto. Para que esses também se movam involuntariamente, de acordo com os ditames e as regras. Partam-se-lhe a esses também o espírito.
Vi, naqueles olhos em água, naquela água que lhe debruava o espírito a salga que retira todo o oxigénio e que lhe impõe um só caminho, com o qual ela se não identifica e que é contrário à identidade humana e que contrário à humanidade. Aquele choro, aquela face, aquele pedido de auxílio mostrou-me a fragilidade do homem e a grandeza do mesmo. Porque ninguém julgue que o homem está morto. A surpresa espreita à esquina. E o homem é sempre mais forte que a máquina que o oprime. A humanidade prevalecerá sempre.
Deixem-me concluir por favor. Em cada homem há um gigante. Que se revela por vezes. Se cada vida é una e livre, se sofre acorrentada, a qualquer momento se solta para se erguer acima de todo o poço e se atirar voando pelos céus da eternidade. Cada vida pode semear e plantar. Toda a vida semeia e planta. Foi isso que eu aprendi e sei que é isso que vai acontecer. Dentro de ti ninguém mexe. Não há máquina que me vença. E quando a ocasião espreita eu reajo de acordo comigo e com a minha consciência. Eu reajo salvando. Ainda bem que fizeram de mim um professor. Ainda bem que tudo corre tão mal nas escolas. Ainda a chorar a professora caminhando pelas escadas sentiu uma mão duma menina que a puxava. E que se contraía com dores e chorava ainda mais. E nem foi preciso mais nada. Pegou a menina pela mão e conduziu-a ao hospital. Professora e aluna. E das mãos do médico saiu um sorriso da boca da menina. Saiu um obrigado da boca da menina. E pegava-lhes pela mão como se fossem pai e mãe. E quando a menina já sorria, quando pedia para voltar para a escola, foi o médico quem fitou a professora e lhe disse deste modo. Não se importe com aquilo que incautos lhe obrigam a fazer, sabe dar valor à vida e esse tanto para mim me basta. Foi como se lhe pregasse uma medalha ao peito. Virá o dia em que estes actos serão reconhecidos. Por enquanto a professora continua a chorar. Por enquanto a professora vive ainda num inferno privativo. Mas depois do inverno chegará a primavera e saberá o homem cultivar as flores e embelezar os campos. Saberá o homem olhar de frente o sol que o alumia e sorrir das aventuras pequenas que o agigantam.

O estado da nação é o estado de um choro crónico e pronunciado. Cabe a cada homem saber agir de acordo com a consciência livre e humana. Cabe a cada homem aproveitar cada instante para se aproximar dos justos. Para que o céu não seja propriedade exclusiva dos violentos. Cabe a cada homem o trabalho da formiguinha, a reconstrução dos antigos caminhos. Por vezes um rebuçado apaga o fogo. Há um travão que vê a graça. Por mais pequena e infinda. Há um caminho. Há sempre um homem novo.
Desta feita deixei os agradecimentos para o fim. Lanço-os agora a todos os que aqui estiveram. Quanto ao livro, ele aí está, para que o leiam e para que o julguem. Fundamentalmente para que o julguem. Porque quando o fazem estão a construir mais um pequenino caminho.
Muito obrigado a todos por terem vindo e por terem partilhado este momento comigo.
“ A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores. Um povo que lê nunca será um povo de escravos.”

António Lobo Antunes

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